A cura do mendigo cego
Péricles Capanema
Cegueira involuntária e cegueira voluntária. Estava lendo noticiário nacional, mas o que
me vinha à cabeça estava longe dele, era a cena poética da cura do cego de Jericó.
Corrijo-me, em parte, é falso o que afirmei. Vinha ao espírito não só a pobre cegueira
involuntária do mendigo cego curado por Jesus, mas a situação dantesca da cegueira
voluntária, realidade amazônica, fruto dos erros da inteligência e das
prevaricações da vontade. Cegueira voluntária, real ou apenas moralmente; um
homem que fura os próprios olhos é sempre cena dantesca. A primeira foi eliminada
no mendigo pela voz de Cristo.
Ativismo compassivo. Teremos força para eliminar a segunda, a voluntária?
Ou, por outra, existe cura para a noite voluntária do espírito? Para alguém que
se inflige a cegueira mental, pior que a material padecida por um mendigo nas estradas
da Palestina? Existe, sim. Qual? Voluntária, também. Esclarecendo-o, ajudando-o
a mudar o rumo da vontade, estimulando novos hábitos de pensamento e conduta. É
ativismo compassivo. Aviso, sob a luz da compaixão, cegueira voluntária e
vacinação serão o miolo do artigo. Além da cura do cego de Jericó.
A tua fé te curou. Jericó, como se sabe, fica na Palestina, Cisjordânia,
às margens do rio Jordão, a umas cinco léguas de Jerusalém. “Cidade das Palmeiras”,
é considerada a cidade mais antiga ainda existente, e ainda a de menor altitude,
270 metros abaixo do nível do mar. Por ali entraram os judeus livres que
retornavam da escravidão egípcia. Jericó viu também a libertação de um pobre mendigo
do negrume dos olhos. “Ao sair Jesus da cidade
com seus discípulos e com uma grande multidão, estava sentado à beira da estrada
um cego mendigo, chamado Bartimeu, filho de Timeu. Quando soube que era Jesus o
Nazareno, começou a clamar: ‘Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim!’ Muitos
mandaram que se calasse, mas ele clamava ainda mais: ‘Filho de Davi, tem compaixão
de mim!’ Jesus parou e disse: ‘Chamai-o’. Chamaram o cego, dizendo-lhe: ‘Tem ânimo;
levanta-te, ele te chama’. Lançando de si a sua capa, de um salto levantou-se e
foi ter com Jesus. Perguntou-lhe Jesus: ‘Que queres que eu te faça?’ Respondeu-lhe
o cego: ‘Mestre, que eu tenha vista’. Disse-lhe Jesus: ‘Vai, a tua fé te curou’.
No mesmo instante recebeu a vista, e o foi seguindo pela estrada.” (Mc, 10,
46-52).
Compaixão. Foi a fé que curou o cego? Ou foi o coração
compassivo de Jesus, tocado pela firme manifestação da fé? Tocado pelo
sofrimento. Foi a compaixão. Deixo o mendigo cego de Jericó, agora curado.
Fazia o melhor, seguia Jesus pelas estradas poeirentas da Palestina. Agora, o
Brasil.
Compra e doa tudo. Olhar na pandemia, de outro modo, nas
necessidades da vacinação. Fez falta a compaixão. Trago de início os surpreendentes
(para dizer pouco) artigos 2º e 3º da recente lei 14.125/2021: “Art. 2º Pessoas
jurídicas de direito privado poderão adquirir diretamente vacinas contra a
Covid-19 que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização
excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro sanitário
concedidos pela Anvisa, desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único
de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de
Imunizações (PNI). § 1º Após o término da imunização dos grupos prioritários
previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a
Covid-19, as pessoas jurídicas de direito privado poderão, atendidos os
requisitos legais e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas,
desde que pelo menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam,
obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma
gratuita”.
Asfixia na vacinação e sufoco na economia. “Poderão adquirir vacinas, desde que sejam
integralmente doadas ao SUS”. E assim, até que todas as pessoas pertencentes
aos grupos prioritários sejam vacinadas (cerca de 77 milhões), as empresas
brasileiras podem adquirir quantas vacinas quiserem. Sem problema algum,
atendidas as exigências da lei. Mas terão de as doar, todas, ao SUS. Você
entendeu direito, leitor, expliquei direito, está na lei; não se trata de avantesma
de algum coitado delirante. Passado o limite dos grupos prioritários, sabe lá
Deus quando será alcançado (mantido o atual ritmo, Deus ajude que não, na média
da presente velocidade, 233 mil por dia, lá pelo fim do ano), as empresas poderão
adquirir vacinas, mas terão de doar 50% do lote para o SUS. O que vai acontecer
agora? É fato, o Brasil precisa de vacinas agora. Tenhamos compaixão do povo. Sem
mudança na lei, até que seja ultrapassado o limite dos 77 milhões, a bem dizer
nenhuma empresa estabelecida no Brasil vai comprar vacina. Óbvio ululante, ao
alcance do beócio mais chapado. Com isso, mais fechamento na economia, aumento
do número de mortes. Por que parece não ter importância? Por que parece não ter
urgência? Veremos abaixo. Na prática, está sufocada pelo Poder Público, na
fonte, no seu aspecto de momento mais urgente e importante, a colaboração da
iniciativa privada. Legislativo e Executivo, contudo, trombeteiam dia e noite
que querem e precisam com urgência da colaboração do setor privado para debelar
crise que já matou mais de 300 mil brasileiros e vai logo chegar aos 500 mil e,
ademais, sufoca a economia.
