Nota prévia
Abaixo, oito artigos relacionados com a
momentosa e grave questão do marco temporal. Foram postados em 2021, cerca de
dois anos atrás, na ocasião em que o STF iria decidir a respeito. Houve pedido
de vistas, a decisão não se deu naquele ano. Parece, acontecerá agora. O
julgamento infelizmente está ocorrendo em condições piores para o futuro pátrio
que nas anteriores vezes. Bordeamos os abismos do coletivismo, da estagnação e
da pobreza generalizada. Modifiquei os artigos um pouco, atualizações, pequenos
acréscimos, supressões. Servirão, espero, como subsídio para reflexões e
decisões animadas de enérgica lucidez. O acórdão do STF e as reações subsequentes,
sabemos nós, marcarão fundo o porvir nacional. O Congresso tem uma palavra a
dizer. Decisiva. Bem informada, soobretudo a opinião pública precisa se
manifestar. Péricles Capanema Ferreira e Melo.
Artigos sobre o marco temporal
1. O marco temporal e
o futuro do Brasil ou De ore tuo te judico (1)
2. O marco temporal e o futuro do Brasil ou De
ore tuo te judico (2)
3. O marco temporal e o futuro do Brasil ou De
ore tuo te judico (3)
4. Ainda é possível salvar os
índios
5. A Constituição e
os índios (1)
6. A Constituição e
os índios (2)
7. Amazônia no centro
8. A construção permanente do caos.
O marco temporal e o futuro do Brasil ou De ore tuo
te judico (1)
Péricles Capanema
Julgo-te pela tua boca.
Pelo que tu livremente disseste (assim como um sem-número de propagandistas, em
especial enquistados na academia e nos meios de divulgação, aderentes a
orientações de igual rumo), relator ministro Edson Fachin. O relatório expressa
com contundência e clareza o pensamento de corrente demolidora, cada vez mais
influente no Brasil, de que infelizmente o destacado magistrado se revelou um
dos corifeus. Reitero. Houve algo que diminuísse o valor probatório das palavras
por ele enunciadas? Não, o ato foi livre, refletido, público, prestigiado. Lembro
aforisma corrente no processo penal, das provas a rainha é a confissão. Vem do Direito
Romano, repercute no conhecido adágio espanhol: “a confesión de parte, relevo de
prueba”.
A compaixão cristã postula a defesa do marco
temporal, hoje estaca da segurança jurídica. Tratarei em alguns
artigos, este é o primeiro, do Recurso Extraordinário 1.017.365, que traz à baila
a grave questão do marco temporal nas demarcações de terras indígenas. De
passagem, em outro lugar tratarei melhor do tema, mas é enganadora a expressão
“terras indígenas”, é mero recurso publicitário, falseia a realidade, ludibria
o público. Não existem as tais “terras indígenas”. Nunca existiram nas últimas
décadas. E nem há planos conhecidos para que existam nas próximas décadas.
Existem terras estatais, propriedades [domínio] da União, posse indígena. Os
índios são meros posseiros. Continuo. O futuro do agronegócio no Brasil depende
da solução que a ela der o Supremo, lembrou com fundamento o Presidente [então,
Bolsonaro]. Melhorando, ecoou opiniões disseminadas na agropecuária e em setores
da indústria e do comércio. Se for decidida na conformidade com o que exige a esquerda
extremada (CIMI, entre outros organismos), teremos, por anos a fio, o risco macabro,
e ainda hoje evitável, de queda na produção, consequente carestia de produtos agrícolas,
desestímulo para investimentos, daí decorrendo inevitável generalização da pobreza.
Nada poderia ser mais cruel para o povo em geral, para os indígenas em
particular. A compaixão cristã reclama luta urgente em defesa da prosperidade e
assim a rejeição do RE 1.017.365. De passagem, noto, tal corrente, acima
mencionada, é majoritária? Certamente, não, mas leva atrás de si multidões que
desejam a derrota do marco temporal no Supremo, enganosa e superficialmente,
por julgarem-na postura progressista favorável aos índios, defensora do meio
ambiente, coisa de gente de bom coração. Em suma, inocentes uteis, de posição,
na realidade, desumana com os indígenas e destruidora do futuro pátrio.
O voto do relator ministro Edson Fachin.
Mais especificamente, vou tratar do voto do relator, ministro Edson Fachin, que
guerreou a tese do marco temporal, abrindo caminho para a demolição da segurança
jurídica (já tão combalida) em especial no campo brasileiro. Evidenciando no
Supremo pressaga correlação de forças, constituirá disparo prenunciativo do que
nos pode reservar o futuro. O longo voto do ministro Fachin, 109 páginas, está na
íntegra em vários sites da rede; é de consulta rápida e fácil. Meu trabalho se limitará
a respigar partes dele, acrescentar aqui e ali pequenos comentários. Qualquer um
poderá conferir na rede a autenticidade da citação e, com isso, a pertinência do
comentário. Dessa forma, não atravancarei a leitura com referências.
Frankenstein apavorante.
Em resumo, o que temos ali? Dói-me dizê-lo e faço as vênias devidas ao douto ministro
da Suprema Corte, mas no caso (o voto) padecemos texto demagógico, distante a
léguas da isenção que se deve esperar de um magistrado, eivado de incoerências e
contradições, a mais de escasso valor jurídico. De forma congruente, em seus efeitos,
favorecedor do totalitarismo, do retrocesso, da intolerância e da exclusão. O curso
incoercível da lógica leva ainda a afirmar, os indígenas são cruelmente tratados
como cobaias de experimentações, cujo efeito prático, se triunfar o utopismo, será
petrificar suas comunidades no atraso e na miséria.
Recusa da noção de pessoa humana. O
ministro Fachin ao hostilizar o marco temporal assume e divulga (nenhuma reserva
expressa no texto) a doutrina exposta por Ailton Krenak: “Fomos, durante muito tempo,
embalados com a história de que somos humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando
desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa
e nós, outra. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é
natureza”. Existe então uma historinha para embalar (outra palavra para enganar,
iludir crianças na hora de dormir): somos humanidade. Adultos, saberemos a verdade.
Não somos, de fato, humanidade, pois não somos pessoa humana ▬ convicção demolidora
central em suas posições. Tudo é natureza; somos, à vera, mera parte de um organismo,
a natureza. O único real é o organismo natureza. Aqui está na doutrina o maior fundamento
para a posse indígena, os indígenas se considerariam parte de um organismo. Precisam
da terra para manter essa simbiose, suas concepções e modo de vida. São terra, enfim.
Comenta o ministro Fachin: “A terra para os indígenas (...) relação de identidade,
espiritualidade e de existência”. Indígenas e terra, idênticos.
Demolição de séculos de civilização ascensional. Em
sentido contrário, toda a civilização ocidental se desenvolveu tendo como base o
conceito de pessoa humana, a seguir enunciado “individua substantia rationalis naturae”,
na clássica definição de Boécio. A pessoa é substância individual de natureza racional.
Substância individual racional, daí ter direitos individuais, entre os quais os
direitos da personalidade. Toda a ação humana busca a felicidade; de outro modo,
o aperfeiçoamento da pessoa ▬ tem direito a desenvolver rumo à plenitude a própria
personalidade. Família, grupos intermediários e até o próprio Estado existem, fundamentalmente,
para o aperfeiçoamento da pessoa humana. Negada a nota de indivíduo da pessoa, desmorona
todo o edifício jurídico ▬ e filosófico ▬ sobre o qual se construiu a civilização
ocidental. Se não existir o homem, ser racional individual (precipitado à condição
de mera parte do todo, a natureza) fica absurdo falar em direitos individuais, direitos
de comunidades. Congruentemente se torna absurda a frase bíblica: “Façamos o
homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e às aves do
céu, e aos animais selváticos, e a toda a terra” (Gen., 1, 26).
Outra estaca do direito indígena: o imaginário.
O texto abaixo, reproduzido pelo relator, já consta do processo anterior, a Pet
nº 3.388, água que o ministro Fachin trouxe para seu moinho, pois, entende, fá-lo-á
moer mais rápido e com maior força o marco temporal: “Terra indígena, no imaginário
coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de
verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e
toda posteridade de uma etnia”. Imaginário é fantasia. Está escrito aqui, na fantasia
indígena a terra é um ser (só falta dizer vivo) que junta em si ancestralidade,
coetaneidade e futuro. Estamos próximos da definição de um deus; concepção panteísta
da Terra, sem dúvida. O indígena faria parte desse ser que tudo abarca. Desaparece,
de novo, a noção sobre a qual se construiu o direito e da qual nasceu a civilização
ocidental e cristã: “individua substantia rationalis naturae”.
Plenitude para os povos originários. O
indígena, nosso irmão, tem direitos individuais, como qualquer ser humano; mais
especificamente, tem o direito ao desenvolvimento inteiro de suas potencialidades.
A ele precisam ser proporcionadas condições para tal. Voltarei ao tema.
[Postado originariamente em 14 de setembro de 2021 ▬ modificado]
O marco temporal e o futuro do Brasil ou De ore tuo
te judico (2)
Péricles Capanema
Continuo na exposição e análise do voto do ministro
Edson Fachin no RE 1.017.365. Resumindo o que afirmei no primeiro artigo, apenas
respigo trechos do voto ajuntando pequenos comentários.
Servos da gleba. Os indígenas brasileiros,
por determinação constitucional, foram reduzidos à condição de servos da gleba.
Condição perpétua, não lhes é aberta a possibilidade do domínio. O servo da gleba
medieval não tinha a propriedade da terra (domínio). Trabalhava nela e em troca
recebia alimentos, proteção, segurança, estabilidade. Em repetidas ocasiões em todo
o voto, ecoando opinião comum, afirma-se, é reconhecida aos indígenas a posse permanente
da terra. O ato administrativo estatal tem caráter declaratório, jamais constitutivo.
