Retrocessos monstruosos
Péricles
Capanema
Temos às
pencas regressões sociais desconhecidas da maior parte das pessoas, às vezes
esquecidas, por vezes subestimadas. São fracassos medonhos, lesivos ao bem
comum. E assim, ao longo das décadas e séculos, empobreceram a sociedade,
dificultaram a inclusão, a mais de fechar horizontes da promoção (perfeição)
social. Por imperativo de justiça, reclamam resgate do olvido imerecido, que
começa pelo conhecimento. Reitero, convém trazê-los de volta à luz, para
fruição, instrução e proveito popular. Bem vista, essa revivescência é
benemérito ativismo social. Todos perdem com tais esquecimentos (qualificação
benévola, existem ocultações e deformações).
Vou falar
em especial de um deles, hoje perdido em desvãos da História. Antes, poucas
linhas de útil recordação sobre a relevância da exemplaridade. Tratei faz
pouco, pela rama embora, do papel social dos “role models”, exemplos e padrão
para milhões. Bafejando comportamentos, são fundamentais para formar
mentalidades, favorecer doutrinas, promover condutas. Governam no mais alto
sentido da palavra. Pois governar não é sobretudo abrir estradas e construir
pontes; é em primeiro lugar dirigir pessoas. Dirige-as quem influi nas
convicções, mentalidades e hábitos morais.
É difícil
a tradução de “role model” para o português; seria modelo ou modelo social.
Aliás, é exatamente esse o papel de um santo canonizado, servir de modelo,
padrão, sugerir rumos, trabalhar mentalidades. O “role model” dos nossos dias
em regra é versão apequenada, desnaturada, laicizada e aguada do santo.
Assim
define o “Business Dictionary” [Dicionário dos Negócios] o “role model”: “São
pessoas para as quais se olha e se reverencia. Um modelo social é alguém que os
outros desejam imitar, seja agora, seja no futuro. Um modelo social pode ser
alguém que você conheça, relacione-se normalmente com ele, ou alguém que você
nunca encontrou, como uma celebridade. Modelos sociais podem ser atores
conhecidos, figuras públicas, políticos, professores, policiais, pessoas
importantes da família”.
Modelos
sociais são ou foram Gandhi, os Beatles, Elvis Presley, Che Guevara, Bill
Gates, Pelé, a princesa Diana e ainda numerosos influencers atuais. Um
tio seu, leitor, admirado na família. Uma prima, leitora. “Quero ser como
fulano”, é grito interior de sem-número de pessoas. Modelos sociais influem no
caminhar da sociedade (involuções ou avanços), cada um a seu modo e título,
cada um atuando em especial sobre certa faixa do público. Seu tipo humano se
torna objetivo atraente naquela faixa da realidade. É corrente, a irradiação de
sua personalidade, ligada ao fascínio que exercem, muitas vezes ultrapassa a
influência de chefes de governo ou de Estado, mesmo de grandes potências. Em
curto, podem atrair para o bem, hoje pouco comum, podem puxar para o mal, o
mais frequente.
Pode
parecer cavalo-de-pau, não vai ser, o rumo permanece. Luís XIV (1638-1715) é
considerado a personificação do monarca absoluto. Dele teria sido a frase,
pronunciada em 1655, “L’État, c’est moi”, o Estado sou eu. Nunca a disse; pelo
contrário, pouco antes de falecer, afirmou: “Morro, mas o Estado permanece”.
Ninguém nega, contudo, Luís XIV governou com autoridade, exerceu com
desembaraço o mando. “Le métier du roi est grand, noble et délicieux”. Essa é
dele; para o monarca o ofício do rei era grande, nobre e delicioso. Marcou a
França, marcou sua época, foi modelo para soberanos. Não analisarei sua
política, nem seus acertos e erros. Meu foco é aspecto pouco destacado, facetas
de seu tipo humano, inspiradoras de comportamentos e formadoras de mentalidade.
A descrição de que me valho é de Hyppolite Taine (1828-1893), dos maiores
historiadores franceses, está nas páginas do seu livro “Les origines de la
France contemporaine”; dela vou retirar apenas as referências para tornar mais
fluente a leitura. Hoje é fácil encontrar a obra na rede e baixá-la ▬ está no
domínio público.
