Esclarecendo apagões ▬ em especial os não provocados
pela ENEL
Péricles Capanema
Apagões mentais. Temos apagões de várias ordens. Não lidamos apenas com
os apagões devastadores na cidade de São Paulo. Lidamos ainda com apagões mentais,
em boa parte causa próxima ou distante dos apagões de energia elétrica. Pretendo
no presente texto jogar luz sobre um apagão mental. Há meses, se não há anos, a
capital paulista sofre devastadora e contínua série de apagões e toda culpa dos
enormes prejuízos despenca sobre a concessionária ENEL ▬ ameaças de processos,
de CPIs, de cassar a concessão, sei lá mais o que. É justo? É equitativo? Em
especial, o tiroteio atinge a todos os alvos? Não vulnera um deles pelo menos,
de dimensões amazônicas, este a bem dizer nunca é citado. Vou citá-lo hoje,
para completar o quadro. Não será a primeira vez. Para ser vero, sem efeitos perceptíveis,
já fiz o mesmo numerosas vezes. Lá vou eu, de certo modo, “vox clamantibus in
deserto”.
Privatizações para inglês ver. Começo com algumas recordações necessárias e reitero o
que venho martelando há anos: o processo de privatização brasileiro (e de desestatização)
em larga medida é de mentirinha, para inglês ver. O caso da cidade de São Paulo
é apenas um exemplo, dentro de um mar de situações semelhantes Brasil afora. Boa
parte das empresas “privatizadas” no Brasil virou estatal estrangeira, comandada
por governos estrangeiros, com presença marcante da China comunista. Em 2019, vale
lembrar, o capital chinês nos segmentos de geração, transmissão e distribuição
elétricas representava, respectivamente, 10%, 12% e 12% do total. A tendência é
de participação crescente, o que levanta problemas evidentes de independência e
soberania. Ninguém fala nisso. E nem reflete a respeito, pelo que parece. Há
apagão mental aqui, que irá gerar escuridão em setores decisivos da economia. Mais
ainda, do futuro pátrio. De passagem, privatização e desestatização no Brasil em
larga medida pertencem ao vocabulário da novilíngua. Significam muitas vezes
exatamente o contrário.
O caso da ENEL. A empresa concessionária ENEL tem capital predominante
italiano. Mas quem manda nela não são proprietários privados. De fato, com 23,6%
de seu capital, o governo italiano controla a ENEL. Mais claro, quem manda na
ENEL é o governo italiano. A ENEL, em linguagem corrente, é uma estatal ▬ em
linguagem mais precisa, sociedade ou empresa de economia mista, como o Banco do
Brasil ou a Petrobrás. No fim de 2023, acionistas minoritários da ENEL tentaram
evitar que o governo indicasse o presidente do Conselho de Administração e ainda
o presidente da empresa. Fracassaram. Sob protesto de tais acionistas, o
governo colocou na presidência do Conselho de Administração o sr. Paolo
Scaroni, nascido em 1946, que já tinha sido presidente da empresa entre 2002 e
2014. O mesmo cidadão passou ainda pela presidência da ENI, gigante petrolífera
em que o governo detém por volta de 30% da capital e indica seus dirigentes. Situação
lá parecida com a nossa no Brasil, em que o governo controla o Conselho de
Administração e a Diretoria Executiva da Petrobrás e do Banco do Brasil. Já se
vê, entre as especialidades do sr. Scaroni, ativo ainda em idade provecta, está
a de se refestelar como alto executivo de estatais. O mercado não gostou, achou
que prejudicaria os interesses da empresa. Uma das censuras emanadas do mercado
italiano, a proximidade do sr. Paolo Scaroni com a Rússia ▬ cercania com Putin,
no momento em que o autocrata russo agride não apenas a Ucrânia, mas à vera toda
a Europa. Pior para o mercado, venceu o governo, (“quia nominor leo”), encarapitou-se
Paolo, seguro, tranquilo, na presidência do Conselho. Com isso, são
prejudicados os acionistas, baixa a qualidade dos serviços, sofrem os
consumidores. Convém lembrar, a ENEL, estatal italiana, tem numerosas
concessões Brasil afora. É côngruo, a bagunça lá repercute aqui, a empresa tem sido
alvo de queixas contínuas dos clientes. Só no Estado de São Paulo atende a 7,8
milhões de consumidores. A ENEL entrou no Brasil no bojo do amplo programa de
desestatização e de privatização, cuja meta era aumentar a eficiência, baixar
custos e generalizar atendimento. Curto, visava enterrar o péssimo e caro das empresas
estatais. Leitor, você já leu em algum lugar que a ENEL é uma estatal? Com os
mesmos defeitos comuns às estatais, compadrio, ineficiência, inchamento de
funcionários, favorecimentos, ingerências políticas. Para a ENEL, que atende o
consumidor paulista, o determinante, nunca foi e nem poderia ser as
conveniências deste consumidor. O determinante é o interesse do governo italiano.
Um slogan atual para a cidade de São Paulo: ▬ Privatização já.