O ministro Fachin transcreve voto antigo do ministro Celso de Mello que trata da
questão, externando, aliás, opinião pacificada na Corte: “As terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As
áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição
aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para
esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios
o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art.
231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas
bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições”. Continua o relator: “Portanto, muito embora a homologação
do procedimento tenha como finalidade a exteriorização da posse indígena, com o
consequente registro da área na Secretaria de Patrimônio da União, repita-se que
o procedimento demarcatório não constitui terra indígena em nenhuma de suas fases,
mas apenas reconhece a existência da posse tradicional preexistente”. De outro
modo, preto no branco, é uma grande balela afirmar que existe terra indígena. O
que existe, no caso, é posse garantida por legislação federal.
Possibilitar a reprodução cultural, segundo usos, costumes
e tradições. A outorga dominial (de fato, esbulho, como se verá)
que a União fez, reservando-se a propriedade, e concedendo a posse, tem como base
os direitos originários ▬ sobre eles, discorro abaixo. Direitos originários,
repita-se, em termos. A União reservou o domínio para si. Para justificar o fato
brutal, já muitas vezes repetido, alegam-se proteção do bem-estar, garantia da reprodução
cultural segundo os usos. Prevê a lei, tal situação nunca será modificada; os indígenas
permanecerão sempre na condição de servos da gleba. Foi sempre assim? Não.
Direitos originários.
O reconhecimento e a declaração da posse indígena se dão com base nos direitos originários
dos índios sobre a terra, manifestado via de regra pela ocupação tradicional. O
direito originário, anterior à Lei Magna e, de fato, anterior à constituição do
próprio Estado é claro direito natural. Sem o confessar, o que se afirma é a legitimidade
e validade deste direito natural. Dirão alguns, não é direito natural, é direito
histórico. Bobagem, tem raiz no direito natural. A posse no caso é o exercício de
uma das faculdades próprias ao domínio. Enfatizo o fato óbvio, se o direito é originário,
antecede à lei, é direito natural e inclui o domínio. E estamos diante de esbulho
estatal, que nega aos indígenas o domínio. Foi sempre assim, dirá alguém. Não foi.
O ministro Fachin traz documentos que provam que antes não era assim, estamos diante
de realidade relativamente nova, os reis reconheciam, sem nenhum entrave, aos indígenas
o domínio e a posse da terra. De outro modo, julgavam justamente, reconheciam o
fato anterior inconcusso, não lhes negavam o domínio. E, com ele, a posse. Contudo,
é óbvio, num quadro jurídico que levasse em conta os institutos do Direito Civil.
Nomadismo, ocupação e direitos originários.
Aqui é preciso ter em vista, de outro modo, analisar “cum grano salis” e
detenção, o estado das tribos e grupamentos indígenas nômades. O nomadismo não
equivale à ocupação estável. Quando e de que maneira se poderia falar em
direito originário em grupo notoriamente nômade? Cada caso merece exame
próprio, que ultrapassa em muito o escopo dos presentes artigos, simples e
modestas considerações oferecidas despretensiosamente como material de reflexão
para brasileiros preocupados com o rumo pátrio.
Proponho seguir o bom exemplo dos reis, progredir sensatamente
na direção correta, eliminando retrocesso já multissecular.
Seria política de amplo e longo alcance, admito, mas representaria reconquista e
avanço extraordinários, conferiria aos indígenas condições para desenvolver em melhores
condições os direitos individuais, os direitos da personalidade, retirando deles
assim uma tutela asfixiante. Aperfeiçoaria características, costumes e
qualidades; criaria ambiente propício ao aumento da autonomia. Com sensatez, mantendo
todas as proteções, a extinção de tal entulho autoritário, acabaria com a condição
de servo da gleba. Ensina a respeito o ministro relator Fachin: “Assim, as cartas
régias de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III,
afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que
lhes são alocadas nos aldeamento: ‘os gentios são senhores de suas fazendas nas
povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se
lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades
das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando eles livremente
o quiserem fazer’”. Pelo domínio e não apenas posse. O mesmo reconhecimento do domínio
[e posse, claro] dos indígenas sobre as terras, lembra o ministro Fachin, ainda
se pode constatar em alvará régio de 1680: “Nada obstante o contexto fático, o reconhecimento
de posse e domínio sobre as terras que ocupam ocorre com o Alvará Régio de 1680,
o qual consignava: ‘[...] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais,
que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de
suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas
se lhe fazer moléstia’”. Foi o Direito contemporâneo que operou a regressão: suprimiu
o domínio, esbofeteando o Direito Natural, reconhecendo como grande concessão a
posse. Da condição de senhores, atestada pelos reis, caíram para a de servos da
gleba. Não estaria na hora de retomar com prudência e senso da justiça a trilha
real? Pelo menos de pensar proativamente a respeito? Repito, colocar a questão de
modo a favorecer a segurança e felicidade dos indígenas, mas levando em conta, com
peso e medida, os institutos do Direito Civil. A propósito, não li, não ouvi,
não percebi em ninguém dos chamados setores progressistas algo que
longinquamente poderia lembrar o brado libertador, o clamor de quem realmente
deseja futuro de prosperidade para os povos originários: “Em relação aos
indígenas é preciso gradualmente extinguir a condição de servos da gleba”.
Servos da gleba, não há como negar, evoca se não o trabalho análogo ao do
escravo, objeto de lei brasileira, mas condição análoga à de escravo.
Outra pirueta semântica.
A posse é atributo da propriedade. Está no próprio relatório do ministro FAchin:
“A posse civil pode ser conceituada como ‘sempre um poder de fato, que corresponde
ao exercício de uma das faculdades inerentes ao domínio’ (GOMES, Orlando. Direitos
reais. 19.ed. atual. por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 51),
tal como definido no artigo 1.196 do Código Civil, in verbis: “Art. 1.196. Considera-se
possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes
inerentes à propriedade”. E então, como fica a questão da posse indígena? Foi forjada
mais uma teoria [em linguagem informal, uma pirueta] para evitar as trilhas conhecidas
do Direito Natural, do Direito Civil e do Direito Constitucional. Evangeliza o ministro
Fachin: “De início, cumpre afirmar que já restou assentado por esta Corte que a
posse indígena difere frontalmente da posse civil, não sendo, portanto, regulada
pela legislação privatística vigente, mas sim pelas previsões constitucionais configuradoras
do direito territorial indígena. É como delineou a questão o acórdão prolatado na
Pet nº 3.388: ‘[...] Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de
habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas
para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias
à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo
seus usos, costumes e tradições’ [...] Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine,
não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser
que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma
etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles
tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente
e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis
e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da
Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um
heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito
Civil. Donde a clara intelecção de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal
constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena.” O ministro Fachin não
fugiu do tema espinhoso; enunciou-o com simplicidade. O referido conceito de posse
não tem guarida no Direito Natural [isto digo eu, consoante o enunciado do texto],
não tem guarida nos institutos ortodoxos [isto é, conhecidos e admitidos] do Direito
Civil, não tem guarida nas doutrinas do Direito Constitucional. É coisa nova, que
ele deixa vaga, guarda-se bem de conceituar, [à vera, verdadeiro negotium perambulans in tenebris], intitulada pelo relator de “instituto heterodoxo”
do Direito Constitucional. Qualquer estudante de Direito Constitucional poderia
ajudar o ministro aqui qualificando a referida heterodoxia: arbítrio. É doutrina
desprovida de esteios consagrados, gizada artificiosamente para justificar um frankenstein
jurídico. Em resumo, pondo de lado o blá-blá-blá, cabe agora destacar um ponto,
este: a posse, postas certas condições, no Direito Romano, no Direito
brasileiro e, a bem dizer, em todos os ordenamentos do mundo, em geral leva ao
domínio; atenção, não no direito territorial indígena vigente no Brasil ▬
neste, a posse nunca trará o domínio, que será sempre estatal. Teremos assim,
Brasil afora, de forma permanente, a conjunção macabra da estatização selvagem
com a oprobriosa situação para os indígenas de servos da gleba. Chegaríamos finalmente,
é a utopia, ao éden prometido pelo mais extremado progressismo.
Reduções jesuíticas.
As reservas e terras indígenas lembram instituição antiga, açoitada impiedosamente
pelo obscurantismo iluminista, as reduções jesuíticas ▬ aldeamentos com pouco contato
com o exterior, destinados a formar uma nova sociedade isenta dos vícios vigentes
fora dela; utopias, na narrativa do enciclopedismo. Dessa forma, os jesuítas, na
tentativa de criar a nova cristandade, utopias cristãs, afirmavam os racionalistas,
limitavam a liberdade, educavam, de forma impositiva, em certa direção. Com traços
parecidos, utopias sociais contemporâneas, nas reservas indígenas se almeja instituir
um novo modo de vida, uma nova civilização, se quisermos, a ser imposta a cobaias
de experimentação (na prática, a utopia apregoada pela academia, meios de divulgação
e mundo oficial) na qual se exclui sempre ou quase sempre a apropriação
individual, sacrificada festivamente em aras dos delírios idílicos do
coletivismo extremado. No caso brasileiro com nota particular: vige a
apropriação estatal. Limitam-se as liberdades para obtê-la, precipitando os indígenas
tutelados para a condição de servos da gleba. Atrofiam-se possibilidades de realização
pessoal do índio, de sua família e de seu grupo. O ministro Fachin manifesta revelador
incômodo com contato com forasteiros, ao discorrer sobre comunidades indígenas isoladas:
“A compreensão de uma sociedade plural e de respeito à diversidade, como aquela
que a Constituição de 1988 busca constituir, exige que se respeite o direito à autodeterminação
desses povos, mantendo-os fora do contato constante com outras pessoas, em respeito
a seu modo de vida”. É a novilíngua, para garantir a autodeterminação, cerceiam-se
os contatos. É congruente, segundo tais concepções delirantes, polui e degrada o
contato com o forasteiro empapado de civilização ocidental, mercantilista e individualista.
