Não à asfixia intelectual
Péricles
Capanema
Tive em
mente vários títulos para o artigo, bem mais fosforejantes. Um deles: “Jornalistas
brasileiros esbofeteiam Prêmio Nobel”. Desisti, sensacionalista demais.
Coloquei “Não à asfixia intelectual”, mais comportado.
O chanceler
Ernesto Araújo, poucos meses atrás, afirmou que o nazismo era um movimento de
esquerda. Já tinha feito a mesma afirmação em seu blog em 2017. Desencadeou-se
sobre ele uma tempestade midiática, infestou o ambiente. Pareceria, o titular
do Itamaraty teria solto o maior dos disparates. Não vou entrar aqui em disputa
sobre oportunidade, necessidade de matizar melhor o pensamento, percepção
pública. Ficam para outra ocasião, se houver.
Asneira, absurdo científico, disparate, labéus desse nível recebeu o
ministro, saraivada de impropérios; só contumélias, zero de argumentação. Irritou-me
a agressão descabelada da patrulha ideológica, tentativa escancarada de
desqualificar o tema pela operação mordaça, imposição intolerante de ponto de
vista, esteada na gritaria intimidatória, bem como no desconhecimento de boa
parte do público.
Calma, vamos abrir as janelas, deixar ventilar, arejar o ambiente, refrescar
o assunto; trabalho de descontaminação. Houve autores muito sérios, ao longo de
décadas, que antes do ministro disseram com argumentação convincente a mesma
coisa. Bastaria uma consulta ao paquidérmico material acadêmico e jornalístico,
hoje na rede. Lembro aqui apenas dois deles.
O primeiro, entre nós, já antes da 2ª Guerra Mundial, quando o nazismo
estava no auge. No “Legionário”, semanário da arquidiocese de São Paulo, de que
era diretor, escreveu o professor Plínio Corrêa de Oliveira em agosto de 1938: “[Houve]
o reatamento das relações diplomáticas entre a Alemanha e a Rússia, que vinham
sendo muito regulares e que se tornaram normais. [...] A verdade é esta: se bem
que Hitler pregue contra o comunismo e se apresente como defensor da
civilização europeia contra esse mal, sua atitude em relação ao governo
soviético difere fundamentalmente dessa propaganda”. Mais adiante, em 1º de
janeiro de 1939, previa ele: “Efetivamente,
enquanto todos os campos se definem, um movimento cada vez mais nítido se
processa. É a fusão doutrinária do nazismo com o comunismo. A nosso ver, 1939
assistirá à consumação dessa fusão”. Convém acentuar, o autor nota crescente confluência
doutrinária entre os dois movimentos ▬ em especial, totalitarismo e
nacionalismo. E já antes da guerra. O que leva naturalmente a acordos políticos
e diplomáticos.
Em
maio de 1939, voltava ao tema: “A nota mais curiosa do noticiário da semana
passada foi fornecida, sem dúvida pelos rumores insistentes sobre uma
aproximação teuto-russa. À primeira vista esta versão tem contra si fortes
possibilidades […]. Dada a campanha espetacular que o nazismo e o comunismo
dirigem um contra o outro, seria deveras surpreendente que ambos se
reconciliassem. Os observadores menos superficiais entretanto, não consideram
tão inverossímil essa hipótese. Em primeiro lugar nenhuma pessoa medianamente
culta poderá negar a inteira afinidade ideológica existente entre o
totalitarismo e o comunismo […]. A Alemanha é nacional-socialista. A Rússia
está ficando nacionalista sem deixar de ser comunista.”
À
véspera da 2ª Guerra Mundial, a Rússia e a Alemanha firmaram em 23 de agosto de
1939 [ a guerra começou em 1º de setembro] uma aliança, o pacto Ribbentrop-Molotov,
que só terminou dois anos depois, em 22 de junho de 1941, com a invasão da
Rússia pela Alemanha. Em fevereiro de 1940, já em plena guerra, foi assinado o
acordo de comércio germano-soviético. Em junho de 1940, escreveu Plinio Corrêa
de Oliveira a respeito da entrada na guerra da Itália ao lado da Alemanha: “Nessa
ocasião, o Legionário já sustentava a inconsistência da luta entre o
totalitarismo de direita e de esquerda. Segundo as previsões desta folha, dia
viria em que os fatos demonstrariam esta tese, e o mundo ainda assistiria à
aliança de uma e outra ideologia. Veio finalmente o pacto Ribbentrop-Stalin e
de lá para cá nosso ponto de vista tem recebido da realidade a sua mais plena
confirmação”.
