Vacina contra
maldição brasileira
Péricles Capanema
Variante perigosa. O Brasil padece uma espécie de bruxedo
(falo abaixo dele) ▬ entre vários, e para quem quer bem ao país, bom conhecê-los.
Com efeito, em qualquer âmbito, saber das debilidades constitui prudência
indispensável para a ação eficaz. O cardeal Mazarino (1602-1661), grande
político, começa seu livro “Breviário dos Políticos” apontando como primeira
providência o discernimento das próprias fraquezas ▬ físicas, mentais, morais. Mapeá-las
e então neutralizá-las no possível. “Pergunta-te em que ocasiões tens tendência
a perder o controle sobre ti mesmo, a deixar-te levar para desvios de linguagem
e de conduta”. Vale para o indivíduo, vale para famílias, vale para nações
(para o Brasil, naturalmente).
Curas na raiz. Falava de uma espécie de maldição,
sortilégio potente que está na raiz de persistentes desgraças nossas. Vem de
longe, aqui está ele: temos o vezo de escolher mal nossos representantes. E
depois, povo, imprensa e academia se dedicam ao esporte nacional de malhar o
Judas, no caso, os políticos. Na próxima eleição, comporta-se igual o eleitorado,
escolhe mal de novo. Ou piora, para lembrar a lamentação desiludida de Ulysses
Guimarães: “Se você acha que o atual Congresso é ruim, espere pelo próximo, vai
ser pior”. Inescapável, pelo menos boa parte da culpa respinga no representado
que passou descuidado a procuração para o representante errado. Vai mudar? Dá
para exorcizar seus efeitos? Difícil. Referida situação permanecerá a menos que
mude a postura do público, aconteça o saneamento das raízes para então os
galhos crescerem saudáveis e a árvore dar bons frutos. Que venha a maturidade, generalize-se
uma educação qualificada, sejam cultivados a honestidade e os hábitos de
reflexão. Nada disso será possível sem famílias revigoradas por forte senso religioso.
Solução por aí. Quem descura do aperfeiçoamento das famílias, impulsiona o retrocesso
social. Hoje, 21 de março, o Estadão traz comentário elucidativo a respeito da
mencionada situação. Ouvido pela reportagem, influente deputado federal do PL,
partido do Centrão, disse “de São Paulo para baixo, o PL é Bolsonaro, para cima
é Lula”. Situações assim, sinais prenunciativos de desgraças futuras, pejadas de
descarado oportunismo, ovante primarismo ideológico e deprimente falta de
princípios, repetem-se Brasil afora.
Critérios de seleção. Trata-se em especial de critérios
políticos, mas se refletem em outras áreas. Recordo aqui um político, Francisco
Campos (1891-1968), o Chico Ciência, destacada presença no Brasil décadas atrás
e cuja figura, por contraste, evidencia o enorme tombo na representação que sofremos
ao longo do tempo. Pertencia, é certo, ao Brasil que contava (e quais são os
critérios decisivos para contar no Brasil de hoje?). Teria defeitos e virtudes
da época, foi homem de posições até hoje combatidas e com bons motivos, mas
representou com traços fortes um tipo de personalidade que ascendia à direção
do país. Outros homens públicos poderiam igualmente servir de ilustração; aconteceu,
contudo, cair sob meus olhos discurso do prócer mineiro.
Gente com cabedal relevante e autêntico era
chamada ao governo, sufragada, eleita. Oswaldo Aranha foi ainda exemplo. Antes,
o barão do Rio Branco; muitos ainda haverá. É um primeiro critério, nascido de
bom senso milenar, sobre o qual se pode construir solidamente. É, em suma, a
atração para a vida pública dos mais capazes nos espaços da inteligência, elite
autêntica com amplas condições de trabalhar pelo bem comum e assim promover a
inclusão social com viés de alta ▬ ascensão judiciosa, enérgica e ampla. Foi outrora em boa medida o caso no Brasil. Quando,
pelo contrário, pululam nos postos de mando figuras sem nenhuma qualidade para relevo
real, hoje tantas vezes nosso caso, não há governo que preste e possa dar certo.
Inexiste até mesmo a possibilidade da consciência objetiva dos problemas mais
importantes e urgentes. “O grande acontecimento do século foi a ascensão
espantosa e fulminante do idiota”, escreveu Nelson Rodrigues.
