segunda-feira, 1 de março de 2021

Obsessões genocidas

 

Obsessões genocidas

 

Péricles Capanema

 

O artigo poderia ter outro título: obsessões homicidas. De quem? Nossas, infelizmente temos obsessões homicidas. Fácil apontá-las, curá-las é tarefa hercúlea. Estamos enterrados em gravíssima crise sanitária, cresce o número de mortes em decorrência da disseminação do COVID-19 e de suas variantes. Governos, mundo afora, para evitar contágio, fecharam suas portas a viajantes provenientes do Brasil ▬ viramos um leprosário para eles. Não há como fugir da comparação, temos semelhanças com os leprosos de épocas passadas, os povos nos evitam e nos isolam na tentativa de impedir a disseminação da enfermidade mortífera. O toque de recolher, o lockdown (fecha tudo), as restrições à circulação estão na ordem do dia. O perigo é nos transformarmos, culpa nossa, em leprosário de enfatuados obsedados. Mais disso abaixo.

 

É urgente escapar da enrascada. Mas como sair dela? Cortando as raízes do problema. Existe um consenso, a bem dizer geral, quase unanimidade, aqui vai: com a maior velocidade possível, generalizar a aplicação das vacinas. População vacinada significa vidas salvas e reabertura da economia. Sob certo ângulo, vida e prosperidade contra morte e penúria. Em resumo, o programa básico de salvação nacional se enuncia de forma simples, bastaria comprar muitas vacinas autorizadas pela ANVISA e aplicá-las.

 

Fomos lerdos, hoje temos só o Butantan (governo do Estado de São Paulo) e Fiocruz (governo federal), na linha de frente. Ótimo, ainda bem, pelo menos duas instituições respeitadas fornecem, ainda que menos do que seriam necessárias, as vacinas. Ambas trabalham com insumos provenientes da China, o que nos sujeita de certo modo ao governo chinês. Não é a hora de realçar que, além dos acordos com a AstraZeneca, certamente poderiam ter sido firmados acordos com empresas ocidentais, com sede nos Estados Unidos ou na Europa. Foi o que fizeram países europeus, asiáticos e latino-americanos.

 

Um deles, o Chile, serve de exemplo. Graças em parte ao faro empresarial do seu presidente, em fins de junho já terá vacinado toda a população. “El País” ainda destaca a “a musculatura comercial de uma das economias mais abertas do mundo”. O país firmou acordos com Pfizer, Sinovac, Johnson & Johnson, AstraZeneca. Quanto a nós, no ritmo atual, oxalá se acelere, por ora aplicação de 250 mil doses por dia, vamos precisar para lá de dois anos para vacinar toda a população. México, Colômbia, Peru, Uruguai e Paraguai já pediram ajuda às autoridades chilenas. Um bom exemplo para o Brasil, pedir ajuda também, foi enormemente mais competente que nós, valeria a pena entrar na fila, ainda que no último lugar. Receio que o bom exemplo, humildade construtiva, seja inútil. Nossas obsessões cegam, impedem até soluções simples, apontam outro rumo, intervenção, estatismo, controle burocrático. O povo paga a conta, mas que importa? Caminhamos nesse passo rumo ao paraíso venezuelano ou cubano. Um dia chegaremos lá, é só ter paciência.

 

Diante da gravidade do quadro presente, insuficiência clara da ação federal (eufemismo), o normal seria a complementação com a conjunção de esforços de todos os que tenham possibilidade de ajudar. Um exemplo de tal suplementação está em curso, pode dar bons resultados, é a cooperação de governadores para comprar vacinas. Depois, se possível, espetarão a conta no Executivo federal. Foi o que pontuou há pouco Renato Casagrande (PSB-ES), expressando, informalmente, opinião de todos. Dezoito deles (27 no total, os ausentes manifestaram apoio à iniciativa) foram a Brasília na 3ª feira, 2 de fevereiro, para falar com autoridades, com laboratórios e tentar destravar o caso, fazendo jorrar o mais rápido possível cachoeiras de vacinas no país inteiro.