Situações assim, que se multiplicam, a lógica nos comanda a conclusão, nascem da
intolerância, provocam exclusão. É o que, mutatis mutandis, teria
vigência em reduções jesuíticas, segundo detratores; é o que tem vigência nas aldeias
talibãs. A propósito, já prejudicadas em sua concepção cerebrina, ao longo dos
anos lesadas pela utilização demagógica de que foram objeto, na prática habitualmente
deixadas à matroca, e ainda sofrendo sempre a desídia da administração pública
brasileira, as reservas indígenas correm hoje sério e em geral subestimado risco
de se transformarem em quistos doentes no organismo nacional ▬ para desgraça
dos índios e da nação. Não raro, já hoje são focos de criminalidade ▬ drogas,
garimpo ilegal, alcoolismo, prostituição, suborno, entre outras ilícios. Tumores
de estimação para várias correntes ditas progressistas. Sem romantismos,
pântanos de atraso e miséria para os que ali têm a desdita de viver.
Parcialidade chocante.
Em abono de suas posições, o ministro Fachin em geral busca apoio nas mais extremadas
correntes revolucionárias do indigenismo e da cena política, o que não se harmoniza
com a necessária isenção e imparcialidade, apanágio dos magistrados. Cito três,
CIMI (Conselho Indigenista Missionário), APIB - Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil e CNV - Comissão Nacional da Verdade ▬ na atuação se revelou uma comissão
nacional da mistificação. Quanto às duas primeiras cita como dados objetivos e incontestes,
alicerces sólidos para o juízo: “Como informam a Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil – APIB e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, admitidos no feito
na qualidade de amici curiae, o Brasil possui hoje, de um total de 1.298 terras
indígenas, 829 demarcações não finalizadas, ou sequer iniciadas”. Se o RE 1.017.
365 obtiver maioria, por aqui já se percebe, teremos de saída cerca de mil situações
conflitivas Brasil afora. Da Comissão Nacional da Verdade, o relator cita trecho
de demagogismo delirante, apresentado como portador de dados objetivos: “Como resultados
dessas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos
no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais
ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação
aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número real de indígenas mortos
no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito
restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade
de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”. 8.350 indígenas assassinados.
Número real: exponencialmente maior. Fora os casos em que o número é tão alto que
desencoraja estimativas. É isso, extrato de relatório apresentado à Suprema Corte,
prestigiado e utilizado como base do voto.
Tutores infiéis. Paro hoje por aqui,
continuo depois. Infelizmente, doloroso constatá-lo, temos texto mambembe, inçado
de inverdades, fantasias, arbitrariedades, que poderá servir de base para decisão
que lesará gravemente o agronegócio, enraizando o atraso, perpetuando a pobreza.
O relator, douto homem de ciência e jurista conhecido, de certa maneira foi empurrado
para a apresentação de texto decepcionante (para ficar por aqui) por falta de alternativa.
É indefensável logicamente a causa demolidora que teve a infelicidade de esposar.
Os indígenas precisam de outra coisa, de amigos que gostem de vê-los em situações
de grande realização pessoal, desejam-nos crescendo na vida, em ascensão moral e
material; que Deus os livre da multidão de tutores infiéis. [Postado em 14 de
setembro de 2021 ▬ modificado]
O marco temporal e o futuro do Brasil ou De ore tuo
te judico (3)
Péricles Capanema
Adiante; aqui vou em mais uma rápida análise do laborioso
voto (109 páginas) do relator ministro Edson Fachin no Recurso Extraordinário 1.107.365.
conhecido usualmente como ação do marco temporal. O artigo será o último da série,
não mais atormentarei o leitor com o tema.
Cláusula pétrea abusiva.
No voto um ponto desperta especial atenção. As cláusulas pétreas estão no artigo
60 § 4º do texto constitucional: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda
tendente a abolir: (I) a forma federativa de Estado; (II) o voto direto, secreto,
universal e periódico; (III) - a separação dos Poderes; (IV) - os direitos e garantias
individuais”. Direitos e garantias individuais, texto claro, são cláusula pétrea.
A dicção constitucional não inclui direitos coletivos. O douto relator do Recurso
Extraordinário tenta esticar o alcance do inciso, vai que cola: “De início, cumpre
afirmar que os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais
[...] Essa qualificação dos direitos territoriais indígenas como direitos fundamentais
acarreta quatro consequências relevantes para o julgamento do presente feito. Em
primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a
previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea [...]
resta impedido (o legislador) de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar
o exercício dos direitos [...] coletivos”. Se colar, ele colará o Brasil na agitação
rural. As terras indígenas já constituem 12,2% do território nacional. Admitida
a interpretação aqui proposta pelo voto do relator ▬ compunge afirmá-lo, em relatório
que pouco relata e muito desorienta ▬, haverá novo e fortíssimo instrumento legal
para legalizar invasões, laudos antropológicos fajutas, e outros recursos dos movimentos
revolucionários para coletivizar o campo. Em consequência, o Brasil padecerá inchaço
na insegurança jurídica, tensão social e debandada de investimentos, com a inevitável
baixa na produtividade, daí decorrendo agravamento da pobreza e queda do emprego
e renda.
Mandinga tóxica de amplo espectro.
Farmacêuticos antigos advertiam contra os remédios de amplo espectro. Perigavam
não curar nada. Perigavam ter efeitos deletérios. Aqui temos um típico recurso
dialético de amplo espectro ▬ um duplo twist carpado; pirueta ladina, em
linguagem informal. O digno relator afirma, o direito coletivo é cláusula
pétrea. Não está nos itens constitucionais da cláusula pétrea. Mas ele escapa
desabalado pela tangente: é direito fundamental. Logo é cláusula pétrea. Não
fora ele membro da Alta Corte, logo se diria recurso capcioso de sofista.
Quando se compulsa o título II da Constituição de 1988 - Direitos e garantias
fundamentais - [sei, e garantia, discute-se muito sobre as diferenças de
garantia e direito, mas é um direito], encontra-se uma nominata amazônica de
direitos fundamentais. No artigo 5, além de 5 no caput, temos 78 nos incisos.
No artigo 6º, são 13 no caput. No artigo 7º, 28. No artigo 8º, 1 no caput e 8
nos incisos. No artigo 9º, 10º e 11º, um em cada caput. Claro, há muita
repetição, mas pela minha conta são 136 direitos fundamentais. Todos constituem
cláusulas pétreas? Não faz sentido. Muitos comentaristas resumem os direitos
fundamentais a cinco, classificação sensata: vida, liberdade, propriedade,
liberdade de expressão, participação política e religiosa. Em suma, o argumento
do ministro Fachin, dada a devido vênia, não tem valor. A justificativa, à
vera, vai no sentido contrário, tende a amputar do indígena brasileiro um
direito fundamental: o direito à propriedade privada, condição para que ele cresça,
desenvolva-se e se torne cidadão pleno. É retrocesso claro, gerador de asfixia
de possibilidades, dificultando-lhe o acesso aos bens da civilização. Essa
revivescência caricata das reduções jesuíticas dificultaria educação, saúde,
trabalho, previdência social, assistência aos desamparados.
Impedir aventuras destruidoras.
O recurso extraordinário RE 1.107.365 foi interposto pela FUNAI em face de acórdão
prolatado pelo TRF-4, que havia confirmado sentença de 1ª instância. Havia assim
duas decisões garantindo a reintegração de posse à Fundação de Amparo Tecnológico
ao Meio Ambiente. ▬ FATMA. O RE sustenta, as terras em disputa eram tradicionalmente
ocupadas pelos índios Xokleng. Foi dada repercussão geral ao recurso e sua decisão,
se favorável, trará consequências importantes para a propriedade rural no Brasil.
Teremos, é o previsível, em cascata, laudos antropológicos sem suporte real, invasões,
campanhas na imprensa, pressão de movimentos revolucionários, tudo empurrando para
uma só direção: transformar fazendas, boa parte altamente produtiva, em terras indígenas.
Serão centenas, se não, milhares, os casos ao longo dos próximos anos. Do voto dos
ministros do Supremo, como espada de Dâmocles, pende o destino do campo ▬ se próspero,
se atrasado e conflituoso. Derrubar o marco temporal é nefasto para o
agronegócio brasileiro, funesto para os povos originários. O saudável seria uma
aliança para a prosperidade unido povos originários e produtores rurais.
Constituiria verdadeira e autêntica liga popular e nacional pelo Brasil. O
produtor rural e o indígena precisam ser conscientizados e se conscientizar de
que são aliados naturais.
A vida como ela é. Na concepção
nefelibata, sem pé na realidade, compartilhada pelos movimentos indigenistas revolucionários,
enquistada em redações, sacristia e academia, e agora ecoando em votos decisivos
no STF, os indígenas vivem em união quase idílica com a natureza, da qual decorre
modo de vida e cultura favorecedores das comunidades a que pertencem. Preservam
a natureza, preservam a vida, fruem e mantêm a felicidade. Na prática, infelizmente,
as terras indígenas são foco de doenças, algumas endêmicas, alcoolismo, consumo
de drogas, suicídios altos, aluguel de áreas para mineração ilegal, opressão
dos mais fracos. Ficaria muito surpreso se inquérito objetivo, feito com lideranças
e indígenas responsáveis morando em tais terras, não revelasse como preocupações
primordiais das populações indígenas, entre outras, a instalação de posto da saúde
na aldeia, a construção de escola, o oferecimento de formação que assegurasse o
futuro dos filhos, assim como o combate ao alcoolismo, drogas e roubos. A mais de
concessão sensata de liberdade econômica progressiva ▬ o que, aliás, favoreceria
em muito o restabelecimento da ordem e o bem comum no Brasil. Constaria também,
item de relevo, a construção de estradas que ligariam tais populações aos maiores
centros de consumo e educação do Brasil. Em resumo, preocupações em larga medida
iguais às dos setores mais vulneráveis no Brasil. Querem melhorar de vida, desenvolver
dons, ainda largamente potenciais, que sentem palpitar em si. São reivindicações
compreensíveis, justas, devem ser atendidas com urgência em toda a medida do possível.
