Obsessões genocidas
Péricles Capanema
O artigo poderia ter outro título: obsessões
homicidas. De quem? Nossas, infelizmente temos obsessões homicidas. Fácil apontá-las,
curá-las é tarefa hercúlea. Estamos enterrados em gravíssima crise sanitária, cresce
o número de mortes em decorrência da disseminação do COVID-19 e de suas
variantes. Governos, mundo afora, para evitar contágio, fecharam suas portas a viajantes
provenientes do Brasil ▬ viramos um leprosário para eles. Não há como fugir da
comparação, temos semelhanças com os leprosos de épocas passadas, os povos nos evitam
e nos isolam na tentativa de impedir a disseminação da enfermidade mortífera. O
toque de recolher, o lockdown (fecha tudo), as restrições à circulação estão na
ordem do dia. O perigo é nos transformarmos, culpa nossa, em leprosário de enfatuados
obsedados. Mais disso abaixo.
É urgente escapar da enrascada. Mas como sair
dela? Cortando as raízes do problema. Existe um consenso, a bem dizer geral,
quase unanimidade, aqui vai: com a maior velocidade possível, generalizar a
aplicação das vacinas. População vacinada significa vidas salvas e reabertura
da economia. Sob certo ângulo, vida e prosperidade contra morte e penúria. Em
resumo, o programa básico de salvação nacional se enuncia de forma simples,
bastaria comprar muitas vacinas autorizadas pela ANVISA e aplicá-las.
Fomos lerdos, hoje temos só o Butantan
(governo do Estado de São Paulo) e Fiocruz (governo federal), na linha de
frente. Ótimo, ainda bem, pelo menos duas instituições respeitadas fornecem,
ainda que menos do que seriam necessárias, as vacinas. Ambas trabalham com
insumos provenientes da China, o que nos sujeita de certo modo ao governo
chinês. Não é a hora de realçar que, além dos acordos com a AstraZeneca,
certamente poderiam ter sido firmados acordos com empresas ocidentais, com sede
nos Estados Unidos ou na Europa. Foi o que fizeram países europeus, asiáticos e
latino-americanos.
Um deles, o Chile, serve de exemplo. Graças
em parte ao faro empresarial do seu presidente, em fins de junho já terá vacinado
toda a população. “El País” ainda destaca a “a
musculatura comercial de uma das economias mais abertas do mundo”. O país firmou acordos com Pfizer, Sinovac,
Johnson & Johnson, AstraZeneca. Quanto a nós, no ritmo atual, oxalá se acelere,
por ora aplicação de 250 mil doses por dia, vamos precisar para lá de dois anos
para vacinar toda a população. México, Colômbia,
Peru, Uruguai e Paraguai já pediram ajuda às autoridades chilenas. Um bom
exemplo para o Brasil, pedir ajuda também, foi enormemente mais competente que
nós, valeria a pena entrar na fila, ainda que no último lugar. Receio que o bom
exemplo, humildade construtiva, seja inútil. Nossas obsessões cegam, impedem
até soluções simples, apontam outro rumo, intervenção, estatismo, controle
burocrático. O povo paga a conta, mas que importa? Caminhamos nesse passo rumo
ao paraíso venezuelano ou cubano. Um dia chegaremos lá, é só ter paciência.
Diante da gravidade do quadro presente, insuficiência
clara da ação federal (eufemismo), o normal seria a complementação com a conjunção
de esforços de todos os que tenham possibilidade de ajudar. Um exemplo de tal suplementação
está em curso, pode dar bons resultados, é a cooperação de governadores para
comprar vacinas. Depois, se possível, espetarão a conta no Executivo federal. Foi
o que pontuou há pouco Renato Casagrande (PSB-ES), expressando, informalmente,
opinião de todos. Dezoito deles (27 no total, os ausentes manifestaram apoio à
iniciativa) foram a Brasília na 3ª feira, 2 de fevereiro, para falar com
autoridades, com laboratórios e tentar destravar o caso, fazendo jorrar o mais
rápido possível cachoeiras de vacinas no país inteiro.
