sexta-feira, 26 de junho de 2020

Não à asfixia intelectual


Não à asfixia intelectual

Péricles Capanema

Tive em mente vários títulos para o artigo, bem mais fosforejantes. Um deles: “Jornalistas brasileiros esbofeteiam Prêmio Nobel”. Desisti, sensacionalista demais. Coloquei “Não à asfixia intelectual”, mais comportado.

O chanceler Ernesto Araújo, poucos meses atrás, afirmou que o nazismo era um movimento de esquerda. Já tinha feito a mesma afirmação em seu blog em 2017. Desencadeou-se sobre ele uma tempestade midiática, infestou o ambiente. Pareceria, o titular do Itamaraty teria solto o maior dos disparates. Não vou entrar aqui em disputa sobre oportunidade, necessidade de matizar melhor o pensamento, percepção pública. Ficam para outra ocasião, se houver.

Asneira, absurdo científico, disparate, labéus desse nível recebeu o ministro, saraivada de impropérios; só contumélias, zero de argumentação. Irritou-me a agressão descabelada da patrulha ideológica, tentativa escancarada de desqualificar o tema pela operação mordaça, imposição intolerante de ponto de vista, esteada na gritaria intimidatória, bem como no desconhecimento de boa parte do público.

Calma, vamos abrir as janelas, deixar ventilar, arejar o ambiente, refrescar o assunto; trabalho de descontaminação. Houve autores muito sérios, ao longo de décadas, que antes do ministro disseram com argumentação convincente a mesma coisa. Bastaria uma consulta ao paquidérmico material acadêmico e jornalístico, hoje na rede. Lembro aqui apenas dois deles.

O primeiro, entre nós, já antes da 2ª Guerra Mundial, quando o nazismo estava no auge. No “Legionário”, semanário da arquidiocese de São Paulo, de que era diretor, escreveu o professor Plínio Corrêa de Oliveira em agosto de 1938: “[Houve] o reatamento das relações diplomáticas entre a Alemanha e a Rússia, que vinham sendo muito regulares e que se tornaram normais. [...] A verdade é esta: se bem que Hitler pregue contra o comunismo e se apresente como defensor da civilização europeia contra esse mal, sua atitude em relação ao governo soviético difere fundamentalmente dessa propaganda”. Mais adiante, em 1º de janeiro de 1939, previa ele: “Efetivamente, enquanto todos os campos se definem, um movimento cada vez mais nítido se processa. É a fusão doutrinária do nazismo com o comunismo. A nosso ver, 1939 assistirá à consumação dessa fusão”. Convém acentuar, o autor nota crescente confluência doutrinária entre os dois movimentos ▬ em especial, totalitarismo e nacionalismo. E já antes da guerra. O que leva naturalmente a acordos políticos e diplomáticos.

Em maio de 1939, voltava ao tema: “A nota mais curiosa do noticiário da semana passada foi fornecida, sem dúvida pelos rumores insistentes sobre uma aproximação teuto-russa. À primeira vista esta versão tem contra si fortes possibilidades […]. Dada a campanha espetacular que o nazismo e o comunismo dirigem um contra o outro, seria deveras surpreendente que ambos se reconciliassem. Os observadores menos superficiais entretanto, não consideram tão inverossímil essa hipótese. Em primeiro lugar nenhuma pessoa medianamente culta poderá negar a inteira afinidade ideológica existente entre o totalitarismo e o comunismo […]. A Alemanha é nacional-socialista. A Rússia está ficando nacionalista sem deixar de ser comunista.”

À véspera da 2ª Guerra Mundial, a Rússia e a Alemanha firmaram em 23 de agosto de 1939 [ a guerra começou em 1º de setembro] uma aliança, o pacto Ribbentrop-Molotov, que só terminou dois anos depois, em 22 de junho de 1941, com a invasão da Rússia pela Alemanha. Em fevereiro de 1940, já em plena guerra, foi assinado o acordo de comércio germano-soviético. Em junho de 1940, escreveu Plinio Corrêa de Oliveira a respeito da entrada na guerra da Itália ao lado da Alemanha: “Nessa ocasião, o Legionário já sustentava a inconsistência da luta entre o totalitarismo de direita e de esquerda. Segundo as previsões desta folha, dia viria em que os fatos demonstrariam esta tese, e o mundo ainda assistiria à aliança de uma e outra ideologia. Veio finalmente o pacto Ribbentrop-Stalin e de lá para cá nosso ponto de vista tem recebido da realidade a sua mais plena confirmação”.