Exemplo entre muitos. Professor de Direito Constitucional, Chico
Campos foi deputado estadual, deputado federal, secretário, ministro. Logo
depois da Revolução de 1930, no governo provisório, ocupou a pasta da Educação
entre 1930 e 1932 ▬ o primeiro ministro da Educação do Brasil. Nesta condição, recebeu
convite para paraninfar turma da Faculdade de Ciências Econômicas em Salvador. Falou
longamente sobre administração e economia, era o prato de resistência, mas
antes apresentou, e era simples discurso de paraninfo, rápida visão de conjunto
sobre características da Bahia e sua inserção no Brasil. Aqui temos perfume
civilizador que se dispersou, fruto de ambiente que continha princípios ativos
de aperfeiçoamento. Sumiu por inteiro dos rarefeitos ares oficiais e de outros
ares a cortesia superior, constatada a seguir, esteada na observação luminosa
do real ▬ impulso de progresso benéfico. Vinha de Minas o ministro e encontrava na
Bahia “a mesma simplicidade, o mesmo acolhimento, a mesma doçura, amenidade e
gentileza de maneiras”. Percebia, contudo, uma nota diferente: “a graça e o
sabor”. Os frutos “são na Bahia mais doces, mais saborosos e mais belos”.
Prossegue: “Aqui raiou a madrugada do Brasil.
No berço da Bahia embalou-se a sua infância”. Amplia: “Os brasileiros revemos
na Bahia o Brasil, os seus traços característicos e significativos, aqueles que
as mãos e o espírito baianos imprimiram no Brasil, os traços que nos definem
como nação, as linhas da inteligência e do caráter”. Caminha para o fim da
abertura: “Nessa terra de bênçãos e de paz”, de “gênio pacífico”, ele via “as
tradicionais virtudes de sobriedade, de reflexão e de firmeza”, “ancoradas
nesse misterioso e insondável subsolo da alma baiana”. E a conclui: “Aqui, nessa
luminosa Bahia, é onde se sente, em toda a amplitude de sua onda, a vibração da
alma brasileira, no ritmo da língua, no compasso da música, na expressão dos
sentimentos cívicos, de maneira a se poder dizer que a Bahia é o padrão do
Brasil”. Realçou: “Nela se encontram, nas suas formas típicas, as categorias
espirituais, por cujo intermédio se exprimem e se traduzem inteligência e
coração do Brasil”.
Algum dos leitores leu ou ouviu algum dia
texto ou discurso de político atual que se aproxime dessa introdução de
Francisco Campos em simples discurso de paraninfo? Falava em perfume
civilizatório; é mais, é impulso civilizatório; vidas de pensamento com tônus desse
naipe não só aperfeiçoam personalidades; levam, em ondas cada vez mais
extensas, ao aproveitamento das qualidades e oportunidades jacentes na
população. Sua perda, evaporação trágica, dentro do desapreço amazônico, representou
no Brasil retrocesso intelectual e baixa na educação social.
Desorientação. “Quos Jupiter vult perdere dementat
prius” ▬ Júpiter enlouquece primeiro os que deseja perder. Um país que tem dirigentes
com o gosto do escangalho, arrogantemente toscos, useiros e vezeiros de
expressões chulas, mesmos nos mais solenes ambientes, está virtualmente
enlouquecido por Júpiter, pisa estrada que desemboca em abismo.
Estrada abandonada. Coetâneo de Francisco Campos
na vida pública foi Gilberto Amado (1887-1969), também escol da inteligência
nacional. Ele coloca como condição fundamental da democracia representativa,
axioma, a escolha dos melhores. Só assim o governo pode agir com energia na busca do bem comum. Leciona o político sergipano: “É um axioma de ciência política, verdadeiro em
todos os regimes — no regime democrático como nos demais — que a sociedade deve
ser dirigida pelos mais avisados (sages), pelos mais inteligentes, pelos mais
capazes, pelos melhores, em uma palavra pela elite”. Estuda então os meios para
que tal elite “possa aceder à direção da sociedade”. Não é o caso de deles
tratar aqui, iria muito longe.
O deslumbramento beócio por concepções
falseadas de democracia, contrafações tóxicas do conceito, na prática cadinho contínuo
para toda sorte de contubérnios demolidores, nos fez retroagir. Um avanço, começo,
seria noções mais claras do problema: conceitos e realidades na vida social. Já
estivemos a respeito em situação bem melhor, nos anos do Império e em épocas do
período republicano. Em rápidas pinceladas um exemplo vai acima. Foi minha
intenção, no presente texto, pôr um grãozinho em tal esforço. Fim.
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