Aqui começam os sintomas do que acima qualifiquei
de obsessão homicida. Declarou o governador do Espírito Santo: “Não haverá a
formalização de um consórcio. Nossa ideia é comprar cotas proporcionais à
população de cada Estado. Nenhum Estado comprará mais do que o equivalente ao
percentual de sua população”.
À primeira vista, tem ares de política equitativa,
compassiva, serena, sensata. Um bom começo, à vera, desde que seguida por
medidas arejadas. iniciativas mais amplas. Conservando-se na primeira estação, será
apenas desnecessário e tosco engessamento.
Com efeito, existindo Estados mais ricos e com
folga de caixa, por que não buscar vantagens para todos, privilegiando os com
maior liberdade e capacidade de ação? De outro modo, pôr em execução medidas esteadas
em acordo amplo, que não prejudiquem a nenhum participante. Em resumo, deixar
que os mais providos de recursos resolvam mais rápido seu caso. E assim, comprariam
mais vacinas, atenderiam logo às populações, tirariam peso das costas do SUS, até
poderiam ajudar a outros entes mais pobres. Suas economias se abririam mais
cedo, acarretando reflexos positivos no País inteiro. Seráp ossível esse
caminho, ou haverá sabotagem nos três níveis de poder, com inevitáveis sequelas
de inércia econômica e atraso no combate à pandemia? Nossas obsessões avassalam-nos
tanto que acho pouco provável.
Tem pior. O consórcio dos governadores, nas
palavras do dirigente capixaba, propõe a ajuda empresarial de maneira “sui
generis”: “Vemos, por exemplo o movimento Vacina para Todos, esforço que a
Luíza Trajano está fazendo. Está tentando articular a participação dos
empresários junto ao ministério da Saúde e os Estados. Acho que todo mundo tem
de comprar para entregar ao plano nacional. Há empresários dispostos a comprar.
Comprar e entregar para o ministério da Saúde. Defendo que as empresas que se
dispuserem a adquirir vacinas repassem 100% das doses para o ministério da
Saúde. Não é correto permitir que quem tem dinheiro se vacine primeiro”.
Você entendeu direito, leitor. A empresa
compra, embala e depois entrega tudo para o governo. Não fica nem com unzinha
vacina. É louvável, não resta dúvida. Estimula a vacinação? Óbvio ululante, não.
Se a vedação doidivanas não enterrar de vez a iniciativa, pelo menos a inibirá de
alto a baixo, atrasará horrores a solução do problema urgente. Teremos aqui exemplo
inolvidável de opção preferencial pelo retrocesso. Prejuízo para a economia,
aumento do número de mortes, desemprego maior, tudo com base em um só e
mambembe argumento: “não é correto permitir que quem tem dinheiro se vacine
primeiro”
Contudo, o digno governador capixaba não está
só, seria querer demais. Enuncia opinião generalizada, compartilhada por espíritos
suposta e ufanamente equânimes. São multidão. O normal, em país sem obsessões e
xodós, diante da gravidade da crise, seria, vamos combinar, dentro de plano
coordenado pelos poderes públicos, esporear as empresas a comprar vacinas para
funcionários e familiares ▬ que doassem parte do lote para o SUS, ótimo. Haveria
enorme e generalizado estímulo, benéfico a todos, traria significativo alívio
para os cofres públicos, de momento exauridos.
Todavia, infortúnio antigo, vivemos em país (organismo
doente), tem tumores de estimação já deitando metástases há décadas. Um deles é
a idolatria do estatismo, a crendice tola e demolidora de que o intervencionismo
em suas várias gradações, de regra boçal, sempre será benéfico. Na prática, retrocesso,
atraso e ladroagem; o estatismo (e seu irmão, o intervencionismo) asfixia liberdades,
gera pobreza, sufoca criatividade, atrofia personalidades. Tais obsessões
enraizadas, pavoneadas tantas vezes com petulância, “à la longue”, matam mais que
muitos vírus que ora nos agridem.
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