Agora,
deixo o Brasil e vou para a Inglaterra. Em 1944, em plena guerra, foi ali
publicado o livro “O Caminho da Servidão” de Friedrich August von Hayek (1902-1992). Lembro
alguns dados biográficos. Hayek nasceu em Viena, lá se doutorou, mudou-se em
1932 para Londres para lecionar na London School of Economics. Logo teve
polêmicas públicas com John Maynard Keynes (1883-1946). Naturalizado cidadão
britânico em 1938, firmou-se imediatamente como pensador de destaque no mundo
inglês, em especial em temas econômicos. Margareth Thatcher o admirava: “o mais
importante crítico do planejamento socialista e do Estado socialista”. À vera,
amplo conhecedor do mundo alemão, suas raízes e estudos estavam lá, sua voz
repercutia também na nação de onde viera. Lecionou ainda nos Estados Unidos e
na Alemanha, para onde se mudou em 1977 e lá faleceu. Recebeu o Prêmio Nobel de
Economia em 1974.
Em 1944, já se pressentia a derrota da Alemanha,
atacada no oeste pelos Estados Unidos e aliados; no leste pela Rússia. Por
causa do inimigo comum, era grande a propaganda favorável aos soviéticos e às
doutrinas socialistas. Hayek via o aumento do prestígio das teses socialistas
na Inglaterra, percebia a provável repercussão eleitoral. Publicou o livro-advertência
em plena guerra (1944), cujo resumo, para o que aqui nos interessa, é simples.
A Inglaterra estava em situação parecida com a Alemanha depois da 1ª Guerra
Mundial. As doutrinas e os movimentos que geraram o nazismo eram ali também
fortes. Poderiam gerar uma situação socialista, como uma de feições nazistas. Os
dois movimentos tinham inspiração doutrinaria comum, estatismo, planejamento
totalitário, culto do coletivo, menosprezo da pessoa humana: “É o destino da
Alemanha que estamos em perigo de seguir. Há mais do que uma semelhança
superficial entre o rumo do pensamento na Alemanha durante e após a 1ª Guerra
Mundial. Poucos estão prontos a reconhecer que a ascensão do nazismo e do fascismo
não foi uma reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas
o resultado necessário dessas mesmas tendências”
Contata que, como na Alemanha de quinze anos atrás, o
socialismo havia dominado as mentalidades na Inglaterra: “Se considerarmos as
pessoas cujas opiniões influem nos acontecimentos neste país, todas elas são em
certo sentido socialistas. Porque todos o desejam estamos marchando na direção
do socialismo”.
No capítulo intitulado “As raízes socialistas do
nazismo”, afirma o Prêmio Nobel de Economia de 1974: “É um engano considerar o
nacional-socialismo uma simples revolta contra a razão, um movimento irracional
sem antecedentes intelectuais. As doutrinas do nacional-socialismo representam
o ponto culminante de uma longa evolução de ideias. O sistema se desenvolveu
com coerência implacável. Uma vez aceitas suas premissas, não se pode fugir à sua
lógica. Trata-se simplesmente do coletivismo. No início as ideias nazistas eram
aceitas apenas por uma minoria, mas em seguida passaram a conquistar o apoio da
maioria do povo. O apoio a elas veio exatamente dos socialistas e não de uma burguesia.
Os mais ilustres precursores do nacional-socialismo são reconhecidos, ao mesmo
tempo, como fundadores do socialismo”. Como se vê, para Hayek importavam pouco
os rótulos, analisava o conteúdo comum, o coletivismo e o menosprezo da pessoa.
É isso. Foi um desabafo (desculpem-me o jogo de
palavras) contra a operação abafa. O totalitarismo não morreu, continua vivo entre
nós em especial na academia, nas redações dos órgãos de divulgação, nas
sacristias do clero de esquerda. A vida intelectual reclama oxigênio, desabrocha
em ambientes arejados.
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