O disparatado programa brasileiro de
desestatização e privatização vivo como nunca. A
imprensa continua divulgando que existe um amplo programa de desestatização e
privatização, pelo menos nos Estados não governados pelo PT, pois esta
agrupação tem enraizado ranço estatista. Está plantada no atraso, promove o
retrocesso. O ranço, contudo, aparece, onde menos se esperaria, vem de atavismo
duro de eliminar. Em São Paulo, governado por administração que afirma
favorecer a livre iniciativa, muito recentemente foi leiloada a construção de nova
linha férrea São Paulo-Campinas, cem quilômetros de trajeto, que irá atender
São Paulo, Jundiaí e Campinas, entre outras cidades. Há ainda outras atividades
constantes do pacote entregue ao vencedor. Quem levou o leilão? Uma estatal
chinesa (CCCR), ou seja, uma empresa dirigida pelo governo chinês (de outro
modo, pelo Partido Comunista Chinês), associada a um grupo privado nacional. Não
se sabe bem em que proporção um ou outro grupo dirigirão as operações, o que
desperta preocupações. Mas, é claro, jamais prejudicarão interesses do Partido
Comunista Chinês, que terá a última palavra sobre a indicação de cada alto
executivo chinês, que dirigirá a construção e por trinta anos a concessão. Daqui
a pouco, virá a privatização da SABESP, negócio gigantesco. Teremos privatização
real? Seria ótimo, os consumidores agradecerão. Ou teremos privatização à
brasileira, de mentirinha, negócio para inglês ver, de fato, entrega da estatal
paulista a uma estatal de país estrangeiro, usualmente da China comunista. Seria
péssimo, os consumidores sofrerão.
O caso da Refinaria Landulpho Alves (RLAM
ou Mataripe). Outro
exemplo. E recente. Em novembro de 2021, a Petrobrás vendeu a Refinaria
Landulpho Alves, localizada na Bahia. A justificativa em tais casos sempre foi
a mesma: é necessário privatizar, aumentaria a concorrência, o mercado teria
mais fornecedores, subiria a produtividade e a eficiência; com isso, o consumidor
seria mais bem atendido, teria oferta maior com preços melhores. Nada mais
verdadeiro, a estatização sempre gerou pobreza, a livre iniciativa é fator de
prosperidade. Contudo, três anos depois, março de 2024, a refinaria vendia gasolina
com preço 6,4% mais caro que o oferecido pela Petrobrás. Pouco antes, em 21 de fevereiro
de 2024, a revista Oeste informava que “a Petrobras quer retomar o controle da refinaria de Mataripe (BA), privatizada em 2021 durante o governo do ex-presidente Jair
Bolsonaro”. Ou seja, há negociações para que Mataripe volte a pertencer à Petrobrás.
Mas vamos a este caso [no Direito Penal se diria, à verdade real, a única que
deve determinar o juízo], apenas mais um exemplo da “privatização” há décadas
vigente em Pindorama que pune a atual geração e deixará pasma as gerações futuras.
Quem comprou a Landulpho
Alves? A RLAM foi comprada pelo fundo Mubadala (fundo soberano, isto é,
propriedade 100% estatal) de Abu Dhabi, um dos emirados que fazem parte dos Emirados
Árabes Unidos. Na nossa política de “privatização”, a Petrobrás, empresa de
economia mista, com cerca de 37% de capital estatal, 63% privado, (a empresa
tem controle estatal, pois o Estado detém a maioria das ações ordinárias),
vendeu a segunda maior refinaria do Brasil para uma empresa 100% estatal. Antes,
Mataripe era, digamos, 63% privada. Depois da “privatização”, passou a ser 100%
estatal. Resultado típico do programa de privatização brasileiro. Pior, todo
mundo, parece, acha e proclama que isto é programa de privatização. Privatização
à brasileira, claro. Faça um google, um teste. Mais de 95% do que encontrar sobre
o caso, por baixo, será sobre a privatização de Mataripe (a refinaria Randulpho
Alves). Convém lembrar, quem passou a mandar na Mataripe foi Abu Dhabi, parte
dos Emirados Árabes Unidos, filiados à OPEP, cartel cuja função essencial é
coordenar a produção do óleo cru para que o preço do barril de petróleo não
caia. De outro modo, o governo dos Emirados Árabes Unidos não tem o menor
interesse em que a gasolina no Brasil seja barata. Pode-se dizer sem problemas o
contrário: via de regra, quanto mais cara nossa gasolina estiver, melhor para a
OPEP, tal situação sustentará o preço do óleo cru no mercado mundial. De outro
modo, é fantasia da mais rasa imaginar que a Mataripe nas mãos do governo do Abu
Dhabi (é o fato, pertence ao Abu Dhabi) procuraria baixar o preço da gasolina
(e outros produtos) por ela fabricados.
Fim dos apagões mentais. O público parece acreditar, temos
entre nós efetivo programa de privatização. A imprensa, na grossa maioria dos
casos, quando informa, falseia o quadro ou desinforma toscamente. Em
particular, falta um elo indispensável, que ligue a presente situação acima apenas
esboçada com problemas gravíssimos, de momento mais potenciais que reais, relacionados
à soberania e à independência nacionais. Nas fímbrias do horizonte, por etapas
compassadas, debuxa-se situação de protetorado efetivo, ainda que disfarçado ou
inconfessado. Em resumo, queremos já o fim dos apagões, em especial na capital
paulista. Mas com eles, talvez mais fundamentais, também a extinção dos apagões
mentais.
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