O COVID-19 e santo Antão
Péricles
Capanema
Não mais tolerando
o confinamento, muitos estão jogando a toalha. Como que sufocados, querem sair
logo de casa, tomar um ar, espairecer, pelo menos dar umas voltinhas no
quarteirão; estão enjoados com as pessoas que veem todos os dias, precisam já ver
gente diferente, sentir outras pessoas em volta, conversar sem a máscara. E,
não menos importante, machuca muito a sensação do abandono, tantas vezes acabrunhante,
em especial a falta de contato com familiares e amigos. Enfim, o isolamento
para muitos está cobrando preço quem sabe excessivo. Abertura já,
flexibilização já. Não ligam para fases, nem para cores, seja o que Deus
quiser.
Em curto,
o isolamento prolongado amargura e desorienta. Sumiu o bem-estar psicológico
que propiciava a vida da movimentação livre, cafezinho no bar, pastel na
padaria, longas passadas e paradas diante das lojas. Em rumo contrário ▬ com a
economia em queda, não obstante promissores sinais de recuperação ▬, avultam no
caminho, como assombrações, a insegurança, a incerteza e o medo do futuro. Em
casos sem conta também a grana curta, todavia, por outro lado, muita gente está
percebendo o que antes não chamava atenção, é possível com menos viver
igualmente bem.
Vivemos
numa civilização do toque, do contato, do calor humano. Da conversa, da
conversinha e da falação. Emoções e sentimentos se expressam pela proximidade. Estávamos
acostumados com tudo isso e desapareceram da noite para o dia, mudou o panorama.
Olhamos para os lados sem saber o que fazer e a quem recorrer. Será o fim da
linha? Sair agora do confinamento? O preço poderá ser ainda mais alto. Não sou
médico, nem autoridade pública para fazer reparos e dar orientações, cujos
fundamentos, melhor que eu, conhecem os especialistas.
Corta. Meu
foco aqui é outro, o entretenimento, bem de primeira necessidade. Tem muita gente
mundo afora enfrentando riscos de internamento em UTIs, sequelas permanentes,
até morte, para sorver com delícias alguns minutos de distração. Pesam os prós
e contras e se lançam, ao voltar parcialmente à normalidade do período anterior
ao COVID-19, na aventura do perigo calculado para tentar escapar da depressão, construir
barreiras contra desequilíbrios psíquicos e fortalecer defesas do organismo. Os
ares novos permitem desviar o olhar, que seja por pouco tempo, das perspectivas
minguadas do confinamento, bem como divisar horizontes maiores e dar as costas
para ambientes em que o futuro aparece toldado pela neblina das incertezas.
Entretenimento,
bem de primeira necessidade, dizia. Significa divertimento, distração, diversão.
Não é só isso. Dou aqui à palavra também significado pouco usual, talvez novo. O
trabalho, o esforço, as provações, a seu modo, têm condições de fazer parte do entretenimento.
Entreter significa também ocupar o tempo com esforço estrênuo em algo útil e,
em consequência, deixar-se dominar pela sensação da vida justificada. E assim
fortalecer os nervos espirituais, formando, ampliando e enrijecendo a
personalidade. Um soldado numa trincheira, debaixo de saraivadas mortais de
balas e granadas, pode ter em plenitude tal sensação. Igual modo, uma
enfermeira exausta, lutando para salvar vidas numa UTI repleta de pacientes com
COVID-19. Alegria na fina ponta da alma, mantida longe das depressões.
Corto de
novo. O que faz santo Antão no título, tem alguma coisa a ver com o assunto? Tudo.
Pensava nos sofrimentos do confinamento. Todos fugimos do sofrimento, mas não
do confinamento. Surgiram naturalmente as figuras dos monges do deserto, que
fugiam da sociedade e se afundavam no deserto, buscando voluntariamente a
solidão [sob tantos aspectos forma extrema de confinamento]. Na solidão voluntária
encontravam significado para a vida, imprescindível para a felicidade. E assim,
por associação de ideias, surgiu esmaecida, lá no fundo, a figura de santo
Antão, em muitos sentidos, o primeiro e o maior dos ermitãos, sol no nascedouro
da vida monástica no Ocidente. Santo Antão tem todos os títulos para ser o padroeiro
dos presentes dias de confinamento, ser nosso intercessor para que transcorram
de maneira proveitosa, ao mesmo tempo entretida e virtuosa, para cada um e suas
famílias. Santo Antão, rogai por nós.