Agora, deixo o Brasil e vou para a Inglaterra. Em 1944, em plena guerra, foi ali publicado o livro “O Caminho da Servidão” de Friedrich August von Hayek (1902-1992). Lembro alguns dados biográficos. Hayek nasceu em Viena, lá se doutorou, mudou-se em 1932 para Londres para lecionar na London School of Economics. Logo teve polêmicas públicas com John Maynard Keynes (1883-1946). Naturalizado cidadão britânico em 1938, firmou-se imediatamente como pensador de destaque no mundo inglês, em especial em temas econômicos. Margareth Thatcher o admirava: “o mais importante crítico do planejamento socialista e do Estado socialista”. À vera, amplo conhecedor do mundo alemão, suas raízes e estudos estavam lá, sua voz repercutia também na nação de onde viera. Lecionou ainda nos Estados Unidos e na Alemanha, para onde se mudou em 1977 e lá faleceu. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1974.

Em 1944, já se pressentia a derrota da Alemanha, atacada no oeste pelos Estados Unidos e aliados; no leste pela Rússia. Por causa do inimigo comum, era grande a propaganda favorável aos soviéticos e às doutrinas socialistas. Hayek via o aumento do prestígio das teses socialistas na Inglaterra, percebia a provável repercussão eleitoral. Publicou o livro-advertência em plena guerra (1944), cujo resumo, para o que aqui nos interessa, é simples. A Inglaterra estava em situação parecida com a Alemanha depois da 1ª Guerra Mundial. As doutrinas e os movimentos que geraram o nazismo eram ali também fortes. Poderiam gerar uma situação socialista, como uma de feições nazistas. Os dois movimentos tinham inspiração doutrinaria comum, estatismo, planejamento totalitário, culto do coletivo, menosprezo da pessoa humana: “É o destino da Alemanha que estamos em perigo de seguir. Há mais do que uma semelhança superficial entre o rumo do pensamento na Alemanha durante e após a 1ª Guerra Mundial. Poucos estão prontos a reconhecer que a ascensão do nazismo e do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas o resultado necessário dessas mesmas tendências”

Contata que, como na Alemanha de quinze anos atrás, o socialismo havia dominado as mentalidades na Inglaterra: “Se considerarmos as pessoas cujas opiniões influem nos acontecimentos neste país, todas elas são em certo sentido socialistas. Porque todos o desejam estamos marchando na direção do socialismo”.

No capítulo intitulado “As raízes socialistas do nazismo”, afirma o Prêmio Nobel de Economia de 1974: “É um engano considerar o nacional-socialismo uma simples revolta contra a razão, um movimento irracional sem antecedentes intelectuais. As doutrinas do nacional-socialismo representam o ponto culminante de uma longa evolução de ideias. O sistema se desenvolveu com coerência implacável. Uma vez aceitas suas premissas, não se pode fugir à sua lógica. Trata-se simplesmente do coletivismo. No início as ideias nazistas eram aceitas apenas por uma minoria, mas em seguida passaram a conquistar o apoio da maioria do povo. O apoio a elas veio exatamente dos socialistas e não de uma burguesia. Os mais ilustres precursores do nacional-socialismo são reconhecidos, ao mesmo tempo, como fundadores do socialismo”. Como se vê, para Hayek importavam pouco os rótulos, analisava o conteúdo comum, o coletivismo e o menosprezo da pessoa.

É isso. Foi um desabafo (desculpem-me o jogo de palavras) contra a operação abafa. O totalitarismo não morreu, continua vivo entre nós em especial na academia, nas redações dos órgãos de divulgação, nas sacristias do clero de esquerda. A vida intelectual reclama oxigênio, desabrocha em ambientes arejados.

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