Efeméride sepultada
Péricles Capanema
Manifesto ao povo brasileiro. Efeméride é data para ser festejada, merece
atenção, respeito e recordação. A efeméride da qual vou falar, não está no foco;
nunca esteve, parece; para infelicidade nacional. Permanece esquecida, injusta e
funestamente soterrada. Talvez o presente artigo seja sua única e modesta lembrança.
Não importa. Pelo valor intrínseco, deveria ser recordada. Com raiz em especial
no senso de justiça, minha função hoje é uma só: tirá-la de esquecimento perverso
e imerecido; mais no ponto, enormemente prejudicial ao interesse público. E vou
arrancá-la de olvido descabido utilizando um recurso apenas, aliás singelo; alinhar
citações que remetem à data e ao fato. Sessenta anos atrás, em 24 de dezembro de
1964, a então jovem TFP, por meio de sua direção, à frente da qual se destacava
o prof. Plinio Corrêa de Oliveira, cumpria “dever sagrado”, palavras suas, “em meio
a silêncio completo” e divulgava seriíssimo documento intitulado “Manifesto ao povo
brasileiro sobre a Reforma Agrária” (está na rede, texto extenso, convincente, com
provas incontroversas), estampado em grandes órgãos de divulgação da época. Este
manifesto nunca deveria ser esquecido; é farol; precisaria estar aceso, vem sendo
mantido apagado por incúria ou ardil de tantos. Dos dezenove valorosos e beneméritos
brasileiros que firmaram o mencionado documento, quinze já nos deixaram, quatro
ainda estão entre nós, merecedores de nossa gratidão, meritoriamente arvorando a
mesma doutrina e o mesmo zelo pelo bem comum que os levou há mais de meio século
a bradar pelos jornais advertência luminosa, que necessitaria, repito, sempre ecoar
ampla. Seus nomes: Caio Vidigal Xavier da Silveira, Celso da Costa Carvalho Vidigal,
Eduardo de Barros Brotero, Plínio Vidigal Xavier da Silveira.
Sintonia com as correntes janguistas. Em novembro de 2023, o ministério do
Desenvolvimento Agrário, órgão lulista, e o INCRA, sob influência direta do
extremismo agrário, lançaram o projeto comemorativo “60 anos do Estatuto da
Terra”. Celebravam a edição do Estatuto da Terra. Afirma o texto do MDA sobre o
Estatuo da Terra: “Sua elaboração não ignora os debates em torno da necessidade
da distribuição de terras que remontam à década de 50, à formação das ligas
camponesas, até à própria proposta do governo deposto de João Goulart,
integrando as “reformas de base”. O texto indica a utilidade do Estatuto da
Terra para a promoção da distribuição de terras (feita na prática em geral sob
a imposição da demagogia extremista). Mostra ainda, não ignorou (acolheu, de
fato) o programa das correntes que apoiavam Jango, bem como ecoava a campanha
fortemente esquerdista das reformas de base. Tudo é verdade. Verdade ocultada e
calada na época, mas proclamada com análise objetiva e irretorquível pelo
manifesto da TFP. Daí vieram 60 anos de agitação e insegurança no campo, com sequelas
de pobreza, exclusão, retrocesso e atraso. E,, com base no Estatuo da Terra,
ainda poderemos esperar, para desgraça nossa, mais agitação e insegurança no
campo.
Silêncio estranho. O manifesto notava que diante de fato gigantesco,
legislação de viés fortemente intervencionista e confiscatório, que marcava o começo
efetivo da reforma agrária no Brasil, o estranho e completo silêncio da opinião
pública: “Antes do mais, é necessário um esclarecimento sobre o significado do silêncio
estranho em que a opinião pública presenciou a aprovação da reforma agrária”.
Repetição do projeto do governo deposto. O texto lembra o clima até então há pouco dominante
no Brasil: “Todos temos na memória com quanta vitalidade, com que ardor se dividiram,
meses atrás, as correntes de pensamento, os partidos políticos, as organizações
de classe, no debater os prós e os contras da reforma agrária proposta pelo então
Presidente João Goulart. Chegou-se mesmo a afirmar na imprensa que os marcos divisórios
entre os partidos políticos haviam desaparecido, só restando dois campos, o dos
adeptos e o dos opositores da reforma agrária (já então tomada essa expressão só
no mau sentido socialista). Agora, em face da emenda constitucional nº 10 e do Estatuto
da Terra, que em substância repetem o projeto do governo deposto, a vida e o ardor
de há pouco parecem não mais existir.” E observa: “Com o apoio das bancadas janguistas,
os representantes das correntes que depuseram Jango fizeram através da aprovação
da emenda constitucional e do Estatuto da Terra a "reforma" que Jango
queria”. Mostra que foram o cansaço da luta pública, a tranquilidade causada pelo novo
governo, a absorção nas atividades privadas as causas principais da apatia do púbico,
como veremos logo a seguir.
