quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Razoabilidade e proporcionalidade


Razoabilidade e proporcionalidade

Péricles Capanema

Ao aplicar a legislação, deve o juiz brasileiro ter em vista a razoabilidade e a proporcionalidade. Alguns autores identificam as duas exigências; outros, não. Para nossos objetivos, não importa a discussão. Existe ainda o bom senso, um pouco mais amplo, engloba as duas premissas da decisão do magistrado, acima referidas.

Não só o juiz precisa se guiar pela razoabilidade e proporcionalidade, também o administrador público; de fato, todas a conduta nossa deve ser embebida de razoabilidade e proporcionalidade. Em duas palavras, o ato humano, para contribuir para a perfeição pessoal ou social, necessita ser pautado pela razoabilidade e proporcionalidade.

De forma obsessiva essas duas premissas me assaltaram, enquanto lconhecia pela leitura da imprensa diária a história da elefanta Ramba. Para quem não sabe, e é a grossa maioria, a elefanta Ramba morreu em 26 de dezembro de 2019. Tinha entre 53 e 60 anos, pesava em torno de 3,6 toneladas, era de espécie asiática ▬ a espécie africana é maior. Ramba, que sofria há muitos anos, mais de sete, de problemas renais, viveu anos no Chile e Argentina, foi atração circense e terminou os dias no Santuário de Elefantes Brasil, onde chegou em outubro, localizado na Chapada dos Guimarães, próxima a Cuiabá. Comunicado divulgado pela tal instituição dizia: “Na Chapada dos Guimarães, Ramba conviveu nos últimos dois meses com as demais elefantas Guida, Lady, Maia e Rana. O santuário levou os animais para se despedirem da companheira.” Faz sentido, o santuário é grande, 1.100 hectares, Ramba morreu de repente e então foram juntadas as outras para a tal “despedida”. Divulgou ainda o santuário: “"Já sabíamos que cada dia de Ramba, no Santuário, seria uma dádiva, não apenas para ela, mas para todos que tiveram a oportunidade de conhecê-la. Todos foram, de alguma forma, tocados por ela". Como se pode ver, para as quatro outras elefantas e para os funcionários, o convívio com Ramba foi dádiva diária durante uns 60 dias.

Razoável? Proporcional? Mais alguns dados para o juízo do leitor relativos à última parte da vida de Ramba. Em 15 de outubro por avião cargueiro, em contêiner de 6 toneladas, Ramba, já então gravemente doente, foi embarcada no aeroporto de Santiago rumo a Viracopos. A tal caixa (ou contêiner) tinha água, alimentação, temperatura controlada, câmeras internas de monitoramento. Scott Blais, presidente do santuário, e um veterinário viajaram junto. A operação de desembarque mobilizou 30 pessoas.

A elefanta foi então embarcada em um comboio rodoviário, percurso em torno de 1,5 mil quilômetros, 30 horas, até o santuário. Tal viagem foi acompanhada por equipe multidisciplinar (profissionais de várias áreas). Lá, o bicho teve oportunidade de escolher entre ficar isolada ou o convívio de duas outras elefantas ▬ Maia e Rana. As notícias que compulsei não informam qual foi a escolha de Ramba.

Razoável? Proporcional? Não eram apenas as duas palavras, razoabilidade e proporcionalidade, que me vinham à mente. Vinha-me também uma pergunta. Qual foi o custo da operação de trazer uma elefanta de uns 60 anos, doente, de Santiago até a Chapada dos Guimarães? De fato, ela estava em Rancagua, a 90 quilômetros da capital chilena e levá-la até o aeroporto representou gasto extra expressivo. Em Rancagua desde 2011, não fazia nada, só pastava.

A voluntária Valéria Mindel enumerou duas razões para justificar os gastos: em Rancagua a elefanta sofria com o rigor do inverno chileno e com a solidão. Solidão e frio foram as razões para o enorme traslado, parece. Santo Deus! Informam ainda as notícias, o dinheiro foi doado por empresas e particulares, obtido em especial nos Estados Unidos. “Houve grande aceitação”. De qualquer maneira, não foi barato.

Já pensaram quantas crianças brasileiras, abandonadas, fruto de lares destroçados, agora passando necessidades prementes de toda ordem, poderiam ter sido atendidas com o dinheiro consumido (ia dizer torrado, mas terminei escolhendo consumido para evitar críticas ácidas) nesse show despropositado de proteção da vida animal? Nem precisava sacrificar a elefanta doente, como se faz todos os dias em casos parecidos, milhares de vezes, mundo afora, até por organizações que promovem o bem-estar animal. Bastaria que o paquiderme continuasse onde estava desde 2011, Rancagua, pastando placidamente. E. de quando em vez, que fosse atendida por veterinário local.

Mesmo sem fazer pesquisas na rede, vou arriscar: ninguém criticou o disparate evidente de todo o caso. E acrescento, ficarei feliz se for desmentido. A mais importante razão do silêncio a respeito, noto, é que não é politicamente correto criticar iniciativas assim, mesmo as mais disparatadas. A patrulha não deixa, não tolera críticas, marca cerrado. Com efeito, não se pode criticar causas na moda (uma delas é igualar animais com humanos), tantas vezes infecionadas de espírito revolucionário, caras a movimentos mundiais de enorme força publicitária. O fato aqui relatado é exemplificativo, apenas um sintoma, ainda que revelador, do retrocesso que nos espera, se tais forças triunfarem. Outro título para este artigo: O rei está nu. O autor, claro, faz o papel do menino que exprimiu o óbvio, percebido por todos.


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