Curumim não é porqauinho-da-Índia.
Clamor pela plenitude.
Concluo reafirmando, políticas que em verdade ajudariam os indígenas e favoreceriam
o Brasil deveriam estimular a ascensão cultural de tais populações ▬ elas nunca
deveriam na prática considerar os indígenas como cobaias de experimentações sociais
utópicas. Alguns pontos a considerar: crescer na educação, crescer na saúde, aumentar
o contato de forma inteligente e mutuamente vantajosa com o resto do Brasil; ainda,
preservando e melhorando as características próprias, caminhar com segurança e paulatinamente
na estrada da autonomia crescente rumo à completa independência pessoal. No fundo
do horizonte, o desenvolvimento inteiro de suas potencialidades, a procura da plenitude,
o único caminho que pode levar à felicidade, sob o olhar de Deus. Por óbvio, a
plenitude extinguiria a situação de minoridade perpétua. Deixaria de existir o
engodo aninhado na expressão “terra indígena”, hoje enganador recurso
propagandístico, tóxico manipulador de paixões populares. “Terra indígena”
passaria a ser realidade ▬ posse e domínio. Com os poderes inerentes ao domínio,
o que supõe libertar a terra indígena de gravames inibidores a seu sensato
aproveitamento, possibilitando aproveitamento útil aos indígenas e ao povo
brasileiro em geral. Com sensatez, vista sempre posta no melhor interesse indígena
e no bem comum nacional, é preciso caminhar, passo seguro, rumo à plena
cidadania dos indígenas, retirando-os da condição humilhante de tutela e minoridade
perpétua, posição obscurantista, fator de atraso e sofrimento dos povos
originários. No horizonte precisam refulgir cidadania plena, arejamento,
crescimento, ainda que emoldurados por proteção e privilégios legais. Existe dívida
histórica, que reclama resgate urgente, no caso, devolver aos indígenas, ainda
que gradual e sensatamente o que lhes foi surrupiado: o domínio. A propósito, a
floresta não é um santuário laico, reserva intocável da humanidade, mas recurso
natural precioso que, para a vantagem dos indígenas e dos demais brasileiros,
deve ser sensata, intensa e cientificamente explorado. No mesmo rumo,
generalizou-se a expressão patrimônio comum da humanidade ou patrimônio da
humanidade, no fundo a mesma coisa, para qualificar a Amazônia. É
expressão-ônibus (cabe muita coisa dentro) enganosa, tóxica, muito perigosa em
certos contextos. Tem um sentido legítimo, com raiz na destinação universal dos
bens. O Taj Mahal, Ouro Preto, Veneza, Notre Dame, são patrimônios da
humanidade. Até uma xicrinha de café é patrimônio da humanidade. Em certos
casos, importa muito preservá-los. Em outros, a ênfase é que não sejam
utilizados para lesar gravemente a humanidade, o que daria ao gênero humano
direito de impedir. Neste, sentido amplo, é óbvio que a floresta amazônica é
patrimônio da humanidade. O que não diminui em nada, como nas casas e palácios
de Veneza, o s direitos da soberania nacional e os direitos dos proprietários
privados. O Brasil detém a soberania sobre a Amzônia brasileira, dela não abre
mão por todos os títulos. O fazendeiro da Amazônia tem domínio sobre usas
terras. Igual, o dono da casa, da residência, da loja. Do mesmo modo, o
indígena, com critério, deveria caminhar para ter domínio [com os poderes a ele
inerentes, garantidos na legislação] o que sempre ocupou e não apenas a posse
perpétua, inçada de proibições atrofiantes prejudiciais a seu bem-estar e ao
futuro de sua prole, como afirmei e espero ter provado em várias colaborações. [Postado
originariamente em 14 de setembro de 2021 ▬ modificado]
Ainda é possível salvar os índios
Péricles Capanema
Os fatos reclamam uma aliança.
Vou tratar do marco temporal ▬ fincado em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação
da Carta Magna. E, lá no fim, tratar da aliança à qual me referi no início e que,
julgo, precisa se firmar. Ao artigo. Potencialmente, temos à vista, crescentes e
dilacerantes conflagrações no campo. Dependerá de como terminará a presente ação
(RE 1.017.365) do referido marco temporal no STF e ainda de como o Congresso agirá
no caso. Se ganharem as forças da vanguarda do atraso (os agitadores), precipitar-se-ão
inevitáveis queda de investimentos no agro, altas nos preços de produção, no fim,
menos emprego e baixa na renda. No exterior, desconfiança de possíveis investidores
em relação ao Brasil. Em curto, mais pobreza numa nação já enormemente castigada.
A razão primeira é a influência da demagogia, cada vez mais destrambelhada a propósito
dos problemas suscitados pela atualidade candente da questão do marco temporal.
Ela borrifa incerteza a respeito de direitos, agride o agronegócio e ameaça o futuro
dos índios. De passagem, esclarecimento para alguém que ainda não saiba o que é
o marco temporal. Em resumo por alto, a tese do marco temporal ▬ vitoriosa em
2009 no acórdão da pena do ministro Ayres Britto relativo à reserva Raposa
Terra do Sol ▬ afirma que as terras indígenas tradicionalmente ocupadas, passíveis
de demarcação, são as que existiam até 5 de outubro de 1988. Há ainda um adendo,
do qual não tratarei aqui, o intitulado esbulho renitente.
Ingenuidade suicida.
Após o rumoroso episódio da reserva Raposa Serra do Sol em 2009, entendeu-se, ingênua
(fico por aqui) e falsamente, que o campo brasileiro poderia trabalhar em paz, com
base em jurisprudência pacificada. Ledo engano. A sanha esquerdista, com enfezado
apoio em todos os quadrantes sociais e meios de divulgação, leva adiante agora novo
golpe, já em avançado estado de execução, procurando dinamitar a jurisprudência
tida por já assentada, a ser substituída por outras interpretações que disseminarão
a insegurança jurídica ▬ pipocarão conflitos fundiários. Caso seja incinerada a
tese do marco temporal, vitoriosa em 2009, já se divulga, 829 disputas estão em
posição semelhantes à vivida em Santa Catarina, cujo desenlace será a entrega de
terras à União (e aos índios posseiros), considerando a declaração de repercussão
geral do caso. Virão outras, posteriormente; não sejamos simplórios. Paira
ameaçadora no horizonte turvo a estatização selvagem.
Propriedades estatais, posse indígena (usufruto).
Estamos em rota regressiva que despenca na estatização maciça. É a lei, a terra
entregue às comunidades indígenas não lhes será dada em domínio ▬ nunca serão proprietários
e, curiosamente, a respeito disso ninguém reclama, nem os próprios índios metidos
nas agitações. A estatização efetiva paira sobre o assunto como espécie de intocável
cláusula pétrea. Tem mais: a União não vai pagar um tostão pela terra demarcada,
salvo benfeitorias feitas de boa-fé, a ser comprovada.
Torquês dilacerante.
A torquês a ser aplicada sobre a economia nacional, em especial a economia e propriedade
agrícolas, apresenta duas hastes com pontas curvas de corte afiado. Provocarão sangramento,
periga hemorragia, na economia; mais ainda, à vera, no corpo social.
Jurisprudência nova.
A primeira haste é a interpretação pelo menos controversa (migração jurisprudencial;
talvez caminhemos até para mutação constitucional) do artigo 231 da Constituição
Cidadã. Ali se reconhece direito originário dos índios sobre as terras que “tradicionalmente
ocupam”, do que derivaria, país afora, terras públicas e posse indígena. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam”. De passagem, o verbo reconhecer indica que os direitos existiam até
antes de Pedro Álvares Cabral. É notório, não era apenas posse, supunha domínio
a ocupação estável, de onde tiravam o sustento. O Estado garfou para si o
domínio, depois de longo período em que os reis o reconheciam.
Hermenêutica em evolução. A presente hermenêutica do texto constitucional, exposta no voto do ministro
Nunes Marques, poderá migrar para interpretação muito pior; está pendente do voto
de oito ou talvez nove ministros no processo em curso no
Supremo ▬ já se conhecem as posições do ministro Fachin, mutação radical, e do ministro
Nunes Marques. pela manutenção. Reconhecida a “posse tradicional” por laudo antropológico,
segundo interpretação inovadora e muito ampliada, a porteira ficará escancarada
para a União tomar conta do espaço agrícola e entregá-lo aos índios. Lembra com
pertinência o ministro Kassio Nunes Marques em seu voto no RE 1.017.365: “A Constituição
Federal acolheu a teoria do indigenato na qual a relação estabelecida entre a terra
e o indígena é congênita e, por conseguinte, originária. [...] De fato, em seu grau
máximo, a teoria do indigenato teria potencial até de eliminar o fundamento da soberania
nacional. Se o índio era senhor e possuidor de toda a terra que um dia fora sua,
por direito congênito, como poderia o Brasil justificar o seu poder de mando sobre
o território que não era senão uma aldeia em processo de devolução aos legítimos
senhores?” Está certo, não haverá limites. Com base em interpretações cada vez mais
radicalizadas, toda a terra pertencerá aos índios. Desaparecerá a soberania, a
nação, o Estado. O Brasil sumirá, restará um universo de comunidades indígenas.
Na prática, hoje? Dependerá da reatividade do público. Se amolecida, os
conflitos se generalizarão e o Estado irá assumindo, ▬ no passo que julgar tolerável
para o público traumatizado ▬ a titularidade das terras, incoercível processo
concentrador, inibidor do crescimento, lesivo ao povo brasileiro.