Ilegalidade evitável. Outra consequência desagradável e evitável da
lei. Por baixo do pano, ilegalmente, algumas empresas importarão e
clandestinamente vacinarão funcionários, familiares deles, donos, familiares
dos donos, amigos. Já está acontecendo. Elas na prática estão defendendo vidas,
estão garantindo o funcionamento do negócio, empregos. Quem as censurará?
Muitos; mas a maioria as julgará com leniência e até com aprovação. Alexandre
Padilha, deputado federal petista, requereu ao MP/MG que abra investigação e
que sejam confiscadas vacinas, que segundo divulgação na imprensa, compradas
por empresas, estariam sendo aplicadas em Minas Gerais. Circulam vídeos, existe
ação da Polícia. Nada disso precisaria acontecer para o bem de todos.
Ventania de bom senso. Arejamento, espaços abertos, ação
pelo bem comum, é o que fazem de forma crescente alguns ativistas compassivos. Trabalham
pelo interesse dos seus negócios, mas, ao mesmo tempo, sua ação revela
compaixão pela situação brasileira. Nesse sentido, e justamente, são ativistas
da compaixão. Diante do quadro de insensatez ovante (vou ficar por aqui), dois
empresários em especial, Luciano Hang e Carlos Wizard, liderando sem-número de
colegas da iniciativa privada, tentam viabilizar a entrada efetiva do setor
privado no combate à pandemia. Para tal pedem mudança na lei 14.125.
Liberdades legítimas. Argumentam, com
razão, que, em sintonia com o Poder Público, comprar vacinas e imunizar
funcionários, além de salvar vidas, diminuirá o peso nas costas do SUS e ademais
evitará fechamento de empresas, com consequente perda de empregos. Ação em
sintonia com o Poder Público, sublinham. E garantem, já têm 1 milhão de vacinas
que poderiam chegar logo ao Brasil. Declarou Luciano Hang ao Antagonista: “A lei veio com problema de fabricação. O Congresso e o governo deveriam dar liberdade total
para os empresários comprarem vacinas para seus colaboradores. O governo precisa de licitação para comprar, é um
processo demorado. O
setor privado tem muito mais velocidade. Eu comprei recentemente 200 cilindros de oxigênio
para Manaus. Não fiquei fazendo muita cotação. Queria para o dia seguinte e
consegui. O setor privado é mais rápido e muitos empresários estão querendo comprar vacinas.” Ocorre-me, a BMW e a Volkswagen fecharam fábricas
por temor da Covid-19. Houve diminuição da atividade econômica, queda de
empregos, prejuízo de fornecedores, sofrimento de famílias. As duas empresas
têm contatos importantes no Exterior, dispõem de aptidão grande para trazer vacinas.
Fechariam suas fábricas, se tivessem possibilidade de vacinar os funcionários?
Mas a lei-mordaça, cerceando liberdades legitimas, impede-as de agir a favor de
seus funcionários. O caso delas se repete Brasil afora. Uma lufada de oxigênio.
Li agora, Rolando Spanholo, juiz substitituto da 21ª vara federal de Brasília,
em controle constitucional difuso, considerou “usurpação inconstitucional da propriedade
privada” os dispositivos da lei 14.125, acima referidos. E autorizou um grupo
de agentes de turismo, delegados (Sindicato dos Delegados de Polícia de São
Paulo) e servidores a comprar no Exterior a vacina sem doar tudo para o SUS.
Razão, os mencionados dispositivos violam o direito fundamental à saúde, pois
atrasam a imunização. Espero que tal iniciativa prospere, suscite imitadores no
Brasil inteiro e dê copiosos frutos de vida e prosperidade.
Privilégio e desigualdade. Qual a razão para barrar brutalmente a entrada do
setor privado no fornecimento das vacinas? Qual o motivo que justificaria a medida
cruel que favorece a asfixia de pacientes e da economia? Dois motivos de ordem
doutrinária, nenhuma razão ponderável de ordem prática. Estão aqui: não pode
haver privilégio, não pode haver desigualdade, ambos mantras da cegueira
voluntária. É preciso deixar claro para os cegos, e são multidão, pois os
normais já veem, existem privilégios (leis privadas) que prejudicam o bem
comum, existem privilégios que favorecem o bem comum. O segundo caso deve ser
estimulado. Estamos nele. De modo igual, existem desigualdades que prejudicam o
bem comum. Mas existem desigualdades que favorecem o bem comum. O segundo caso
deve ser estimulado. É a presente situação. Funcionários e familiares de muitas
empresas serão favorecidos com a mudança da lei. As empresas continuarão
abertas. Ótimo. Sua situação privilegiada favorecerá também ao país. Ótimo de
novo. Com efeito, a inciativa do grupo de empresários traz liberdade para o
povo, liberdade e estímulo para a economia. Representa compaixão para milhares
de famílias. Apoiemos o que fazem esses ativistas da compaixão. Parabéns a eles
e a todos os que caminham nessa direção. Realço, combatem o preconceito ▬ tais
birras contra o legítimo privilégio e a legítima desigualdade são tumores de
estimação que corroem em especial a intelligentsia brasileira. E para
desgraça do Brasil o importante para os setores da cegueira voluntária é nutrir
tumores de estimação e daí sua antipatia com a evidente urgência em punçá-los. Furar
abcessos é tarefa imprescindível. Que tenham êxito os ativistas da compaixão,
seja como autores de ações judiciais, seja como promotores dos movimentos de opinião
pública e de esclarecimentos dos poderes constituídos em Brasília. Sua defesa
de legítimos interesses privados tem enorme repercussão social. Com eles
vitoriosos, sairemos do pântano do retrocesso e avançaremos em estrada segura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário