Fazer as coisas pela metade
Péricles
Capanema
Escrevo
em 29 de dezembro, hora da retrospectiva e da prospectiva. Resolvi fazer as
duas em uma, assunto único que possa permanecer lembrança útil, singela embora.
E o que de imediato me veio à cabeça que poderia unir o olhar para o finado 2019
e a conjetura de 2020? Pulou na frente, de forma inesperada, um traço bem nosso:
o gosto de fazer as coisas pela metade.
Os dois
anos terão isso em comum, infelizmente. Um, já foi, 2019, agastou-me à beça o
procedimento rotineiro de não ir até o fim; o outro está aí, 2020, só milagre
para não acontecer o mesmo. E de antemão advirto, não o digo por pessimismo,
mas por realismo, para tentar ajudar, é tentativa de diminuir efeitos de mau
hábito. Todo mundo viu, fizemos as coisas (as boas) pela metade em 2019, vamos
fazer pela metade as coisas (boas) em 2020. Alguém acha que vou errar? Deus
queira.
Avanço. Fazer
as coisas pela metade, vezo de séculos, é dos nossos numerosos tumores de
estimação. Constituiria, aliás, importante avanço civilizatório do Brasil a
convicção entranhada que é preciso acabar com tal hábito. Aqui deixo uma das
razões da usança destruidora, quem sabe a de maior relevância. Gilberto Amado repetia,
ficava animado nas raras ocasiões que encontrava um brasileiro capaz de ligar
causa e efeito. Quando for generalizado comportamento social entre nós ligar
causa e efeito, sumirão muitos de nossos problemas.
Vamos a
2019. Foi feita a reforma da previdência, trombeteada com boas razões como início
do saneamento das contas públicas e um dos marcos, talvez o principal, de nossa
eventual prosperidade futura. Economistas sérios advertem, falta muita coisa, é
imprescindível já agora pensar nelas. De saída, falta a reforma previdenciária nos
Estados e municípios (a tal PEC paralela). Seu efeito, por enquanto, será limitado,
ainda que acenda esperanças justificadas. A Instituição Fiscal Independente
(IFI), órgão do Senado Federal, observa: “A reforma da previdência não resolve
o problema fiscal do país, mas dá fôlego. No máximo, permite que a despesa
previdenciária deixe de crescer em relação ao PIB nos próximos anos”. O que
lamento, poucos falam em completar o trabalho. Já está bom ter feito as coisas
pela metade. Se não for enfrentado o restante, lá na frente o mesmo problema
explodirá de novo.
Privatização,
outra política feita pela metade. Há pouco mais de ano, falava-se no trilhão
que entraria no caixa do governo com a venda das estatais deficitárias. Sumiram
os números, aqui e ali o dr. Salim Mattar faz discretas advertências, limitado
pelo cargo oficial, sobre obstáculos que tem encontrado.
Outros baldes
de água fria. Fontes do governo informam, a TV Brasil não vai mais ser
privatizada. A VALEC, idem. Petrobrás, Caixa e Banco do Brasil, nem se fala, são
totens que permanecerão imunes a qualquer privatização. A economista Elena
Landau, de posições às vezes censuráveis em outros campos, é no âmbito econômico
bom exemplo da angústia que se generaliza entre correntes contrárias ao enorme papel
do Estado na economia brasileira (tumor de estimação é coisa séria, mesmo que
pese feio no cangote do povo). Advertiu ela em artigo no Estadão, repetindo o
que vem dizendo com eco crescente em outros órgãos de divulgação: “Trabalhadores continuam sem liberdade para escolher
onde investir seu FGTS. A abertura do mercado de gás não veio. A Petrobrás
segue monopolista em várias áreas, celebrou contrato de gás com distribuidoras
para 2020 impondo aumento de quase 20% em lugar da prometida queda de 40%. As estatais criadas pelo PT estão vivas. O
trilhão de reais com a venda de estatais e mais outro trilhão com a venda de
imóveis não aconteceram, nem virão. A prometida privatização ampla, geral e
irrestrita se resumiu a uma política de desinvestimentos das estatais. Das 17
empresas listadas formalmente no programa, nenhuma está pronta para ser
vendida, e a maioria delas já está incluída desde o governo Temer. As mais
importantes são Telebrás, Casa da Moeda e Correios, de vendas e valores
duvidosos, ao lado de mais de uma dezena de empresas que não vão gerar ganho
algum. Deveriam ser fechadas. Nada de Petrobrás, Banco do Brasil ou Caixa. A empresa
do trem-bala, a EPL, vai se juntar com Infraero e Valec e formar uma grande
estatal de logística. Para facilitar a criação dessa nova e poderosa estatal,
outra foi criada: a NAV. Se Bolsonaro não abraçar a privatização, serão mais
três anos de vendas no varejo. Acreditou no liberalismo deste governo quem quis
ser enganado”. Não custa recordar, boa parte dos ativos das estatais, vendidos
em programa de privatização, caíram e estão caindo nas mãos de estatais
chinesas (do Partido Comunista Chinês, para ser direto).
Falava de
uma economista, lembro outro, Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central. Também
no Estadão, ele constatou quadro preocupante, decorrência de nosso vezo de
fazer as cosas pela metade. “Em 1980, o Brasil tinha renda per capita
equivalente a cerca de 40% da renda per capita dos EUA. Hoje é 25%. A pergunta
é: quanto é preciso crescer a cada ano, de 2020 a 2080, para chegar lá com os mesmos
40% de um século antes? Resposta: 2,5% ao ano mais ou menos, com hipóteses
razoáveis sobre população, sobre os EUA e a produtividade. Ou seja, 2,5% até
2080 assegura que não vamos perder este século”. Em 2080, com tal crescimento
anual chegaríamos a ter 40% da renda per capita do norte-americano, índice que
tínhamos em 1980. E estamos crescendo 0,5%, 1% ao ano, quando muito.
O que aqui
enfatizo? O estatismo faz parte dos nossos tumores de estimação, entranhou de
alto a baixo. Outro, a reforma agrária. São enraizadas rotinas obscurantistas
na sociedade e no Estado, pois fogem da luz da realidade, impedem o crescimento
natural do Brasil ao sugar pelas décadas afora amazônicas potencialidades do
organismo social. Hoje pus no pelourinho outra característica, o gosto de fazer
as coisas pela metade. Tudo isso asfixia a inovação, intoxica a iniciativa, dificulta
a criatividade, mina o trabalho, constituem fortes amarras no atraso.
Já falei
disso, mas a repetição é necessária; reforma agrária e estatismo são
componentes importantes da opção preferencial pela atrofia, vitoriosa em Cuba,
na Venezuela, nos países em que a esquerda triunfou por muito tempo. Temos décadas
de aplicação da função social às avessas e de consequente crueldade com os
pobres. Estes, como reação louvável e explicável, fogem espavoridos de tais
países e procuram entrar desesperadamente no país que, apesar de todos os
defeitos que lhe possam ser apontados, nunca fez a opção preferencial pela
atrofia: os Estados Unidos da América.
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