Opção preferencial pelo entulho autoritário. A
segunda haste da torquês, dilacera igualmente. A esquerda toda, CIMI, PT, PSOL,
ONGs filo-comunistas internacionais e seus companheiros de viagem fazem defesa furibunda
de um entulho autoritário, a saber, disposições tecnocráticas e autoritárias da
lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (governo Médici). Para todos eles, xodó intocável
em relação ao ali escrito. Com base nelas, e com adrede interpretação do artigo
231 da Constituição Cidadã, acima mencionada, esperam gradualmente borrifar o agro
brasileiro de norte a sul de manchas de efetivo comunismo ▬ salpicação crescente
de propriedades estatais entregues a comunidades indígenas. A experiência histórica
mostra, teremos grupamentos humanos vegetando na miséria, lanhados pela desorganização
interna e de órgãos governamentais, torturados pelo crime, a mais de viver do dinheiro
público. É futuro que se deseje?
Tumor de estimação.
Pretende-se no caso manter intocado o caráter tecnocrático da lei 6.001 (procedimento
administrativo, basta a bem dizer um laudo feito por antropólogo escolhido pela
FUNAI para a demarcação), ademais de seu viés autoritário e burocrático (homologação
simples). Aqui está o avantesma intocável: “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa
e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio [FUNAI, no caso], serão
administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto
do Poder Executivo. § 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada
pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio
da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras”. Acabou,
nada de debate, de participação de interessados, de controle público. A exclusão
precisa ser protegida.
PL 490, o aumento da participação popular. Foi
simples o que o projeto de lei 409 de 2007 buscou (e por isso
sofreu saraivada de ataques) no processo de demarcação, aumentar a participação
popular, em particular a dos interessados. É inclusivo, põe freio no processo
concentrador e autoritário. A respeito, observou com pertinência o então deputado
gaúcho Jerônimo Goergen ao defender a aprovação urgente do PL 490, as áreas reivindicadas
para demarcação envolvem gigantescos e numerosos interesses públicos e privados.
Entre elas, áreas de proteção ambiental, áreas ligadas proximamente à segurança
nacional como as de fronteira, propriedades privadas destinadas à produção agropecuária,
cidades, núcleos urbanos, casarios e núcleos habitacionais. A mais, ponderou o parlamentar,
existem estradas, redes de energia elétrica, de telefonia, áreas de prospecção mineral,
cursos d’água com recursos hídricos. Abrir a porteira de forma indiscriminada para
demarcações, e é o que está na iminência de acontecer, garante com objetividade
o ativo líder gaúcho, poderá inviabilizar estados e municípios. “Fica até difícil
explicar como conseguimos gerar tanta insegurança jurídica para nós mesmos mantendo
o Congresso Nacional de fora deste debate”, concluiu.
Alarma no agronegócio.
Uma visão a “vol d’oiseau” Conforme se prolate a sentença (acórdão) da ação em curso
no STF, teremos paz no campo, mesmo que passageira e ameaçada, ou punhaladas imediatas
no agronegócio. O ministro Alexandre de Morais, que havia pedido vista nos autos,
devolveu o Recurso Extraordinário 1.107.365. A colocação em pauta depende agora
apenas de decisão do ministro Luiz Fux. De um lado, está o voto do relator Edson
Fachin. Nega que exista o chamado marco temporal, data limite para a aplicação do
conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas (5 de outubro de 1988).
De outro, o ministro Nunes Marques. Afirma, existe o marco temporal, está claro
na jurisprudência reiterada do Supremo. Observando com isenção os atores em movimento,
a situação não se apresenta tranquilizadora. Infelizmente, parece, falta rumo no
Executivo [de momento,, o Executivo colabora com o processo demolidor] e atuação
enérgica de lideranças rurais no Congresso ou fora dele que, oxalá, serão óbices
que evaporem logo, e possamos constatar tomadas de posição norteadoras que afastem
as perspectivas trágicas. [O RE está na pauta; de momento a votação está 4 x 2
a favor da derrubada do marco temporal].,
Saída óbvia. De um óbvio ululante.
A medida factível, rápida e simples, é clara: aprovar já o substitutivo do PL-490,
fazê-lo lei.[Com a ascensão de Lula, a medida deixa de ter eficácia; o
Presidente pode vetá-lo; as lideranças rurais precisam encontrar outro caminho.
A ocasião foi perdida.] Os textos dormem no Congresso desde 2007-2008 ▬ constituem,
parece, tentativa (frustrada, infelizmente), um emplastro de ocasião, para evitar
o desastre que foi a decisão judicial no episódio Raposo Serra do Sol. O PL-490
é de lei ordinária, não requer quórum qualificado, nem maioria absoluta; exige apenas
quórum regulamentar e maioria simples.
Aliança que está fazendo falta.
Afirmei acima, faz falta uma aliança. Deveras, uma “santa aliança”, para lembrar
o pacto entre as potências conservadoras no começo do século XIX. Urge conjunção
de esforços proficientes entre produtores rurais e índios. Lideranças dos dois lados
promoveriam seus interesses, além de ajudarem o bem comum, se somassem esforços,
procurassem esclarecer o público e ampliar apoios. Os interesses são confluentes,
a disputa é artificial e contra a natureza das coisas. Ambos trabalham para crescer
na vida no mesmo ambiente, utilizam meios parecidos.
Retificadoras recordações. Ou,
por outra, melhor ainda, retificadores pingos nos is. A maior parte dos índios (imensíssima
maioria), mesmo mantendo usos e costumes, até mesmo os aperfeiçoando, nas suas
aldeias quer posto de saúde, escola, estrada, maior instrução e maiores possibilidades
de vida para os filhos. Abomina retrocesso e paradeiras. Tal maioria,
normalmente silenciada, marginalizada e excluída, tem direito claro à
participação, precisa ser incluída efetivamente na sociedade brassileira, ter
voz e vez. De fato, é a “sanior pars” dos povos indígenas. Que seus brados de
angústia e alerta sejam escutados, compreendidos e atendidos pela “sanior pars”
da opinião brasileira, dois polos que precisam se conhecer; teríamos assim um
arco voltaico saneador. Geraria luz para o conhecimento da questão, energia
para resolvê-la. Teria efeito restaurador, cristãmente civilizatório. Agiria
como vacina eficaz contra atrasos e retrocessos.
Índio não é porquinho-da-Índia.
Convém martelar para o bem dos índios e do Brasil, os indígenas não podem ser presas
passivas de organizações tomadas por delírios ideológicos, que os tratam como verdadeiros
porquinhos-da-Índia de experimentações que deram errado em todos os lugares em que
foram impostas, ainda hoje razão de sofrimentos, miséria e retrocessos civilizatórios.
Enfatizo, não podem ser cobaias, têm direito a voz e vez, em especial seus
melhores filhos que os representariam com maior proveito. Com discernimento e
agindo no rumo de maior e autêntica participação indígena, ainda é possível evitar
a derrocada provocada pelo engate dos povos indígenas às organizações do atraso,
cenário dantesco que se esboça. Só assim disporão dos índios dos instrumentos de
autonomia que lhe permitiriam tomar o próprio destino nas mãos. Em suma, que empunhem
meios eficazes para a prosperidade, conservando, e até aprimorando, é claro, toda
a ajuda estatal de que precisem. A felicidade autêntica vem da autonomia crescente,
do vento forte da liberdade, fundamentos de crescimento pessoal, nunca da condição
de cobaias passivas de ensaios utópicos. Melhorando o tema, ainda é possível ajudar
os índios para que rumem na via que escolherem e que nós sabemos pela experiência,
é a do aperfeiçoamento. Voltarei ao tema. [Postado em 28 de outubro de 2021 ▬
modificado]
A Constituição e os índios (1)
Péricles Capanema
Artigo 231. Na momentosa questão
do marco temporal, recorre-se sem cessar ao artigo 231 da Constituição, que, muitos
o alardeiam, abrigaria verdadeiro estatuto do índio. Reza o caput do mencionado
item: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Artigo 3. A exegese do 231, por
coerência constitucional, deve ser feita consoante o artigo 3º que coloca os fundamentos,
sobre os quais toda a carta é interpretada ▬ em particular, hermenêuticas sistemática
e teleológica. Comanda o mencionado artigo 3: “Constituem objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa
e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV
- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação”.
Construção da sociedade livre, o primeiro nomeado.
Contudo, uma sociedade só é livre se composta de pessoas que à vera são livres,
a saber, que podem usar amplamente de sua liberdade natural. De outro modo, pessoas
com inteligência razoavelmente desenvolvida, com grande autonomia, personalidade
bem estruturada. Vale para todos, vale, é claro, também para os índios. Então
se atenderia a objetivo constitucional: participação dos índios na sociedade
brasileira como cidadãos plenos.
Obstáculos na caminhada. Vou
mencionar como exemplo apenas um obstáculo a tal objetivo. Os índios têm sido vítimas
de doutrinas atrofiantes que empapam toxicamente a sociedade nacional, pelo
menos em todo o período republicano: foram reduzidos à condição estável de servos
da gleba, de outro modo, posseiros em terras estatais. Não podem avançar rumo à
plenitude, chapinam no atraso, acorrentados pelo obscurantismo. De momento, toda
a ação das esquerdas favorece algemá-los “in perpetuum” na condição de servos da
gleba, posseiros em terras estatais, agravando dependência e pobreza. Por que só
a posse e o usufruto fortemente controlados e cerceados? Por que não, ainda que
concedido gradualmente, de forma prudente e enérgica, o domínio? Seria a
plenitude da condição de cidadãos participantes. Tais populações seriam
retiradas de uma política estatal de isolamento que, sem dúvida, apresenta
traços racistas. Sei, minha proposta vai despertar reações, críticas, se for
muito vocalizada. Paciência. Está na mesa.