O Estatuto da Terra em substância significou o
triunfo do projeto janguista. O texto do manifesto é contundente: afirma sem rebuços, não há diferença
substancial entre o que foi aprovado (Estatuto da Terra) e o que propunham as forças
coligadas em torno do presidente João Goulart. Por que agora a reação era pífia?
O manifesto continua: “Trata-se de um arrefecimento geral, que atingiu todos os
setores da opinião pública sem discriminação e se manifestou de modo flagrante,
não só no marasmo dos adversários do agro- reformismo, como na tibieza dos aplausos
convencionais de quase todos os que, sendo agro reformistas, tinham diante de si
a tarefa sempre grata e atraente de bater palmas a uma medida desejada com todo
o afinco pelo alto”. No final, conclui: “A perspectiva em que as circunstâncias
nos colocam constitui para o Brasil uma verdadeira encruzilhada, a mais grave de
sua história”.
Sessenta anos depois. Foi exagerado o texto acima do qual
conhecemos aqui pequenos extratos? Não. Previu com objetividade a desgraça que
se armava. Que continua. Todo o processo demolidor da reforma agrária brasileira
ao longo das décadas se fez com base no Estatuto da Terra. Nenhum estudo sério sobre
a tragédia que foi (e continua sendo) a implantação da reforma agrária no Brasil,
por honestidade intelectual, poderia deixar de lado o manifesto ao qual aludo.
A reforma agrária já expropriou mais que a
soma das áreas de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Recordo entre a multidão das provas, alguns
dados atuais (hoje são piores), postados por mim em 13.3.2022 (blogdopericlescapanema,
artigo “Cachaça venenosa”): “Desde o Estatuto da Terra, 30 de novembro de 1964,
do governo Castelo Branco, nunca parou, desembestada a esbórnia com o dinheiro público.
Na prática, ninguém mexe nesse tumor de estimação. O INCRA, em seu site, informa
a área total dos assentamentos: 87.535.596, isto é, 875.355 km2. Área de Minas Gerais:
586.528 km². Área do Rio Grande do Sul: 281.730 km2. Vamos somar as duas áreas,
a de Minas e a do Rio Grande, 868.250 km2. A soma é menor que a área expropriada
para fins de reforma agrária. Área utilizada pelo agronegócio no Brasil que torna
o país uma das potências mundiais na agricultura: em torno de 650 mil km2. Também
muito menor que a área esperdiçada ou malgasta na reforma agrária”. Para quê?
Para torrar dinheiro público, alimentar burocracia, favorecer corrupção, manter
baixíssimos níveis de produtividade, convém lembrar e repetir.
Alertas de Xico Graciano. Xico Graziano, um agredido pela realidade, engenheiro
agrônomo, ex-secretário da Agricultura de São Paulo, ex-presidente do INCRA, em
artigo já antigo (3 de maio de 2004) na Folha, apontava disparates em série da reforma
agrária brasileira (renovou em anos recentes suas advertências): “Os latifúndios
se transformaram em empresar rurais. A terra, antes ociosa, agora bate recordes
de produtividade. Gente simples, porém capaz, domina a tecnologia de ponta e dá
show de competência. Cadê o sem-terra? Mudou-se para a cidade. O Brasil cresceu,
urbanizou-se, virou potência mundial agrícola, sem necessidade de reforma agrária.
A terra está produtiva, gerando milhões de empregos. Gente boa, miserável, mistura-se
aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidas com
promessa de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas
e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada,
apoia veladamente. Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada,
possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos,
significa raciocinar com o absurdo. Abstraindo os picaretas da reforma agrária,
que engrossam as invasões, os demais, bem-intencionados, dificilmente sobreviverão”.
Roubalheira, baixíssima produtividade, sorvedouro
de dinheiro público. Adverti
no referido artigo: “Temos ainda vários documentos do TCU advertindo sobre a execução
escandalosa da reforma agrária no Brasil. Lembro-os, mas não os glosarei aqui. Em
resumo, a reforma agrária sempre foi aliciante, mas venenosa cachaça, sorvida em
grandes haustos por todas as condições sociais. Se nada houvesse de reforma agrária
no Brasil (zero), como é o caso em dezenas e dezenas de países, a situação no campo
estaria muito melhor, haveria mais renda, teríamos mais empregos e mais investimentos,
maior produtividade, menos pobres; e ainda existiria dinheiro para obras de infraestrutura,
saúde, educação ▬ foi torrado irresponsável e euforicamente no processo de reforma
agrária. Seria normalíssimo a instauração de uma CPI para investigar a reforma agrária
no Brasil. É claro que nunca será instalada”.
Aviso largamente desconsiderado. Sessenta nos depois, que pelo menos fique claro
um ponto. Houve pessoas, brasileiros de escol, que tentaram deter a tragédia.
Bradaram, esclareceram, trabalharam, sofreram incompreensões, mas o juízo da
História e sobretudo o tribunal divino a eles farão justiça. A nós cabe o conhecimento
do fato, sua recordação e a gratidão. Está feito o registro.
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