Retrocesso na Inglaterra
Péricles Capanema
Não vou tratar aqui do imbróglio
Brexit. Deixo suas ameaças e incompreensões para eventual outro artigo. O caso pode
causar enorme retrocesso em várias frentes. É de outra regressão, menos imediata,
certamente mais funda, o que esmiúço nas linhas abaixo.
Antígua e Barbuda, Austrália,
Belize, Barbados, Canadá, Granada, Jamaica, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné,
São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Ilhas Salomão,
Bahamas, Tuvalu. British Commonwealth. O Reino Unido é composto de
quatro nações, Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do Norte. Inglaterra, Gales
e Escócia formam a Grã-Bretanha. Também British Commonwealth. Constituem
todos, repito, a British Commonwealth, cuja tradução, entre várias,
poderia ser comunidade das nações britânicas. Têm um só chefe de Estado, a rainha
Elisabeth II. Ligados por vários laços construídos pacientemente ao longo das
centúrias, esses países constituem uma liga de mútuos bons ofícios, abertura e
benevolência recíprocas. Um pouco distante, olhando para a mesma direção,
encontram-se Estados Unidos, Índia, Paquistão. De tal comunidade de povos,
ligados por tantos laços, e ressalto, os do afeto, consideração e respeito, advêm
enormes vantagens comerciais mútuas, facilidades de viagens, de estudos,
proteção militar, tanta coisa mais.
No centro, uma pequena ilha, poucas
riquezas naturais, governada por séculos com espantosa continuidade operosa. A
realidade empurra o observador a se inclinar diante do senso político
extraordinário ali incrustado senso de
governo que faz lembrar, e quem sabe os supera, os romanos das idades clássicas.
Senatus Populusque Romanus ▬ o Senado e o Povo Romano. Chamo
a atenção agora para a palavra Senatus. E para a realidade, conselho formado
por pater famílias, os chefes das famílias patrícias. Depois a ela
volto.
Corta. Um salto para a História
contemporânea. Corria 1937. Winston Churchill, então no ostracismo, carreira
encerrada, tudo o indicava, pois era rejeitado no seu partido devido à oposição
feroz que fazia ao nazismo e a seu armamentismo, foi convidado para ir à
embaixada alemã em 21 de maio, onde o esperava o embaixador Joachim von
Ribbentrop, depois ministro do Exterior do Terceiro Reich. Foi-lhe apresentada
a proposta de um pacto entre a Alemanha nazista e a Inglaterra. O político
inglês a rejeitou prontamente. Então Ribbentrop virou as costas bruscamente e
disse: “Sendo assim, não há saída. A guerra é inevitável. Hitler está resolvido.
Nada o deterá, nada nos deterá”. Winston Churchill, calmo, disse ao chefe
nazista mais ou menos o seguinte: “Não subestime a Inglaterra e de modo
especial não a julgue pelas atitudes do presente governo. Ela é muito
inteligente. Se vocês nos afundam em outra grande guerra, ela coligará o mundo
inteiro contra vocês, como fez na última vez”. Ribbentrop redarguiu: “A
Inglaterra pode ser muito inteligente, mas desta vez não coligará o mundo
inteiro contra nós”. Churchill foi embora. Veio a guerra, a Inglaterra coligou
o mundo contra Hitler, venceu-a, é o mesmo senso político em atividade.
As realidades políticas duradouras estão
enraizadas em realidades sociais, delas recebem a seiva. A classe política
inglesa em boa medida é reflexo da vida, no campo e na cidade, de famílias que
em graus muito diferentes marcaram a história inglesa. Winston Churchill era
desse meio. E mesmo os políticos que dali não vieram respiraram tais ares,
moldam seu comportamento pelos valores e costumes que pautam as relações entre
esposos, filhos, parentela e conhecidos das famílias antigas do Reino Unido. É valor
social, para ficar por aqui, de enorme valia. Mais precisamente, tem enorme
função social. A Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, a própria realeza, sem
essa realidade humana que as embasa, seriam corpos de vida anêmica. Têm elas na
Inglaterra papel análogo ao Senado romano.
Embora já não se possa falar em
sociedade de ordens, referir-se ao fato em comento apenas como sociedade de
classes seria apressado, superficial e deformante. À vera, ainda permanece no
ar o perfume da sociedade de ordens, continua tendo vitalidade o senso do bem
comum, não morreram comportamentos que tiveram seu auge nas épocas de esplendor
da cavalaria cristã. Com tais balizas, a benéfica mobilidade social, para cima
e para baixo, assimilações e decadências, respeitam a estabilidade, fazem-se
enfim sem lesar o bem comum. Estou escondendo os possíveis abusos, deformações,
favoritismos injustificáveis? Não, apenas não os estou colocando no quadro para
que o essencial seja visto em primeiro lugar. Do mesmo modo que faria ao analisar
a situação do bombeiro, de evidente relevância social, sem de início aludir a
profissionais corruptos, relapsos e omissos.
Por que coloquei no título
retrocesso na Inglaterra? Para não deixar passar batida uma involução, um
sintoma dela aponto no próximo parágrafo, que pode, com o tempo, perenizar fossilização
regressiva, tantas vezes característica de sociedades igualitárias.
A Editora Debrett publica desde
1769 um anuário, hoje intitulado Peerage and Baronetage, espécie de
almanaque da nobreza e aristocracia inglesas. Todos os títulos ali constantes
têm sua história, muito deles de grande ressonância, significam a justo título
muito no mundo saxão, mas não representam a essência do fenômeno (são dele
reflexo) que aqui coloco na lupa: o miolo é o cultivo amoroso da excelência, no
caso, a social, por boa parte do público. Isso é motor do avanço em qualquer
sociedade.
Informa Vivian Oswald no jornal Globo,
a edição impressa de 2019 do Peerage and Baronetage, a 150º, será a
última. Razão decisiva, o álbum de dois volumes dá prejuízo. São muito altos os
custos de produção, distribuição e estocagem do artístico e informativo trabalho,
capa de couro, cerca de três mil páginas. A publicação continua na internet,
com consulta paga. A propósito, esta última edição, preço promocional, sai por
405 libras.
Em resumo, parece, o público já não
se interessa o suficiente para ser lucrativo manter em circulação um dos
símbolos da grandeza da Inglaterra. Acostumou-se com horizontes mais acanhados,
em que aparece menos a atração pela excelência, no caso, um marco do apreço
pela perfeição social. É rota para o atraso, fenômeno que pode ter efeitos mais
fundos que o imbróglio Brexit.
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