Aviso ainda, nada tem de original (abaixo veremos), é arraigadamente
tradicional e restauradora, tirei-a do baú das coisas velhas. Sem tal passo, a
liberdade sempre estaria coarctada. A construção de uma sociedade de fato livre
apresentaria defeitos insanáveis. Temos hoje, em seu lugar, a perenização da
sociedade de dependentes, que padecem de crescimento atrofiado. Minha proposta,
não é só minha, mas certamente de todo brasileiro esclarecido, é, com senso de medida,
gradualmente, trabalhar para que os índios alcancem logo que possível a condição
plena de cidadãos brasileiros. Agir em sentido contrário é batalhar por
posições obscurantistas.
Restauração regenerativa.
Com o domínio, teríamos restauração e ampliação de direitos pois, de muitos
deles, já gozaram largamente no passado colonial. Regeneraria tecido social dilacerado
artificialmente, retomaríamos a estrada da prosperidade, que tem o domínio (a propriedade
plena) em seu cardápio. Completaríamos de forma vantajosa para os índios construção
iniciada lá atrás pelos primeiros reis do Brasil. O que proponho, de fato, vai
além. É o trabalho para instauração no país de uma nova cultura no trato da
questão indígena, mais “indiofriendly”, mais arejada e mais ambiciosamente
inclusiva, fincada no objetivo de desenvolvimento pleno da pessoa humana e não
estaqueada em clichês carcomidos e organizações de origem estrangeira, bem como
na afirmação vaga, largamente imprecisa, e perigosa de que o índio se considera
parte da natureza. Antes de mais nada, o índio é pessoa humana, com seus direitos
e deveres, com seu objetivo natural de atingir a plenitude de suas
potencialidades, meta que a sociedade eo Estado têm obrigação de favorecer. É
rota de afirmação, prosperidade e progresso.
Caminho real. Reitero, o rumo saudável
representa o fim da sujeição atrofiante ao Estado-patrão ▬ entre nós, é o habitual,
desorganizado, inclemente, perdulário, autoritário. Dando as costas para o obscurantismo,
petrificado no período republicano, haverá obediência efetiva ao objetivo da Carta
de 1988, a construção da sociedade livre: No caso em espécie, a questão
indígena, teríamos generalização de liberdades naturais e autênticas. É óbvio, situação
a ser legislada com sensatez, e tendo como pano de fundo os institutos do Direito
Civil.
Desconfiança com o estatismo.
Explico-me um pouco melhor, repito agora
o que escrevi em artigo anterior, citando o ministro Fachin (no caso, inteiramente
insuspeito) em seu voto no RE 1.017.365: “Assim, as cartas régias de julho de 1609
e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III, afirmam o pleno domínio
dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamento:
‘os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem
lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma;
nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem
ordenados, salvo quando eles livremente o quiserem fazer’”. O mesmo reconhecimento
do domínio [e posse, claro] dos indígenas sobre as terras, lembra o ministro Fachin,
ainda se pode constatar em alvará régio de 1680: “Nada obstante o contexto fático,
o reconhecimento de posse e domínio sobre as terras que ocupam ocorre com o Alvará
Régio de 1680, o qual consignava: ‘[...] E para que os ditos Gentios, que assim
decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por
bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas,
nem sobre ellas se lhe fazer moléstia’”. Foi o Direito contemporâneo que suprimiu
o domínio, esbofeteando o Direito Natural. Já tarda a hora de retornar à trilha
real. Facilitaria a inserção, a participação, a inclusão dos indígenas na sociedade
brasileira. Seriam medidas eficazes contra a exclusão, que nos infelicita há décadas
(pelo menos). Voltarei ao assunto.
PL 490. Minha proposta requer
mudança constitucional, claro, a mais de debates amplos na sociedade. Em resumo,
não é simples. Tem a vantagem inestimável, acho, de abrir as cabeças, desenhar uma
solução que estimularia os índios a deixarem situações passivas, assumirem protagonismo.
Seriam donos do próprio destino, participantes sociais plenos e não condenados a
vegetar, para sempre, amarrados por utopias, pobres cobaias de grupos fanatizados
e servos da gleba de estatismos delirantes. De momento, temos providência imediata
e simples. A saída é começar pelo básico, o factível, procurar aprovar o PL 490.
[Ou PL de inspiração semelhante, aliada a outras iniciativas, já que a situação
para os produtores rurais piorou muito de 2021 para cá; o importante é não
desanimar]. para tal se requer o esforço de todos, em especial produtores rurais
e lideranças indígenas realmente preocupadas com a prosperidade contínua e crescente
de suas etnias. [Postado em 31 de outubro de 2021 ▬ modificado]
A Constituição e os índios (2)
Péricles Capanema
Estatização selvagem.
Na trilha do artigo anterior. Lá examinei a momentosa questão do marco temporal
e do RE 1.107.365. Reproduzo a seguir declarações esclarecedoras (e potencialmente
aterradoras) de Marcelo Xavier, presidente da FUNAI, por ocasião de audiência pública
virtual na Câmara dos Deputados em 1º de outubro próximo passado [1921].
Fatos-bomba. O terror decorre
da possibilidade de demolição social e econômica dos fatos-bomba ali apontados como
concebíveis e até inevitáveis, dependendo da virulência da vitória das correntes
indigenistas. Segundo o alto funcionário existem hoje 491 pedidos de reivindicação
de terras indígenas, que envolvem 253 milhões de hectares (em números redondos,
2,53 milhões de km2, aproximadamente 30% do território brasileiro). Ainda segundo
Marcelo Xavier, em estudo, existem 121 áreas. Em fase de declaração e delimitação
são 10 milhões de hectares. Já as terras indígenas regularizadas ou homologadas
somam outros 107 milhões de hectares (aproximadamente 13% do território brasileiro).
Foi didático o presidente da FUNAI: “Hoje nós temos em áreas indígenas no Brasil
o equivalente aos territórios de Portugal, Espanha, França e Suíça. Se nós formos
imaginar que o marco temporal será mudado com o tema de repercussão geral, em discussão
do Supremo Tribunal Federal, teremos o acréscimo de Alemanha, Itália, Hungria, Sérvia,
Grécia e Reino Unido como terras indígenas”. Terras indígenas? Em termos. Eufemismo,
adocica a realidade amarga. A propaganda divulga coisas assim. Nada aqui de fato
é terra indígena. É coletivismo, são terras da União. O usufruto é indígena. Estamos
diante de um amazônico programa de estatização selvagem.
Estatização selvagem furtiva.
Curiosamente, nenhuma liderança indígena, nenhum soba de ong ambientalista, nenhum
morubixaba de partido de esquerda levanta este ponto fundamental, entretanto óbvio
ululante. Bico calado, pois a estatização delirante interessa a todos eles, bruxos
do coletivismo, arautos de fatos-bomba, agem como ativos demolidores do futuro
pátrio. Repito, a propriedade (domínio) é pública; os índios têm a posse, são modernos
servos da gleba. Na prática, sonho de utopistas nefelibatas, adeptos de macabros
tentames mitomaníacos que só trouxeram tragédias onde tiveram vigência.
Matéria constitucional.
Aqui está ponto de imprescindível consideração (nem vou tratar no momento de lei
natural e bem comum). Foco nele. A Carta Magna está sendo esbofeteada e não apenas
pelas considerações que exponho agora. Com efeito, a Constituição em seu artigo
170 funda a ordem econômica, entre outros pilares, sobre a propriedade privada.
E o inciso XXII do artigo 5º considera fundamental o direito de propriedade. Uma
tal ameaça à propriedade privada no Brasil, se vitorioso o voto favorecedor do coletivismo
do relator Edson Fachin no RE 1.107.365 (voto que nega a tese do marco temporal)
é compatível com a Constituição? Pelo menos, não fere a “mens legis” e a “mens
legislatoris”? Aplicado mesmo que gradualmente em todas suas consequências, agora
latentes, segundo o entendem as correntes ambientalistas mais extremadas e nunca
satisfeitas, estará extinta a propriedade privada no campo e, por ricochete, com
o tempo, nas cidades. Tais ambientes, generalizados na academia e nos meios de
divulgação, levados pelo frenesi radicalizador das posições supostamente
humanitárias, pintam com cores aliciantes a vida comunal primitiva e criam,
pelo impulso da lógica interna de suas posições, ativos caldos de cultura para
os vírus portadores de igualitarismo totalitário e primitivismo utópico, que,
forças vivas do retrocesso, empurram no rumo da decomposição social, etapa
precursora da dissolução do organismo nacional.
Consequências estapafúrdias.
Tudo isso, para atender a agrupamentos indígenas, universo populacional justificadamente
querido, mas população relativamente pequena, infelizmente ainda atendido de forma
insuficiente em muitos aspectos. Com efeito, conforme o censo do IBGE de 2010, existiam
na época no Brasil cerca de 800 mil índios. O número agora estará próximo ao de
2010, em torno de 0,4% da população. [Segundo o Censo de 2022, hoje, aproximadamente
1,6 milhão]. A maior parte deles vive em áreas urbanas. Esses indígenas, se vitoriosa
a hermenêutica constitucional inaugurada abusivamente pelo ministro Fachin em seu
voto, virarão posseiros de terras públicas, terão potencialmente o país inteiro
como “terra que tradicionalmente ocupam”, segundo interpretação elástica e abarcadora,
já muito difundida (cfr. artigo 231 da Constituição). Será o fim da segurança jurídica.
Aqui aparecem como critério de juízo dois outros princípios constitucionais, esbofeteados,
o da razoabilidade e da proporcionalidade. Implícitos na Lei Maior, são balizas
para verificar se os atos praticados estão em harmonia com valor supremo animador
do ordenamento jurídico, a justiça.
Entulho autoritário xodó.