Intitulado
o pai de todos os monges, santo Antão, segundo seu biógrafo santo Atanásio,
bispo de Alexandria, nasceu na Tebaida, no Alto Egito, em 251 e faleceu em 356.
Viveu 105 anos, portanto, séculos 3º e 4º. De família aristocrática e rica,
perdeu os pais por volta dos 20 anos. Logo depois, em seguimento aos conselhos
evangélicos, vendeu o que tinha e distribuiu aos pobres, estabelecendo-se como
penitente nos arredores da vila em que tinha nascido. Conheceu outros eremitas
por ali, procurava imitá-los, frequentava a igreja. Sentiu por volta dos 35
anos chamado para vida mais distante dos homens e buscou no fundo do deserto
fortificação militar antiga e abandonada, onde se trancou. Amigos seus levavam
a comida (pão) que lançavam por cima do muro. Muitos o procuravam, mas em geral
não os recebia a não ser muito raramente. Vinte anos depois, já caminhando para
os 60 anos, aceitou orientar pessoas que
ali queriam se fixar como monges. Impressionou a todos quando deixou a
fortificação, forte e sadio como aos 35 anos. Ao redor dali, sob orientação do
santo, foram fundadas ermidas e comunidades que buscavam a perfeição cristã. Um
sem-número de eremitas e cenobitas viviam nas proximidades sob sua luz. Santo
Antão, por duas vezes deixou a região para ir a Alexandria; na primeira para
apoiar cristãos perseguidos, na segunda para lutar contra o arianismo. Com fama
de santidade, eram numerosos os que buscavam seus conselhos em viagens ao local
ou por carta, entre os quais o imperador e seus dois filhos.
A vida
monástica ali praticada, da qual ele foi o motor, repito, está na origem do
monaquismo cristão, amplo e importante impulso de piedade, com enormes reflexos
civilizatórios, do qual surgiu a Europa, tal qual a conhecemos. E a América. É
lícito conjeturar, quase nada de grande do que produziu a Europa, teria
existido sem o enérgico impulso inicial dado por santo Antão, imerso na solidão
voluntária, do fundo de um deserto.
Quem não fica
tocado, caminhando pela serra da Canastra, ao ver o filete de água de onde
provém o rio São Francisco, a nascente histórica? Ou, mesmo olhando o começo do
rio Samburá, a nascente geográfica? Ali começa tudo. Até se perder no oceano
Atlântico, quase 3 mil quilômetros depois, o rio São Francisco fertiliza, alimenta,
transporta, embeleza. Santo Antão é o filete de água do monaquismo, impulso
inicial de incalculáveis rios de virtude, cultura, arte, oração, civilização ▬ enfim,
de perfeição natural e sobrenatural. Avanço civilizatório de fato está aqui.
Concluo. Santo
Antão viveu entretido até os 105 anos, a maior parte dos quais na mais completa
solidão ▬ na oração, na penitência, na leitura e reflexão, nos trabalhos de
cultivo e criação. Dali, por graduais e sucessivos efeito aprimorantes, via de
regra em círculos cada vez mais afastados, foi surgindo sociedade mais
moralizada e civilizada. Sob a luz de tal exemplo, no confinamento, para cada
um, podem surgir visões mais abrangentes de considerar a vida, maneiras mais apuradas
de convívio, até de preparar pratos, tanta coisa mais, que poderão melhorar
para sempre a vida das pessoas, das famílias, dos círculos próximos. Mais
ainda. O confinamento pode ser destrutivo, contudo tantas vezes esconde bênçãos. Cabe a nós não
as deixar passar ao largo.
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