 

Aqui começam os sintomas do que acima qualifiquei de obsessão homicida. Declarou o governador do Espírito Santo: “Não haverá a formalização de um consórcio. Nossa ideia é comprar cotas proporcionais à população de cada Estado. Nenhum Estado comprará mais do que o equivalente ao percentual de sua população”.

 

À primeira vista, tem ares de política equitativa, compassiva, serena, sensata. Um bom começo, à vera, desde que seguida por medidas arejadas. iniciativas mais amplas. Conservando-se na primeira estação, será apenas desnecessário e tosco engessamento.

 

Com efeito, existindo Estados mais ricos e com folga de caixa, por que não buscar vantagens para todos, privilegiando os com maior liberdade e capacidade de ação? De outro modo, pôr em execução medidas esteadas em acordo amplo, que não prejudiquem a nenhum participante. Em resumo, deixar que os mais providos de recursos resolvam mais rápido seu caso. E assim, comprariam mais vacinas, atenderiam logo às populações, tirariam peso das costas do SUS, até poderiam ajudar a outros entes mais pobres. Suas economias se abririam mais cedo, acarretando reflexos positivos no País inteiro. Seráp ossível esse caminho, ou haverá sabotagem nos três níveis de poder, com inevitáveis sequelas de inércia econômica e atraso no combate à pandemia? Nossas obsessões avassalam-nos tanto que acho pouco provável.

 

Tem pior. O consórcio dos governadores, nas palavras do dirigente capixaba, propõe a ajuda empresarial de maneira “sui generis”: “Vemos, por exemplo o movimento Vacina para Todos, esforço que a Luíza Trajano está fazendo. Está tentando articular a participação dos empresários junto ao ministério da Saúde e os Estados. Acho que todo mundo tem de comprar para entregar ao plano nacional. Há empresários dispostos a comprar. Comprar e entregar para o ministério da Saúde. Defendo que as empresas que se dispuserem a adquirir vacinas repassem 100% das doses para o ministério da Saúde. Não é correto permitir que quem tem dinheiro se vacine primeiro”.

 

Você entendeu direito, leitor. A empresa compra, embala e depois entrega tudo para o governo. Não fica nem com unzinha vacina. É louvável, não resta dúvida. Estimula a vacinação? Óbvio ululante, não. Se a vedação doidivanas não enterrar de vez a iniciativa, pelo menos a inibirá de alto a baixo, atrasará horrores a solução do problema urgente. Teremos aqui exemplo inolvidável de opção preferencial pelo retrocesso. Prejuízo para a economia, aumento do número de mortes, desemprego maior, tudo com base em um só e mambembe argumento: “não é correto permitir que quem tem dinheiro se vacine primeiro”

 

Contudo, o digno governador capixaba não está só, seria querer demais. Enuncia opinião generalizada, compartilhada por espíritos suposta e ufanamente equânimes. São multidão. O normal, em país sem obsessões e xodós, diante da gravidade da crise, seria, vamos combinar, dentro de plano coordenado pelos poderes públicos, esporear as empresas a comprar vacinas para funcionários e familiares ▬ que doassem parte do lote para o SUS, ótimo. Haveria enorme e generalizado estímulo, benéfico a todos, traria significativo alívio para os cofres públicos, de momento exauridos.

 

Todavia, infortúnio antigo, vivemos em país (organismo doente), tem tumores de estimação já deitando metástases há décadas. Um deles é a idolatria do estatismo, a crendice tola e demolidora de que o intervencionismo em suas várias gradações, de regra boçal, sempre será benéfico. Na prática, retrocesso, atraso e ladroagem; o estatismo (e seu irmão, o intervencionismo) asfixia liberdades, gera pobreza, sufoca criatividade, atrofia personalidades. Tais obsessões enraizadas, pavoneadas tantas vezes com petulância, “à la longue”, matam mais que muitos vírus que ora nos agridem.

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