Temos entulho autoritário vergastado pelos hierofantes do progressismo e entulhos
autoritários que são xodós desse mesmo pessoal, objetos de carícias permanentes
▬ verdadeiros tumores de estimação, ninguém pode tocar neles. Vou apontar xodó intocável,
ai de quem quiser mexer aí: a lei 6.001 de 19/12/1973 (governo Médici) que dispõe
sobre o Estatuto do Índio. Estabelece que as terras indígenas serão demarcadas por
ato administrativo, após laudo de antropólogo nomeado pela FUNAI. O presidente da
República tão somente homologa a demarcação. O PL 490/2007 mexe aqui, tira da presente
legislação seu caráter autoritário e excludente, tornando-a mais inclusiva e participativa.
Nada disso, deixa como está, excludente assim, “bom demais”, está berrando a esquerda.
O mencionado monturo da ditadura abominada não pode ser mexido, o veneno aí contido
pode extinguir a classe rural. “Es resquício legal buenísimo”, diria partidário
do governo de Salvador Allende. Como se sabe, Salvador Allende pouco precisou
mexer na legislação para levar adiante seu programa expropriatório. Havia nela
muitos “resquicios legales” que permitiam pôr em prática o programa da
coligação socialo-comunista.
PL 490/2007, tábua de salvação.
O caso não tem saída? Tem, boa, mesmo que provisória. De momento, o mais razoável,
urgente e inafastável é trabalhar pela aprovação do acima mencionado PL 490/2007,
transformá-lo em lei. A situação legal passará de excludente, burocrática e discricionária
para inclusiva e participativa. Muitos opinarão, muitos participarão, haverá maior
influência dos agentes envolvidos, vozes populares mais fortes. É certo, as correntes
assim chamadas ambientalistas (esquerdas de todos os matizes) chiarão, com a aprovação
do referido PL 490 não cessarão as batalhas ideológicas, políticas e jurídicas.
Haverá ações no Supremo contestando sua constitucionalidade. [O PL 490/2007 não
foi aprovado; como disse, a situação hoje está muito pior]. A seguir, o âmago da
argumentação para transformar o Brasil numa arena permanente de expropriações coletivistas
(sem indenizações, posse originária), manifestado sem rebuços pelo advogado Eloy
Terena: “Essa interpretação que eles fazem [do artigo 231] é gramatical do verbo
ocupar. É a interpretação mais pobre que existe. A Constituição não falou que são
direitos dos índios às terras que momentaneamente ocupam. Os direitos são sobre
as terras tradicionalmente ocupadas. A Constituição não trabalhou com elementos
temporais. A marca da tradicionalidade é sobre o modo como o indígena se relaciona
com o seu território. Não tem nada a ver com tempo." Não tem nada a ver com
o tempo a interpretação do artigo 231: é atemporal, é modo de ocupação, a terra
ocupada em algum momento por tribos indígenas é tradicionalmente ocupada. Não contam
para nada os institutos do Direito Civil. Todo o território nacional já foi ocupado
em algum momento por tribos indígenas ou até por grupos nômades. Um antropólogo
nomeado pela FUNAI vai resolver o caso. Achou instrumentos, resquícios da ocupação
pretérita? O caso potencialmente estaria resolvido em favor da declaração de terra
indígena.
Interesse nacional cimeiro.
O julgamento do RE 1.037.365 não é sobretudo do interesse de proprietários rurais;
abarca de forma eminente cada brasileiro, inclusive índios que em sua esmagadora
maioria querem, com apoio maciço do povo, aperfeiçoar-se, crescer na vida, serem
cidadãos plenos, atuantes e influentes. Não podem ser reduzidos, quiçá indefinidamente,
a cobaias passivas de experimentações mitomaníacas. [Postado em 28 de novembro
de 2021]▬ modificado
Amazônia no centro
Péricles Capanema
No Exterior, ponto candente. Se
você fosse um leitor comum (ou cidadão comum) dos Estados Unidos ou de algum país
europeu (Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, por exemplo), você saberia
vaga e distraidamente que longe de suas antenas palpita uma imensa área chamada
América Latina, onde existem cidades grandes, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro.
Saberia ainda que por lá se sucedem meio confusamente golpes de Estado, pobreza,
tráfico de drogas, roubalheira política. Um ponto e só um ponto lhe chamaria vivamente
a atenção: a Amazônia. Conexo com ele, desmatamento ilegal, florestas pegando fogo,
devastação ambiental. Situação normal? Bastante anormal. Ajuda o Brasil? Prejudica
em especial aos mais pobres daquela região, são dezenas de milhões. Porção das flechas
que perfura a carne dos mais pobres no norte do país é afiada pela ação dos corifeus
da propaganda hostil contra a Amazônia.
Dados úteis. Vamos dividir o problema
em seções, ficará mais fácil entender o caso. A Amazônia não é só Brasil. Mas a
grande antipatia mundial pelo suposto descaso em relação à Amazônia recai quase
tão-só sobre Pindorama, o vilão da história. A Amazônia é uma floresta tropical
úmida que cobre a maior parte da Bacia Amazônica. Esta bacia hidrográfica está localizada
no Brasil, Bolívia, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Suriname, Peru, Venezuela,
Equador. Cerca de sete milhões de quilômetros quadrados, dos quais cinco e meio
cobertos pela floresta. A maioria da floresta tropical está no Brasil ▬ 60% dela.
A Amazônia compreende mais da metade das florestas tropicais da Terra e tem a maior
biodiversidade no mundo nesse tipo de bioma. A chamada Pan-Amazônia tem área de
aproximadamente 7,8 milhões de km2 e abriga por volta de 40 milhões de habitantes.
Amazônia Legal, tantas vezes falada, é outra coisa. Corresponde à área de atuação
da SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). Compreende floresta
tropical, cerrado e ainda outras formações. É região composta de 772 municípios
localizados em Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso,
Maranhão. Tem superfície aproximada de 5.015.067,75 km2, 58,9% do território brasileiro.
45% do território da Amazônia Legal constitui área protegida legalmente. Ela abriga
cerca de 30 milhões de brasileiros e seu PIB é por volta de 9% do PIB nacional.
Agricultura, pecuária, mineração representam o futuro da região.
Tema envenenado. Aqui, realidade e
propaganda se mesclam, acavalam-se desconhecimento de fatos e sobrevalorização de
versões. É comum, grassam versões fantasiosas, fatos esclarecedores são ouvidos
com apatia. Para o bem e para o mal, a Amazônia foi lançada no centro do interesse
mundial. Na questão se aninha não apenas o interesse razoável e fundamentado, mas
ainda crepita um desvelo artificial, irritadiço, inflado. Cada vez mais incendeiam
os espíritos a sustentabilidade ameaçada e o desmatamento desbragado. A fermentação
induzida no Ocidente leva as populações do mundo desenvolvido a ter birra do Brasil
(e não apenas do governo [estávamos em 2021]), supostamente desleixado com a a preservação
de uma das maiores riquezas da Terra, penhor de futuro de prosperidade, patrimônio
comum da humanidade.
Obrigação de esclarecimento.
Preocupa a opinião hostil que se alastra; é dever de todo brasileiro, na medida
de suas possibilidades, procurar virar o jogo no cenário internacional (lá fora).
No particular, tem pouco valor redarguir que os fatos apontam em direção contrária.
Em geral se atribui a Gustavo Capanema observação sempre útil de lembrar quando
nos debruçamos no exame dos cenários públicos: na política a versão vale mais que
os fatos. As versões falsas precisam ser desinfladas, em boa parte, aí sim, pela
difusão destra dos fatos que as desmontam. É ainda necessário somar esforços internamente
no mesmo sentido.
Lenha na fogueira. Não acho direito
nesse momento, irrefletidamente (no mínimo), jogar lenha na fogueira, quando o importante
é procurar extinguir o fogo. Pois o Brasil vai perdendo apoios nos Estados Unidos
e na Europa, setores importantes estão sendo fermentados por propaganda inamistosa.
Ao mesmo tempo, outro fato enorme assoma: a China está silenciosa e de sorriso enigmático
com lampejos cativantes. Duas forças de tração opostas, uma atrai, outra afasta.
Para onde iremos?
Rumo que faz falta enfatizar.
Destaco agora observações lúcidas, enraizadas na experiência e na erudição, impulsionam
rumo de solução efetiva. Alysson Paolinelli é dos agrônomos de maior reputação no
Brasil[faleceu recentemente]. Professor universitário, antigo secretário da Agricultura
e ministro da Agricultura, opiniões pé no chão, sempre enfatizou a importância da
ciência, pesquisa e experiência na solução dos problemas da agropecuária. Observou
em entrevista recente sobre a Amazônia: “O Brasil está como vilão há muito tempo.
As viúvas do Muro de Berlim não morreram. É evidente que a Amazônia está sendo desmatada.
Mas 90% ainda estão preservados. Os outros 10% me preocupam. Agora, não será só
proibindo o desmatamento que vamos resolver o problema. Enquanto a árvore valer
mais deitada do que em pé não há polícia, não há exército que controle o desmatamento.
O caminho é a biotecnologia. Temos de achar pela ciência uma forma de tirar rentabilidade
sem degradar o bioma. No momento em que a ciência botar a árvore em pé valendo mais
do que deitada, pode tirar a polícia da floresta. A primeira forma é o manejo sustentável
da árvore. Hoje, temos técnicas de manejo sustentado com belíssimos resultados.
Você corta a árvore que lhe interessa e dá dinheiro, planta duas ou três no lugar
dela”.
Extrativismo de sobrevivência.
Paolinelli colocou então cores fortes, talvez tenha exagerado em muitos aspectos,
mas mostrou por onde se pode resolver sensata e permanentemente o problema: “Nós
temos na Amazônia mais de 25 milhões de pessoas famintas com o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) mais baixo do país. Estão fazendo extrativismo. Elas precisam de renda.
Você tem de arrumar uma forma de garantir renda para a população para que, pelo
menos, o trópico úmido não seja mexido. Ele não serve para plantar, para boi. Chove
demais”. De outro modo, só pelo estímulo a novas formas de exploração econômica
(na agricultura e pecuária), bem como pelo aumento da produtividade, será possível
impedir que a floresta seja utilizada para subsistência pura; cessaria então o extrativismo
da sobrevivência. Foi além: “A organização do produtor é outro problema. As cooperativas
do sul conseguem entrar na casa do consumidor europeu, asiático, porque os produtores
são organizados. E na Amazônia e no Nordeste a gente não tem isso”. Acima está
o que faz enorme falta ao presente debate: quem sejam mais ouvidas, melhorando,
que sejam determinantes, as opiniões das pessoas de ciência segura, irrigadas
por longa e profícua experiência, mirrando assim a influência tóxica dos
demagogos e oportunistas.
Impulso sensato no rumo certo. Em
resumo, os problemas da Amazônia poderiam ser minorados com policiamento mais efetivo,
vigilância mais estrita. São medidas necessárias e urgentes. Contudo, só serão enfrentados
com sabedoria efetiva se, ao longo dos anos, houver aumento expressivo de pesquisas,
procura de métodos novos, aplicação de capitais e organização da produção. A demagogia
vai pelo rumo contrário: com ela, a pobreza se agravará, generalizar-se-á a miséria,
teremos na raiz agravamento das principais causas da presente degradação ambiental.
Caminhando pela estrada iluminada parcialmente pela lanterna de Paolinelli, lucrarão
(e muito) as populações residentes na Amazônia, o Brasil e o mundo. [Postado em
1 de dezembro de 2021 ▬ modificado]
A construção permanente do caos
Péricles Capanema
Oxímoro trágico. Sei, espanta,
desconcerta, parece oximoro. Pois caos é destruição, não constrói. No Brasil, na
situação abaixo delineada, arrebenta, destrói, infelicita, porém deixa impressão
de longa, dissimulada e astuta construção.
Chacina da segurança jurídica.
Caso o plenário do STF decida majoritariamente a favor do relatório (e voto) do
ministro relator Edson Fachin no julgamento do RE 1.037.365 (a momentosa questão
do marco temporal), teremos, inevitavelmente, pelos anos afora, a produção permanente
do caos no campo brasileiro, graduada apenas segundo conveniências dos movimentos
revolucionários e do grupo político que tenha as rédeas em Brasília. Evaporará a
segurança jurídica. E com ela desaparecida, cairá o investimento na agricultura,
minguará o desejo de poupar e produzir dos produtores rurais, a produtividade despencará,
tombarão a geração de emprego e renda. Produção menor, alimentos mais caros nas
cidades.
Conceito atual e vigente de índio.
O caos começa aqui. O leitor já imaginou qual é o conceito de índio segundo o direito
em vigor no Brasil? Quem pode ser chamado de índio no Brasil? Imagine por segundos
uma definição, qualquer uma, e depois tome o choque da realidade. O voto do ministro
Kassio Nunes Marques no referido RE 1.017.365, esclarece com nítida singeleza a
noção: “Índio pode ser entendido como qualquer membro de uma comunidade indígena
que seja aceita como tal”. Vive numa comunidade; é aceito por ela como membro. Pronto.
É índio. E comunidades indígenas podem existir no mato, nas periferias, no arranha-céu
de uma grande capital. Dessa forma, um norueguês imigrante, louro, olhos azuis,
com pai e mãe vivendo na Noruega, e que resolva viver (e é aceito) numa comunidade
indígena brasileira ▬ cujos membros podem morar num apartamento no centro de
São Paulo, terem lá empregos e lá estudarem, e ali também estar abrigado nosso
imaginado norueguês, que não sabe uma palavra do idioma nativo deles ▬ sabe o que
é, segundo o Direito brasileiro? Índio. Dos pés à cabeça, por dentro e por
fora. E, se ao lado dele, estiverem 100 suecos e 200 dinamarqueses nas mesmas condições?
Simples, mais 100 suecos e 200 dinamarqueses índios. Pode ser, claro, um norueguês
revolucionário profissional, agitador etc. O professor José Afonso da Silva, citado
por Nunes Marques, reforça a tese: “O sentimento de pertinência a uma comunidade
indígena é que identifica o índio”.
Moradia dos índios.
O caos continua nessa moxifinada. Onde moram os índios? O ministro Kassio Nunes
Marques cita a estatística mais recente que tinha em mãos: “Em 2010, dos 817.963
índios que habitavam o país, 315. 180 já se encontravam em cidades, como indicou
o Censo Demográfico realizado pelo IBGE”. Hoje, a proporção será maior; certamente
população majoritariamente urbana. Como viviam nas tabas e cidades? Cita em abono
de suas considerações Edson Vitorelli Diniz Lima: “O que se quer afirmar em linguagem
mais vulgar, é que o índio não deixa de ser índio por usar calça jeans, telefone
celular ou computador”. Bons exemplos, agora, de fenômeno generalizado de norte
a sul. Txaí Suruí, a índia que representou as comunidades indígenas na COP-26 cursa
Direito em Porto Velho. Nasceu lá. A mãe dela (d. Neidinha Suruí) chama-se e Ivaneide
Bandeira Cardoso, é filha de seringueiros, mora em Porto Velho desde os 12 anos,
não tem sangue indígena, próximo pelo menos, tem 5 filhos, dos quais dois com o
cacique Almir Suruí. O seu Almir trabalha em Porto Velho como assessor de ong indigenista.
D. Neidinha tem graduação em História, mestrado em Geografia e é doutoranda, também
em Geografia ▬ universidade federal. À vera, família de ativistas, que vive do ativismo.
Posse indígena, negotium perambulans in tenebris.
Mais caos derivado de ativismo extremista, que cavalga
irresponsabilidades teóricas e conceitos delirantes. Estes 800 mil índios, dos quais
mais de 300 mil vivem em cidades, segundo o censo do IBGE de 2010, têm em geral
as preocupações do brasileiro comum (emprego, estudo, diversão). Sofrem com o desemprego,
assistência precária do Estado, educação ruim. E nas reservas com o garimpo ilegal,
invasões, bandos criminosos. De modo particular, na maioria das vezes, suas preocupações
são as de um brasileiro de condições modesta: alimentos, emprego, segurança, educação,
crescer na vida. Com base nos institutos do Direito Civil referentes aos vários
tipos de posse e à propriedade, v. g.. usucapião, decadência, prescrição, seria
possível obter situações vantajosas para os indígenas ▬ comunidades, organizações,
famílias, indivíduos. Favoreceriam seu crescimento pessoal, prosperidade, inserção
e participação na sociedade brasileira. Diminuiria muito a criminalidade
endêmica nas reservas atuais. Lembra o ministro Nunes Marques em seu voto: “A posse
civil, baseada na teoria objetiva de Jhering, é o exercício de fato, pleno ou não,
de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1196 do Código Civil). Consiste
na exteriorização fática da propriedade”. Simples e claro. A posse indígena tem
como base a teoria do indigenato, adotada pela Constituição Cidadã. É um avantesma.
O ministro Nunes Marques tentou ▬ inutilmente, é verdade, talvez por ser tarefa
impossível ▬ pôr um pouco de clareza no frankenstein teórico: “A posse indígena
não corresponde ao simples poder de fato sobre uma coisa para sua guarda e uso,
com consequente ânimo de tê-la como própria. É instituto constitucional embasado
na ancestralidade e na valorização da cultura indígena, cuja função é manter usos,
costumes e tradições”. Atenção, embasada na ancestralidade. Os índios ali estiveram,
têm direitos de ali manter costumes. Inclusive a dona Neidinha, e as centenas de
milhares de pessoas em situações análogas, que de indígena nada têm. Tudo é muito
contraditório? É. Mas a doutrina sobre a qual descansa a legislação, disse eu, e
repito, é um frankenstein. Dá margem para tudo. O próprio ministro Nunes Marques
reconhece que, com base nela, todo o Brasil poderia ser transformado em terra de
posse indígena: “A teoria do indigenato foi desenvolvida no começo do século XX
por José Mendes Junior. Segundo ela, a posse indígena sobre as terras que tradicionalmente
ocupam é tida como direito congênito, inato, anterior à criação do Estado brasileiro.
[...] Em seu grau máximo, a teoria do indigenato teria potencial de eliminar até
o fundamento da soberania nacional. Se o índio era senhor e possuidor de toda a
terra que um dia fora sua, por direito congênito, como poderia o Brasil justificar
o seu poder de mando sobre o território [...] em processo de devolução aos legítimos
senhores?”
Produção do caos. Dorme na curva da
esquina um caos agrário tecido com expropriações sem indenização e inseguranças
insolúveis, fermentado e comandado por magotes extremados, fanatizados e
insaciáveis ▬ nunca estarão satisfeitos, vivem disso. Reitero, pairará ameaçador
no horizonte se dormirem no ponto as lideranças responsáveis. É espada que paira
sobre a cabeça dos produtores rurais. Mais, sobre a cabeça de cada brasileiro.
Tábua de salvação no PL 490.
Como afastar a ameaça, que pode estar próxima. Há um modo factível, aprovar o PL
490, já seria um bom começo [de momento, tudo o indica, não mais factível, se
aprovado, o Presidente certamente o vetaria no todo ou em partes]. A nova lei instauraria
em larga medida a segurança jurídica no agro brasileiro, permitindo seu
progresso. Contudo, é praticamente certo, seria objeto de ações no STF
questionando a constitucionalidade, com evidente ameaça de retrocesso. A
batalha continuaria. Como terminaria? Impossível prever. Uma coisa, porém, é
certa: a vivacidade das reações no público, em especial nos setores ligados ao
campo, em amplíssima medida determinaria o futuro da questão. [Postada em 3 de
novembro de 2021 ▬ modificado]
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