De novo no foco, reparação e desagravo
Cristiano Martins da Costa
Devoção perene, caminho real. O Papa Francisco em 24 de outubro último divulgou a encíclica
“Dilexit nos”, a quarta de seu pontificado; trata da devoção ao Sagrado Coração
de Jesus. O título latino, claro, significa “Ele nos amou” e tem como inspiração
passagem de são João em que Nosso Senhor diz: “Eu vos amei”. O documento
coincide com as celebrações do 350º aniversário das grandes manifestações do
Sagrado Coração de Jesus (1673-1675) a santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690),
religiosa visitandina do mosteiro de Paray-le-Monial, canonizada em 1920. De um
lado, o diploma e toda a enorme e natural repercussão que gerou despertaram lembranças
e hábitos antigos que sempre oxigenaram o ambiente da piedade católica. Sobre eles
falaremos em um segundo artigo. De outro, “Dilexit nos” deu azo a manifestações
de surpresa (para não dizer estranheza) sobre as quais também nos deteremos, em
um terceiro artigo.
O perigo da desnaturação. Inicialmente, desejo chamar a atenção sobre ponto
central que desafortunadamente não vi ser realçado, diria quase, foi ocultado, abordado
embora várias vezes e até com digressões na “Dilexit nos”, e que está no centro
da devoção moderna ao Sagrado Coração de Jesus, difundida especialmente a
partir de Paray-le-Monial: reparação e desagravo. A devoção ao Sagrado Coração
como foi propalada por décadas sem fim nos ambientes católicos desde o século
17 tem um núcleo central, dele não é possível se afastar sem grave risco de desnaturação
▬ de outro modo, transformar-se em outra espécie de devoção. Referido miolo
está bem realçado por santa Margarida Maria Alacoque. Recordemos. O devoto ou
devota do Sagrado Coração tem à mão sua vida, espírito e mensagens, não precisa
e não deve se desviar da rota ali apontada pela Providência. Sua espiritualidade
foi divulgada nos ambientes católicos, por séculos, com apoio maciço da Hierarquia
eclesiástica, como modelo desta forma de piedade. E, inafastável memorar, santa
Margarida chama imediata e continuamente a atenção para duas práticas: reparação
e desagravo. O fiel necessita reparar o mal causado pelo pecado (seu, dos
outros, de organizações, dos Estados) e desagravar suficientemente o ofendido, no
caso, Nosso Senhor Jesus Cristo. Desagravo é a palavra portuguesa usual, está
correta. Santa Margarida utilizava a expressão “amende honorable” ou “faire
amende honorable”, respigada do mundo jurídico francês, que significa desagravo,
mas contém a necessidade de pena infamante para o ofensor. A retratação
infamante repararia o dano moral e era na França considerada honrosa para o
ofendido. Para o fiel, e é o que nos interessa aqui, torna imperativa a postura
inicial humilde, contrita e humilhada. Postura sempre inconformada com o mal
feito por ele ou percebido em outros, e que busca reparo e satisfação.
Eis o Coração que tanto amou os homens. Tal conduta é lógica e flui naturalmente das palavras
de Cristo que estão no centro das chamadas Grandes Revelações de
Paray-le-Monial: “Eis o Coração que tanto amou os homens, que nada poupou até
se esgotar e se consumir para lhes testemunhar seu amor.
Desconsideração total. Continuam as palavras de Cristo: “Como reconhecimento, não
recebo da maior parte deles senão ingratidões, pelas suas irreverências e
sacrilégios, e pela frieza e desprezo que têm para comigo”. Para uma alma reta,
com vontade autêntica de reparar o dano que causou, tornam-se cogentes os sentimentos
ativos de gratidão e veneração, trazer de volta o ofendido ao devido lugar
outrora ocupado, promover o culto, manter o fervor. Nesta piedade particular, é
o fundamento sobre o qual caminha o fiel rumo à restauração de sua situação
anterior virtuosa, e até a alturas ainda inatingidas. Não apenas o fiel, igual se
aplica às sociedades humanas, a primeira das quais é a família.
Destaque devido e significativo. Pio XII (1939-1958) em sua encíclica “Haurietis Aquas”,
ainda hoje considerado o grande ensinamento sobre tal devoção, enumera com grato
louvor santos que promoveram a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Mas, entre
eles, distingue uma santa de forma inequívoca: “Mas entre todos os promotores
desta excelsa devoção, merece lugar especial santa Margarida Maria Alacoque,
que, com a ajuda do seu diretor espiritual, o beato Cláudio de la Colombière
[...] conseguiu [...] que este culto adquirisse um grande desenvolvimento e,
revestido das características do amor e da reparação, se distinguisse das
demais formas da piedade cristã”. De outro modo, sob a luz do exemplo de santa Margarida,
constitui forma especialmente elevada da piedade cristã. Reitero por
conveniente, é indispensável o olhar se fixar no que a vida dela pregou do
começo ao fim: reparar o Salvador pelos pecados cometidos, desagravá-lo em
especial por vida calcada nos passos dele. Está outrossim ensinado por Pio XII,
o grande desenvolvimento de tal forma de piedade só pode se dar sem a desnaturação
de suas principais características, acima referidas, fulgurantes na vida da obscura
freira visitandina.
Atualidade sadia. Convém salientar, tais características não deslizaram
para o esquecimento, tornaram-se repentinamente anacrônicas. Pelo contrário, pertencem
ao núcleo desta forma de piedade. São tradicionais, é certo, tradição viva, sadia,
atual, caldo de cultura de vida virtuosa, digamos, de modernidade saudável, à
vera, conduta mais necessária agora que no já longínquo século 17. Mas estão de
novo no foco das repercussões da “Dilexit nos”? Dói dizê-lo, olhando por cima, infelizmente,
não. E na profundidade? Sim. Ficarão, se quisermos e agirmos para tal. É atual
voltar luz forte para elas. Desconsiderá-las, diminuir-lhes a importância, traz
o risco da desnaturação; de outro modo, nossas práticas devocionais relativas
ao Sagrado Coração não corresponderiam por inteiro ao que o Divino Salvador
tinha em vista quando, a partir de Paray-le-Monial, inaugurou torrente de graças
reparadoras e restauradoras que atravessou decênios e até séculos, marcando a
Igreja para sempre. A continuidade virtuosa, nunca deve ser abandonada. Trouxe acima
Pio XII. Agora, seu antecessor. O Papa Pio XI (1922-1939) nos mostra a mesma
via em oração composta por ele em 1928. Pisamos nas pegadas de dois grandes
Pontífices, postura sadia e atual. Sua recitação nos trará graças. Vai abaixo.
Ato de Reparação ao Sacratíssimo Coração de
Jesus (Pio XI)
“Dulcíssimo Jesus, cuja infinita caridade
para com os homens é por eles tão ingratamente correspondida com esquecimentos,
friezas e desprezos, eis-nos aqui prostrados na Vossa presença, para Vos
desagravarmos, com especiais homenagens, da insensibilidade tão insensata e das
nefandas injúrias com que é de toda parte alvejado o Vosso amorosíssimo
coração.
Reconhecendo, porém, com a mais profunda dor,
que também nós mais de uma vez cometemos as mesmas indignidades, para nós, em
primeiro lugar, imploramos a Vossa misericórdia, prontos a expiar não só as
próprias culpas, senão também as daqueles que, errando longe do caminho da
salvação, ou se obstinam na sua infidelidade, não Vos querendo como pastor e
guia, ou, conculcando as promessas do batismo, sacudiram o suavíssimo jugo da
Vossa santa lei.
De todos estes tão deploráveis crimes,
Senhor, queremos nós hoje desagravar-Vos, mais particularmente da licença dos
costumes e imodéstia do vestido, de tantos laços de corrupção armados à
inocência, da violação dos dias santificados, das execrandas blasfêmias contra
Vós e Vossos Santos, dos insultos ao Vosso Vigário e a todo o Vosso clero, do
desprezo e das horrendas e sacrílegas profanações do Sacramento do divino amor
e, enfim, dos atentados e rebeldias das nações contra os direitos e o
Magistério da Vossa Igreja.
Oh! Se pudéssemos lavar com o próprio sangue
tantas iniquidades! Entretanto, para reparar a honra divina ultrajada, Vos
oferecemos, juntamente com os merecimentos da Virgem Mãe, de todos os santos e
almas piedosas, aquela infinita satisfação, que Vós oferecestes ao eterno Pai
sobre a cruz, e que não cessais de renovar todos os dias sobre nossos altares.
Ajudai-nos Senhor, com o auxílio da Vossa
graça, para que possamos, como é nosso firme propósito, com a vivência da fé,
com a pureza dos costumes, com a fiel observância da lei e caridade
evangélicas, reparar todos os pecados cometidos por nós e por nosso próximo,
impedir, por todos os meios, novas injúrias de Vossa divina Majestade e atrair
ao Vosso serviço o maior número de almas possível.
Recebei, ó benigníssimo Jesus, pelas mãos de
Maria santíssima reparadora, a espontânea homenagem deste nosso desagravo, e
concedei-nos a grande graça de perseverarmos constantes, até à morte, no fiel
cumprimento de nossos deveres e no Vosso santo serviço, para que possamos
chegar todos à pátria bem-aventurada, onde Vós com o Pai e o Espírito Santo
viveis e reinais por todos os séculos dos séculos. Amém.”
Hoje, a vida é muito corrida. Às vezes, pode ser
difícil rezar todos os dias a oração completa composta por aquele recordado
Papa. Não importa. Mesmo partes dela nos lembram o que sempre foi a orientação católica
para a devoção ao Sagrado Coração, que tanto robusteceu a ação evangelizadora
da Igreja a partir de Paray-le-Monial. Continuidade, fidelidade, êxito, é o que
nos é pedido (e nos espera) em tal rumo. Nos próximos artigos, exporei
sucintamente falarei como foi oxigenada a piedade em decorrência dessa referida
via. E depois, no terceiro da série, de algumas estranhezas suscitadas. O trio,
espero, exporá (em boa parte relembrará) de forma resumida e autêntica visão de
conjunto da devoção ao Sagrado Coração. Uma palavra final: o mais importante
todos sabemos, é, com pureza de intenção, adorar, reparando-o e desagravando-o,
o amor infinito de Nosso Senhor aos homens, manifestado de forma tocante pelo
seu coração rodeado de espinhos e encimado de chamas.
Nota: escrevi três artigos sobre o Sagrado
Coração, já divulgados em outras publicações com o pseudônimo que uso às vezes:
Cristiano Martins da Costa. Vou postá-los hoje no meu blog.
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