“Luís XIV
tinha todas as qualidades de um mestre de casa, o gosto da representação e da
hospitalidade, a condescendência e a dignidade; a arte de não ferir o
amor-próprio das pessoas, a arte de ficar sempre em seu lugar, a galanteria
nobre, o tato, o atrativo do espírito e da linguagem. Falava perfeitamente bem;
quando era preciso tinha a linguagem leve; quando necessário, o gracejo. Se
narrava uma história, fazia-o com enorme encanto, um tom nobre e fino, que só
vi nele. Nunca houve homem mais naturalmente polido, nem com uma polidez tão
bem medida, tão bem graduada, ninguém distinguia melhor nas respostas e na
maneira de ser a idade, a condição social e o mérito. Suas reverências, mais ou
menos marcadas, sempre discretas, tinham uma graça e uma majestade
incomparáveis. Era admirável pela forma diferenciada de receber homenagens à
frente das tropas e ainda nas revistas. Sobretudo no tratamento das mulheres,
nada havia de semelhante. Nunca passou diante da mais simples empregada de
quarto sem tirar o chapéu e sabia a\ quem cumprimentava. Nunca disse nada
depreciativo para ninguém. Nunca em sociedade comentou alguma coisa fora do
lugar ou deslocada. Até no menor gesto, no caminhar, no porte, na postura, tudo
medido, decente, nobre, grande, majestoso e, contudo, muito natural”.
Taine conclui:
“Eis o modelo. De perto ou de longe, foi seguido até o fim do Antigo Regime”.
Sabe-se, Luis XIV morreu em 1715, o Antigo Regime acabou com o triunfo da
Revolução Francesa em 1789. De fato, Luís XIV incarnou em alto grau um ideal de
perfeição social, que marcou o Antigo Regime. Em especial, tal ideal social
moldou a educação dos príncipes, a formação do “honnête homme”, o homem de
sociedade. Tendia a se generalizar; sua perenidade e aperfeiçoamento gradual
estimulariam avanços civilizatórios, dos quais o mundo se viu privado. Com o
fim do Antigo Regime, atacada e vilipendiada pelas correntes revolucionárias,
em análise rápida, sobraram destroços de tal padrão de convívio, ainda que por
vezes enormes. Multidões durante séculos estiveram excluídas de formas mais
perfeitas de vida social, acostumando-se com a degradação nas relações humanas.
Decadência atroz ▬ minimizada.
Esse
mesmo espírito, aninhado no fundo da doutrina e da mentalidade das formações
revolucionárias, manifestou-se repetidas vezes ao longo da História, gerando
miséria e exclusão. Dois exemplos. Um grande cientista ▬ nascido na nobreza de
toga (durante a Revolução Francesa, renunciou ao uso da partícula de, própria à
nobreza; aliás, pouco lhe adiantou) ▬, hoje por vezes chamado de “pai da
química moderna”, Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794) foi condenado à
guilhotina por tribunal de exceção da Revolução Francesa. Pediu alguns dias de
adiamento da execução, queria terminar pesquisas solicitação negada. Resposta
emblemática de Jean-Baptiste Coffinhal, presidente do Tribunal Revolucionário:
“A República não precisa de sábios”. Lavoisier foi guilhotinado em 8 de maio de
1794. Arremeteu irado contra o crime hediondo Louis de La Grange, dos maiores
matemáticos da época: “Morreu Lavoisier, só lhes custou um segundo cortar a
cabeça, cem anos talvez não sejam suficientes para que apareça uma parecida”.
Quanto perdeu o mundo? Quanto perderam os pobres em qualidade de vida?
Retrocesso desumano ▬ silenciado.
Outros
fatos, de mesma natureza. No Brasil, animadas pelo mesmo fanatismo, mulheres do
MST (uma das vanguardas da atrofia social entre nós), em pelo menos duas
ocasiões, pelo que me lembro agora, 2006 e 2015, foram discípulas modelares de
Jean-Baptiste Coffinhal. Em março de 2006 em Barra do Ribeiro, a 60 quilômetros
de Porto Alegre, destruíram pelo menos um milhão de mudas de eucalipto em
laboratório de propriedade da Aracruz Celulose. Renato Rostirolla, gerente
florestal, lastimou: “Há trabalhos de 20 anos de melhoramento genético que foram
destruídos. Se fôssemos realizar todos os cruzamentos, levaria no mínimo cinco
ou seis anos. Alguns nunca mais serão possíveis, porque as matrizes foram
destruídas”. Vandalismo semelhante foi perpetrado em Itapetininga, março de
2015, também por mulheres capitaneadas pelo MST, agora na Futura Gene, empresa
do grupo Suzano. O gerente Eduardo José de Mello lamentou: “Perdemos alguns
anos de desenvolvimento tecnológico”. Segundo a empresa, 14 anos de pesquisas
foram destruídos.
Os
setores que espatifam com delícias intolerantes milhares e até milhões de
mudinhas escolhidas de eucalipto, prenúncios de porvir melhor, de forma
congruente, simpatizarão com a decapitação criminosa de Lavoisier; e não
perceberão problema algum, acharão é bom, que a alta educação de Luís XIV seja
depreciada e finalmente desapareça como fator de aperfeiçoamento social. Inimigos
do crescimento, obstruem os caminhos da subida e o povo é a maior vítima.
Post-scriptum: tais setores não têm apenas manifestações extremadas; correntes
de opinião numerosas ingeriram prazerosamente doses graduadas de tal veneno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário