sexta-feira, 17 de julho de 2020

Putin desfaz ilusões


Putin desfaz ilusões

Péricles Capanema

O artigo escrito por Vladimir Putin, verdadeira proclamação, abaixo trechos comentados, desfaz ilusões, uma vez mais. Traz afirmações elucidativas para gente de espírito objetivo. Contudo, para viciados em fantasias ▬ legiões que infelizmente ainda veem no ocupante do Kremlin um líder que justifica esperanças ▬, as crendices resistem à evidência. No caso, à evidência do preto no branco sobre o papel.

Em 10 de junho último o presidente russo publicou em “New Europe” matéria extensa, a bem dizer ensaio, sobre suas convicções e orientação política. Mereceria análise dos que têm por ofício esclarecer a opinião pública no Brasil ▬ não a vi. Afinal, trata-se de político com chance, por enquanto, de permanecer no poder até 2036, ultrapassando em tempo (como primeiro-ministro e presidente) no leme de país importante, intervencionista e imperialista, de muito, os anos de chumbo da ditadura stalinista (1927-1953).

O artigo de Putin se intitula “75º aniversário da grande vitória: responsabilidade histórica compartilhada e nosso futuro” ▬ em inglês, “75th Anniversary of the Great Victory: Shared Responsability to history and our Future”. Está na rede. Coloca a Rússia atual como continuadora, em especial na política externa, da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). E enfatiza que o norte, segundo ele, lá na era staliniana e cá na era putiniana, é e sempre foi a proteção e defesa dos interesses nacionais russos. Nesse aspecto, faz clara e argumentada defesa da política stalinista, ataviando seu autor com os adereços de grande e avisado nacionalista. Por alto, só uma vez, circunlóquio rápido para minorar o peso a reserva, censura a perseguição comunista à religião e os ataques à história russa (“zombarias contra nossa história nacional, tradições e fé que os bolchevistas tentaram impor, em especial nos primeiros anos”).

Ponto curioso, em nenhum momento Putin diz que o povo russo lutou na 2ª Guerra Mundial pela defesa do comunismo. A guerra é patriótica, os russos defendiam a terra ancestral, a terra do pai, a terra da mãe, os lares, crianças, pessoas amadas, famílias. Stalin de fato lançou mão desse artifício, sofreria estrondosa derrota se apelasse para a defesa do comunismo contra o nazismo. O povo russo tinha horror ao comunismo, que o escravizara. E Putin embarca aqui; hoje, como ontem foi com Stalin, o foco é defender a Mãe Pátria. Mas, é claro, a Rússia com a guerra consolidou e expandiu o comunismo, realidade ovante calada por Putin.

Esbofeteando a história, o líder russo atribui papel decisivo à contribuição da URSS na derrota do nazismo (seria maior que o concurso norte-americano): “A União Soviética e o Exército Vermelho, não importa o que se está tentando provar hoje, foram as principais e centrais contribuições para a derrota do nazismo”. Desvaloriza, congruentemente, a amparo norte-americano à Rússia soviética enviada em especial por meio do “Lend and Lease Act”, evidenciando que a mentira, da qual era useira e vezeira a União Soviética, continua amplamente usada como instrumento de propaganda na Rússia atual: “Seremos sempre gratos ao apoio aliado fornecendo ao Exército Vermelho munição, matéria prima, alimento e equipamento. Ajuda significativa, em torno de 7% da produção militar total da União Soviética”.

De passagem, alguns dados sobre o “Lend and Lease Act”. Mais de um terço de todos os explosivos usados durante a guerra. 55% do alumínio, mais de 80% do cobre, 57% do combustível dos aviões, 35 mil rádios, 32 mil motocicletas, 33% dos veículos, 20 mil lançadores de foguetes foram montados em cima de caminhões norte-americanos, recuperação do sistema ferroviário, 2 mil locomotivas, metade dos trilhos para o sistema ferroviário. Um enorme etc.

Justifica o autocrata russo, inteiramente, qualificando-o como medida de defesa nacional, o pacto Ribbentrop-Molotov, bem como de justa a anexação tirânica à URSS da Estônia, Lituânia e Letônia “feita com base contratual com o assentimento das autoridades eleitas”. Afirma em relação às nações do Leste europeu que foram esmagadas por Stalin (Estados satélites): “[A União Soviética e o Exército Vermelho] libertaram Varsóvia, Belgrado, Viena, Praga. [...] E assim a Exército Vermelho começou sua missão de libertação na Europa. Salvou nações inteiras da destruição, da escravidão e do horror do Holocausto”.

Enfim, a Rússia de hoje, continuando a mesma política, seria a herdeira reconhecida da União Soviética. E o que propõe ela? De começo, como herdeira, Putin articula nova rodada de negociações, semelhante às conferências de Yalta e Potsdam, que, como aquelas, reconfigurariam o mapa mundial (em especial, certamente, zonas de influência). “Hoje, como em 1945, é importante demonstrar vontade política e discutirmos juntos o futuro. Nossos colegas, Xi Jinping, Macron, Trump e Johnson, apoiam a iniciativa russa de termos uma reunião de líderes dos cinco estados com bombas nucleares, membros permanentes do Conselho de Segurança”. Os temas são os mais esperados, amplos e genéricos ▬ tudo o que é especialmente importante. O Chefe de Estado russo julga fundamental o encontro das cinco potências para dar rumo novo e estável ao mundo inteiro.

Acontecerá? Não sei, julgo pouco provável, para não dizer impossível. Trump está em posição fraca nas pesquisas. Poderá ser substituído por Biden. Índia, Japão, Alemanha, Paquistão aceitarão que, como no passado, outros países decidam o futuro deles?  Quem acredita nisso? E Argentina, México, Brasil, Indonésia, Canadá, Austrália? Israel? Os povos muçulmanos? Os árabes? Entre outros, o que pensarão da tal reunião que os coloca, disfarçada mas inequivocamente, em condição análoga à do menor de idade?

Tem mais. A Rússia ▬ hoje, tratada como potência inescrupulosa [mais no ponto, país bandido] ▬ não tem autoridade moral para convocar nada. Depois da anexação violenta da Crimeia, foi excluída do G-8. Foi excluída também das competições esportivas internacionais por quatro anos, o que inclui as próximas Olimpíadas. Está sendo acusada de roubar pesquisas sobre a vacina contra o coronavirus. Enfiou o nariz nas últimas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Paro por aqui.

Em suma, por todo o visto, parece improvável que os grandes de 1945 (e a China) se reúnam só entre eles e se julguem com poderes para decidir o destino do mundo. Contudo, é preciso ter sempre em vista a proposta de Putin, reiteração do desejo de estabelecer uma espécie de “pax romana” estável e permanente pela divisão do mundo em áreas de influência, como se deu em Yalta. É proposta perigosa, com consequência quiçá mortais; poderá voltar com outros atavios.

Entrementes, o governo russo continua expansionista: lembro apenas, apoia movimentos nacionalistas, as ditaduras venezuelana, síria e cubana. Objetivo sempre presente: minar o poder dos Estados Unidos. Em resumo, em sua política Putin se descreve como autêntico continuador de Stalin. E aqui concordamos com ele.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Bofetada prenunciativa


Bofetada prenunciativa

Péricles Capanema

A bofetada humilha, avassala, abate; contudo, pode acender brios. Enfim, o efeito depende em parte de quem a recebe. Nelson Rodrigues achava: “O pior da bofetada é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem humilhação, nada”. Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia esbofeteou o Ocidente, desdenhou autoridades religiosas e políticas, ao destinar a igreja de Santa Sofia, até então museu, ao culto muçulmano. Estralejou alto o sopapo, ecoou humilhante o som ensurdecedor. A partir de 24 de julho, a antiga catedral bizantina estará aberta ao culto muçulmano. Pelo jeito, foi estudada e prenunciativa bofetada; virão outras, tudo o indica.

Declarou o autocrata: “Hoje, a Turquia se livrou de uma vergonha. Santa Sofia vive, de novo, uma de suas ressureições, como já sucedeu várias vezes no passado. A ressureição de Santa Sofia prenuncia a libertação da mesquita Al-Aqsa” em Jerusalém. Continuou: “Significa que o povo turco, os muçulmanos e toda a humanidade têm novas coisas para dizer ao mundo”. Que novas coisas terá a Turquia para dizer ao mundo? Pela voz dos símbolos, já está falando. No anúncio televisionado, o presidente da Turquia citou um intelectual turco, Osman Yüksel Serdengeçti que anunciou a vinda de um segundo conquistador para devolver Santa Sofia ao Islã. “Este dia chegou”, proclamou Erdogan.

Como se sabe, a basílica de Santa Sofia foi construída no século VI pelos bizantinos (imperador Justiniano), depois foi catedral cismática. Com a conquista de Constantinopla em 1453 pelo sultão Maomé II, o Conquistador, o primeiro conquistador, foi feita mesquita; a partir de 1934, museu.

Borbotaram de todos os quadrantes respostas à insolência do presidente Erdogan, ainda que até agora fracas; de outro modo, palavras desacompanhadas de medidas concretas. Três reações significativas resumem um lado da questão. Na véspera do desplante, Mike Pompeo, secretário de Estado dos Estados Unidos, tentou evitar a desfeita, solicitando ao líder turco “continuar a conservar Santa Sofia como museu, exemplo de seu compromisso de respeitar as tradições culturais e a rica história que moldaram a república turca”. Jean-Yves Le Drian, ministro do Exterior da França, em comunicado, declarou: “A França deplora a decisão do Conselho de Estado turco de modificar o estatuto de museu de Santa Sofia e o decreto do presidente Erdogan a pondo sob a autoridade da direção turca dos negócios religiosos. Tais decisões colocam em causa um dos mais simbólicos atos da Turquia moderna e laica. A integridade dessa joia religiosa, arquitetural e histórica, símbolo da liberdade de religião, de tolerância e de diversidade, inscrita no patrimônio mundial da UNESCO, deve ser preservada”. Ameaçadas estão a modernidade, laicidade, tolerância, liberdade de religião e diversidade, é a censura do governo francês. Finalmente, o presidente Vladimir Putin expôs a seu colega turco o desagrado causado na Rússia inteira pela decisão do governo turno. Comunicado do Kremlin afirmou que o presidente russo “chamou a atenção de Recep Tayyip Erdogan para a significativa desaprovação causada na Rússia pela decisão de mudar a situação de Santa Sofia”.

Ou seja, entendia-se como adesão estável à modernidade o ato do presidente Mustafá Kemal Ataturk, fundador da república turca, que em 24 de novembro de 1934, como foi dito, transformou em museu a até então mesquita. A Turquia deixava para trás a condição de estado muçulmano confessional, com legislação enraizada no Corão e adotava princípios constitutivos vigentes na maioria dos países ocidentais. Caminhava em direção à Europa, à qual já pertence, geograficamente, pela metade. Com efeito, desde décadas ela faz parte da OTAN tem lugar em organismos internacionais e busca fazer parte da União Europeia. Com a bofetada, ela se distanciou da Europa e dos Estados Unidos, aproximando-se de Estados muçulmanos. Potência regional, representa muito na junção da Ásia e da Europa o país de 80 milhões de habitantes (renda per capita em torno do dobro da brasileira), por volta de 800 mil quilômetros quadrados.

Fica a questão da Rússia, inimigo histórico, justificativa política importante para a adesão à OTAN e ao Ocidente. Sintomaticamente, no meio da condenação geral, inclusive dos cismáticos russos, Putin teve gesto quase formal. Ele também utiliza a fórmula nacionalismo, patriotismo, religião para se manter no poder. Autoritarismo, nacionalismo, religião, defesa de uma vaga identidade pátria são vias que favorecem uma aliança futura, presumivelmente prejudicial aos Estados Unidos e à Europa.

Falava acima, um lado da questão, era o político. O outro é o religioso. Destaco em particular um ponto. O enorme edifício do ecumenismo religioso entre Islã e Cristianismo, construído pacientemente há décadas, mambembe e artificial, é verdade, mas enfim levantado, recebeu trinca de alto a baixo. A afirmação desafiadora das crenças do Islã, a proclamação de que é apenas o primeiro passo em novas conquistas, bem como a inteira desconsideração dos sentimentos dos católicos e dos cismáticos, deixam no ar um cheiro de jihad, uma atmosfera de enfrentamento.

O Papa Francisco se declarou “aflitíssimo”. Bartolomeu, patriarca ecumênico de Constantinopla, já havia tomado posição, tendo advertido, Santa Sofia era “um símbolo do encontro, solidariedade, compreensão mútua entre o Cristianismo e o Islã”. Foi adiante “transformá-la em mesquita poderia lançar milhões de cristãos no mundo inteiro contra o Islã”. De novo aparece o clima de enfrentamento, pois estava sendo destruída a atmosfera de encontro, solidariedade e compreensão. A igreja cismática russa lamentou a decisão e afirmou que ela trará “consequências sérias para toda a civilização”. Seu porta-voz observou: “Constatamos que a inquietação de milhões de cristãos não foi levada em consideração”.

Resposta de Erdogan, trata-se de exercício de direitos soberanos. Não amolem, em linguagem informal. “Os que não se preocupam com a islamofobia em seus próprios países, atacam a vontade da Turquia de exercitar seus direitos soberanos. Tomamos esta decisão sem levar em conta o que os outros dizem, mas considerando nossos direitos, como fizemos na Síria, Líbia e em outros lugares”.

Pelo que representa e prenuncia, a bofetada aprofunda trincas na aliança ocidental, é afirmação desafiante de poder muçulmano, deixa em frangalhos as alegações em que se esteia o diálogo ecumenista entre cristãos e muçulmanos. Virão outros sopapos. Se recebidos com resignação derrotista, representarão recuos. Podem, contudo, acender brios. Aí a história seria outra.

domingo, 12 de julho de 2020

Saneamento infeccionado


Saneamento infeccionado

Péricles Capanema

O novo marco legal para o setor de saneamento básico despertou numerosas (espero que justificadas) esperanças. O objetivo é até 2033 levar água tratada para 99% e esgoto para 90% dos brasileiros. Trinta e seis milhões de brasileiros não contam com água tratada e 101 milhões não dispõem de serviço de coleta de esgoto. Apenas 41% da população têm esgoto tratado. Outros dados preocupantes, em 2018 se perdeu mais de 38% da água tratada, desperdiçada ao longo da distribuição, falta de manutenção adequada.

Caminho a construir. São inestimáveis as vantagens de ordem material, cultural e moral que traz a água em casa, a presença do sistema de esgoto, o tratamento que restaura os rios em sua utilidade e beleza pristinas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) calcula que um real aplicado no saneamento poupa quatro reais em gastos com saúde. Tudo isso pode ser proporcionado, pelo menos em larga medida, pela aplicação enérgica do novo marco legal do saneamento. Para tal, são cálculos de bons especialistas, será necessário investir na ampliação do setor cerca de $500 bilhões de reais. E ainda por volta de R$250 bilhões na recomposição e manutenção do sistema existente. São quase R$800 bilhões de reais, em torno de R$50 bilhões por ano até 2033. Aqui se adensa o problema, intenções e papel são bem mais fáceis de obter.

Obviamente, o Poder Público, falido, lerdo e perdulário, não tem capacidade de atender a tal demanda, à vera, necessidades prementes. E quem sofre é o povo, de forma especial os mais desassistidos. Em boa hora o novo marco do saneamento abriu portas para iniciativa privada nacional, bem como para o investimento estrangeiro. Hoje, apenas 6% das redes de água e esgoto no Brasil são geridos pela empresa privada, decorrência de atávica opção preferencial pelo estatismo, retrocesso mental difícil de remover, uma das causas de nosso atraso econômico ▬ endêmico.

Preocupa. Entre os maiores interessados em aplicar maciçamente no setor, três me chamaram particularmente a atenção. O primeiro, fundos soberanos. Preocupa. Fundos soberanos são fundos de propriedade e gestão estatais; capitais geridos por governos. Vamos privatizar e entregar a órgãos estatais do Exterior a propriedade e gestão de um setor importante da economia? Que orientação política terão tais governos? O olhar não pode se limitar ao prazo curto, concessões supõem prazos dilatados, 30, 50 anos. Com que objetivos trabalharão no País os grupos econômicos cujos acionistas principais são fundos soberanos? Afirmei, tal fato preocupa. É mais um passo da privatização à brasileira, entregar estatais tupiniquins ou serviços públicos para estatais estrangeiras. E sair blasonando que o governo leva diante enérgico programa de desestatização. Não percebi ninguém que pense em enfrentar a dificuldade.

Alarma. Os outros dois interessados alarmam, não apenas preocupam. Duas corporações gigantescas, Gezhouba Group e o China Railway Construction Corporation, são citados na imprensa como dos maiores interessados em investir no setor de saneamento.

São mastodônticos grupos econômicos ▬ estatais chinesas. Não custa repetir, já há anos lembro o óbvio: as estatais chinesas são dirigidas pelo governo chinês, seus diretores na imensa maioria são membros do Partido Comunista Chinês (PCC), dono do governo. Vencida as concorrências, obtidas as concessões, quem, em última análise, vai dirigir a empresa formada por quaisquer desses dois grupos nas grandes capitais ou, exemplo, no interior da Amazônia, é o Partido Comunista Chinês. E a sujeitará a seus objetivos políticos. Como está avassalando Hong Kong, indiferente aos protestos de todo o mundo ocidental. Essa nova realidade, se implantada, nos próximos anos trarão mais alguns passos em nossa via para o protetorado, o caminho da servidão. Do total do bolo, que porcentagem abocanharão? Iniciativas semelhantes de sujeição ao poder chinês estão acontecendo em outros setores da economia.

Já sei, infelizmente não vai ser outra a linguagem do noticiário, é o que dita a experiência, mas convém repetir. Quando lermos na imprensa, empresas chinesas, entendamos, estatais chinesas. Quando lermos, investidores e empresários chineses, entendamos burocratas do PCC. Quando lermos investimentos chineses, entendamos aplicações do governo chinês.

Horror da transparência. Vivemos no reino dos eufemismos e das ocultações, da fuga obstinada da verdade e da transparência. E, desde os governos tucanos, pouco ou nada alterou até agora no avanço da China sobre a economia brasileira, com piora do quadro no período petista. Mudará? Oxalá, receio que não. No caso, trata-se de ameaças à independência e à soberania nacionais. E que ninguém se engane, se o rumo não for revertido, o tempo vai trazê-los ▬ governos totalitários. Protetorados, confessados ou disfarçados, tendem a seguir o modelo vigente nas metrópoles.

O tempo, falei dele. O tempo não parou durante o confinamento, acelerou-se em vários e decisivos âmbitos. A China começou como bicho papão, causa da crise. Pode tornar-se grande ganhadora. Sua economia sofreu menos que as outras. Caso de lá venha a vacina, e trabalham para tal, já declarou que será “bem público”, ou seja, não haverá direito a royalties e patentes, recolherá louros. De outro lado, os Estados Unidos, em vez de tomar a dianteira na coordenação e resolução da crise, afundaram-se em intermináveis disputas intestinas. Parecem perdidos de momento. Putin consolidou-se na Rússia. E, quem diria, Maduro dá sinais de estar se consolidando na Venezuela, para alegria de seus amigos cubanos, chineses e russos. Um eventual governo Biden agravaria tal quadro.

Esperança viva. Por que lembro tudo isso? Porque, como vigia na espreita, quero a vitória. Indispensável apontar zonas de infecção e tentar evitar que o desleixo, a superficialidade e o otimismo acarretem o fracasso.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Fugindo do óbvio


Fugindo do óbvio

Péricles Capanema

O ministro José Luís Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), tocou em ponto delicado, silenciado e óbvio: “Temos preocupação que a facultatividade [do voto] possa produzir a deslegitimação dos eleitos na possibilidade de um elevadíssimo índice de abstenção”. Depois, aludiu a questão circunstancial: “Embora ache que deva se considerar, sim, uma eventual anistia de multa, ou considerar uma justificação dos que não compareceram por fundado temor de contração do vírus por se sentir grupo de risco." Em resumo, seria bom deixar de multar quem não apertar os botões na urna em 15 e 29 de novembro próximos.

Vou tratar do óbvio silenciado, levantado para surpresa minha por José Luís Barroso: o temor de o voto facultativo deslegitimar no Brasil as eleições e os eleitos. De outro modo, que o povo, soberano reverenciado na mitologia revolucionária, dê as costas para o processo eleitoral, desvalorizando o mandato dos escolhidos. Tô nem aí, diria um jovem. Repetindo o ministro para fazer de clareza solar a afirmação dele ▬ existe generalizado temor de que o voto facultativo possa deslegitimar os eleitos pela possibilidade de elevadíssimo índice de abstenção.

Qual seria o índice de abstenção no Brasil com o fim do voto obrigatório? Ninguém sabe. Meu palpite, 70-75% de abstenção em média, considerando todas as eleições. Um pouco menor nas votações para presidente e governadores, quem sabe prefeitos de grandes cidades, subiria a abstenção nas legislativas.

Já tratei do assunto em vários artigos: não acho que o voto facultativo deslegitime a eleição e desvalorize os eleitos entre nós ▬ todo mundo está cansado de saber que o voto vale pouco. À vera, expulsaria a fraude política silenciada e puxaria para o proscênio a realidade, mesmo desagradável, e a transparência. O voto obrigatório perpetua o embuste que cobre a represesntação, faz aparentar interesse onde não há, tange para a urna sob pena de punição ou distribuição de pequenos prêmios, multidões desinteressadas; todo mundo fica obrigado a votar debaixo de vara; se não o fizer, multa, proibição de praticar atos normais da vida civil. O soberano (o povo) é quase tratado como marginal perigoso, que precisa de vigilância minuciosa. Veja o que acontece ao desvalido eleitor se o deixar de votar, exercício de um direito, transmutado em dever penoso, e não justificar (alguns exemplos, não é tudo): não pode se inscrever em concurso público; não receberá vencimentos, remuneração em emprego público, autárquico ou de paraestatal, de empresa ligada ao Estado, proibição de participar em concorrências públicas; proibição de tirar passaporte, carteira de identidade, renovar matrícula em instituição fiscalizada pelo Estado; proibição de empréstimo na Caixa Econômica Federal; proibição de participar em ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou do imposto de renda. Em suma, amolação e atraso de vida para o pobre cidadão desamparado. Retrocesso.

A maioria dos países adota o voto facultativo. Entre eles, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão, Alemanha, Espanha, Portugal. Ninguém lá teme deslegitimar eleições nem desvalorizar eleitos por causa da abstenção. Entre a minoria que adota o voto obrigatório, além do Brasil, figuram Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai e Egito.

Entre nós, o voto facultativo baratearia as eleições (o custo proibitivo das campanhas é o maior fator de corrupção na política), melhoraria a representação, traria maior proximidade entre eleitores e eleitos. Apesar da evidência, o político brasileiro, direita, centro e esquerda, no caso, deputados federais e senadores, em geral foge da aprovação do voto facultativo como o diabo da cruz. Tem pavor de tratar do assunto. Quando pressionado, dá evasivas; poucas vezes se diz pronto a aprovar qualquer PEC a respeito. Há poucas exceções, às quais aqui homenageio. Não custa lembrar, voto obrigatório (determinado pelo artigo 14, § 1º, I da Constituição) não é cláusula pétrea. São elas: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

Sem dúvida, o voto facultativo traria eleitos com votações pequenas, acabaria com muitos candidatos folclóricos, forçaria atitudes de sobriedade e modéstia nas casas legislativas, silenciaria blá-blá-blás de participação popular (inautêntica). Enfim, sanearia muita coisa. Mas é pregar no deserto, para desgraça nossa existe sólida maioria na Câmara dos Deputados e no Senado contrária à sua adoção, unida na preservação do entulho autoritário. Panaceia? De modo nenhum, melhoraria algum tanto a representação política, já é ganho ponderável, um avanço civilizatório, de que nos privam os eleitos (por nós).

Viro a página. O ministro Barroso levantou tema de enorme importância: a legitimidade. Deixou evidente que a legitimidade, mesmo em situações perfeitamente legais, pode ser ofendida e é dever dos homens de bem evitar a ofensa. Com o voto facultativo, opina o ministro, as eleições teriam igual força constitucional e legal, mas faltaria legitimidade aos eleitos, pouco sufragados. Para ele, situação grave a evitar. Ele tem razão num ponto essencial, a legitimidade não se assenta exclusivamente na lei. Assenta-se também, completo, em outras realidades; se olharmos para o Direito Natural, negado por tantos, tem ali raízes. Em curto, o que é legitimidade? Vai aqui conceito caseiro, sujeito a bombardeios, é a conformidade com a ordem. Ordem via de regra nascida da natureza, da História, do fato moralmente justo. Qualquer situação, brotando da desordem, irrompe ilegítima. É útil recordar, existem a legitimidade e a ilegitimidade da ordem social, das leis, das condições sociais, das dinastias e não apenas das reais. Viver dentro da legitimidade é das mais importantes condições para a consecução do bem comum. E, por ricochete, dos bens individuais. É, contudo, assunto para outra ocasião.

Volto ao fulcro, não fujamos do óbvio. É notório, o eleitor brasileiro, desinteressado de política e eleições, sem apetência pelos pratos oferecidos, em sua boa maioria, não votaria se não fosse tangido, debaixo de vara, para a urna. É inafastável a pouca representatividade dos eleitos, a mais do claro fracasso democrático, fatos em nada ofuscados pela tentativa de tentar tapar o sol com a peneira mediante a adoção do voto obrigatório. Haveria mais legitimidade em nossos processos eleitorais com a adoção do voto facultativo; a verdade e a transparência, hoje evitadas, iluminariam melhor o processo eleitoral.

Eleições na bica


Eleições na bica

Péricles Capanema

No Brasil teremos eleições municipais em 15 de novembro; nos casos de 2º turno, ainda em 29 de novembro, votações para prefeitos. Sem dúvida importantes, fornecerão estimativa, instantâneo, de como se posiciona a opinião pública e tornarão mais plausíveis os prognósticos para 2022.

Aqui as eleições brasileiras serão tocadas de raspão, não é sobre elas que pretendo discorrer. Eleições presidenciais norte-americanas serão o tema. Muita gente já comentou em blague, repito o gracejo, as eleições presidenciais nos Estados Unidos influenciam tanto, que todo mundo deveria votar delas.

A conhecida revista inglesa “The Economist”, em sua última avaliação sobre o pleito de 3 de novembro próximo coloca Joe Biden com 54% dos votos populares, Trump com 46%. Ainda segundo “The Economist”, de momento Biden tem 90% de chances de ser o próximo presidente dos Estados Unidos (98% de probabilidade de vencer no voto popular).

Se os atuais prognósticos foram confirmados, e não é difícil que o sejam ▬ ainda que pesem sobre eles as justificadas reservas sobre a objetividade das pesquisas ▬, Biden chegará ao poder à frente de gigantesca coligação que incluirá, apenas como exemplos, simpatizantes do movimento vandálico de derrubada de estátuas, setores extremados do “Black Lives Matter”, defensores da pauta LGBT, ideologia do gênero, aborto. E ainda forças políticas que simpatizam com partidos de esquerda na América Latina. Em outro âmbito, presumivelmente ficarão mais fáceis as manobras de Xi Jinping e Vladimir Putin para expandir a própria influência e minar a importância dos Estados Unidos no mundo. Queira-se ou não, terão sido enormes golpes nos interesses do Ocidente, eco pálido (a demolição interna é enorme) e, paradoxalmente poderoso (engloba países de grande poder) do que foi a Cristandade. Enormes golpes, disse; reafirmo. Presumivelmente desferidos de forma gradual, passamos por era girondina. E possivelmente menos contundentes para a opinião pública pela restauração parcial, quando menos publicitária, do papel internacional dos Estados Unidos, com a recusa do “America first”.

Adiante. Descendo a detalhes e analisando de perto o período pré-eleição, Joe Biden tem contra si a falta de carisma, o ar distante e a aparência um tanto avoada. Não galvaniza seguidores, eleitores potencialmente seus poderão não se sentir animados a votar no 3 de novembro. Contudo, tais circunstâncias devem ser vistas com olhar matizado. Biden sabe ganhar eleições. Senador aos 30 anos, venceu a seguir seis disputas sucessivas para o Senado; e por duas vezes, junto com Barack Obama, foi vitorioso em eleições presidenciais. É nome nacional desde 1973.

Católico, não age na política de forma coerente com a fé, tendo tido choques com o bispo diocesano, por causa de seu favorecimento do aborto. Semanas atrás, declarou que agirá contra os estados da União que promulgam leis restritivas ao aborto: “Os direitos à saúde das mulheres estão sob ataque quando estados no país inteiro aprovam leis extremadas restringindo o direito de escolha das mulheres sob quaisquer circunstâncias”. Continuou: “Como presidente vou colocar na legislação o determinado pela decisão Roe v. Wade da Suprema Corte e o Departamento de Justiça fará tudo que estiver a seu alcance para impedir a avalanche de leis estaduais que tão claramente violam o direito de escolha das mulheres”. Suas posições pró-aborto e favoráveis ao “same sex marriage” podem lhe tirar votos; é forte o eleitorado conservador nos Estados Unidos.

Joe Biden tem histórico familiar amplo e controverso. Alguns fatos o favorecem eleitoralmente; outros podem prejudicá-lo, em proporção ainda não conhecida. Casou-se em 1966 com Neilia Hunter. Tiveram três filhos, dois meninos e uma menina. A mulher e a filha, em 1972, morreram em desastre de automóvel. Biden casou-se uma segunda vez, em 1977, com Jilly Tracy, com quem teve uma filha. O filho mais velho de Biden, Beau, faleceu de câncer aos 46 anos. O outro filho, Hunter, ▬ observa o sociólogo Manuel Castells, favorável a Biden, em “La Vanguardia” de Barcelona ▬ “uma bala perdida, expulso da Marinha por vícios em drogas e envolvimento em negócios com empresas chinesas e depois ucranianas, que lhe pagavam salários astronômicos por ter um Biden em seus conselhos. Isso explica o escândalo da negociação de Trump com o presidente da Ucrânia para que lhe facilitasse informação sobre Biden júnior em troca de ajuda, um assunto que levou à acusação de impeachment contra Trump”. De momento, as estrepolias do filho parecem não prejudicar significativamente a candidatura do pai. Os Estados Unidos têm outras preocupações, em especial a crise econômica e a pandemia.

Uma palavra sobre Donald Trump. Mesmo sem mudanças ideológicas e de aspirações no eleitorado, a crise econômica e a decepção com o comportamento presidencial podem lhe tirar votos decisivos. E, então, reitero, pode começar uma época particularmente difícil: liberdades ameaçadas, crescente desagregação social, ameaças de totalitarismo caminhando a nosso encontro.

Percebo, não despertei esperanças róseas, e fico sujeito à censura de atrair, quiçá prematuramente, o olhar do leitor para perspectivas sombrias. Errei? Não me parece. Em primeiro lugar, não é tão prematuro assim, as eleições estão na bica. E a seguir, tudo o indica, teremos avalanche de fatos que, já agora, precisam ser entendidos, combatidos e detidos quanto possível. A mais, pode-se alegar em favor de tal atitude exemplo histórico de um grande vitorioso. Sem ele, a história da liberdade e das democracias ocidentais teria sido outra. Quando ascendeu ao cargo de primeiro-ministro, no discurso inaugural de 13 de maio de 1940, julgou Winston Churchill necessário para enrijecer a fibra britânica e preparar o país para uma luta vitoriosa expor de forma escancarada a realidade sombria: “Só tenho a oferecer sangue, sacrifícios, lágrimas e suor. Temos diante de nós provação muito dolorosa. Diante de nós estão muitos e muitos meses de luta e sofrimento. Qual é nosso objetivo? Fazer a guerra por terra, mar e ar. Guerra com todo o nosso poder, com toda a força que Deus nos deu. Guerra contra uma tirania monstruosa nunca suplantada no escuro e lamentável catálogo dos crimes dos homens. Esta é nossa política. Qual é nosso objetivo? Respondo com uma palavra: a vitória. Vitória. Não importam os custos, apesar de todos os sofrimentos. Vitória, ainda que o caminho seja longo e duro. Sem vitória, não há sobrevivência”.

“Proportione servata”, se as considerações acima valem para a situação geral, valem também para os dias difíceis que podem estar diante de nós no Brasil, em consequência das eleições de 2020 e 2022.

terça-feira, 7 de julho de 2020

O Cristo Redentor do Corcovado na mira


O Cristo Redentor do Corcovado na mira

Péricles Capanema

Prossegue intensa nos Estados Unidos a campanha de destruição de estátuas simbólicas. Foram derrubadas estátuas de Cristóvão Colombo; várias estátuas de generais heróis na Guerra Civil sofreram a mesma sorte, também algumas de são Junípero Serra. Estátua de são Luís IX, rei da França, foi rapidamente recolhida em Saint Louis para não ser vandalizada. E ainda ameaçadas estátuas dos chamados pais fundadores da nação líder do Ocidente. A destruição continua, nada parece escapar à fúria vandálica. Além de arrancadas violentamente dos pedestais, têm sido corrente, para completar a liturgia caricata, cusparadas, chutes, berros, pinturas afrontosas. Não são raras mutilações e decepações.

A mensagem lampeja clara: a figura dos homenageados evoca realidades já não mais toleráveis. Primeiro o símbolo e depois as realidades simbolizadas serão banidos da superpotência. Acusam-nos de representar uma civilização escravocrata, imperialista, genocida, opressora, em especial de negros e índios. Um passo a mais: é a civilização europeia que está no cadafalso. Outro passo na mesma direção: é a civilização cristã europeia. E a fonte última da Europa cristã é Nosso Senhor Jesus Cristo. Questão de tempo, chegarão lá, as estátuas de Jesus Cristo, símbolo de sua doutrina e igreja, também serão abatidas.

Aliás, já estamos nas primeiras etapas de tal demolição revolucionária ▬ não convém evitar o qualificativo que cabe: satânica. Coerente com o espírito do movimento, foi o que sintomaticamente já anunciou o escritor Shaun King, ativista social, fundador do “Real Justice PAC” e apoiador do movimento “Black lives matter”: as imagens de Jesus Cristo também precisam ser derrubadas, pois lembram “uma forma de supremacia branca”. Imposição da justiça real, parece, ditadura dos novos tempos.

No começo, o vozerio pela derrubada virá da extrema esquerda, de movimentos anarquistas e assemelhados, como já exigido por Shaun King. Depois, vozeadas do centro ecoarão os protestos, propondo a medida como necessidade de harmonia social. No fim, uma suposta maioria centrista achará melhor tirar todas as estátuas de Nosso Senhor dos lugares públicos para preservar o caráter laico do Estado. E, no trajeto, algumas estátuas serão vandalizadas, sem nenhuma punição, forma de impor celeridade maior ao processo demolidor. Alguns, com subestima, às vezes calculada, dirão, são meros atos simbólicos, não mexem no fundo das realidades que importam, que continuarão as mesmas. Serão as mãos que apagam, as vozes que adormecem.

Símbolos não importam? Pulo as décadas, retorno para longe. Em 23 de junho de 1813, Napoleão encontrou Metternich em Dresden. Ali se jogava a sorte da Europa, a vida, quem sabe, de milhões de homens. Foram quase quatro horas de conversas, por vezes amável, por vezes tensa e ríspida. De um lado, o general representante da investida revolucionária. Do outro, o representante da Europa conservadora. Em certo momento de tensão, os dois em pé, Napoleão gritou ameaças e atirou o chapéu no chão. Ele era imperador, o outro, apenas ministro. Esperou um gesto de cortesia de Metternich, recolhendo e lhe devolvendo o chapéu. Nada. O corso passou ao lado do chapéu, empurrou-o com o pé. O chanceler austríaco não se mexeu, fingiu nada ter percebido, continuou a argumentar. Napoleão ameaçou:

▬ Para um homem como eu, a vida de um milhão de homens, vale nada”

Metternich olhou o chapéu no chão. Continuou Napoleão:

▬ Perdi 300 mil homens na Rússia, entre eles não havia mais que 30 mil franceses. Os outros, italianos, poloneses, alemães.

O ministro atalhou:

▬ Vossa Majestade se esquece que fala a um alemão.

Napoleão sentiu o golpe, apanhou o chapéu e o enfiou na cabeça. Derrota simbólica enorme. Ao se despedir, Metternich lhe disse: “Majestade, sua situação está perdida. Pressentia-o, quando cheguei. Agora, levo comigo a convicção”.

O encontro de Dresden, pleno de frases e gestos simbólicos, repercutiu. Repercute até hoje. É visto como um dos marcos importantes da queda de Napoleão. A Europa tomou um rumo detestado pelo imperador da França. Um gesto simbólico, a recusa de apanhar um simples chapéu (no caso, indício de temor e traço de subserviência) até hoje é vista como resumo de uma reunião de mais de três horas. Gestos simbólicos têm efeito enorme, são lances da guerra cultural. Além da importância em si, são observados como atitudes prenunciativas.

Será derrota enorme para a Cristandade que diante das estátuas derrubadas (no frigir dos ovos o que está sendo atacado é a Cristandade), não haja resposta à altura com desagravos proporcionais e revide legais, mas altamente significativos.

Donald Trump está em campanha pela reeleição. Qual estátua os dirigentes da propaganda escolheram como a mais representativa para ser derrubada? À primeira vista, seria alguma de um “foundigng father”. Ou alguma célebre na Europa pelo valor artístico.

Nada disso, foi selecionada a do Cristo Redentor do Corcovado, braços abertos para o mundo, inaugurada em 1931, eco lídimo do movimento pela realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ato de enorme simbologia, visto pelos chefes da campanha presidencial republicana como de forte repercussão eleitoral. O fato é conhecido. Em propaganda divulgada por todos o país, encimada pelo Cristo do Corcovado, o texto dizia: “O Presidente deseja saber quem o apoiará contra a esquerda radical”. Está dado a entender, queiramos ou não, estamos diante de uma batalha universal.

Dia virá, e não está longe, em que se exigirá no Brasil a derrubada da estátua do Cristo Redentor do Corcovado. A exigência virá de grupos ideológicos, inflamados pelas mesmas doutrinas que hoje trabalham nos Estados Unidos pela destruição de suas raízes históricas e aparecimento de uma sociedade rasa e ateia, parecida com o mundo comunal imaginado por Marx como etapa final do comunismo.


domingo, 5 de julho de 2020

Mar conservador


Mar conservador

Péricles Capanema

Dias atrás o jornalista Alexandre Garcia abriu debate interessante, mesmo que involuntariamente. Negou que haja onda conservadora no Brasil. Segundo ele, o que existe e sempre existiu é um mar conservador tranquilo, sem ondas. São palavras suas: “Eu diria que não há uma onda conservadora, o que sempre houve foi um mar conservador, sem ondas, que estava encurralado pelos meios políticos de informação. Houve também um domínio, nos últimos anos, dos chamados progressistas que deixou os conservadores encolhidos e temerosos”.

Mar sem ondas, mar conservador encurralado. Explicou melhor o pensamento: “Desde as escolas são postos na cabeça [das pessoas], que um lado é bom e que o outro lado não é bom. Houve uma censura que se cristalizou no chamado politicamente correto, que foi uma forma de censura e uma forma de totalitarismo ▬ que é a censura do pensamento ▬ porque as pessoas devem pensar conforme o padrão do politicamente correto”.

O politicamente correto, cristalização de censura generalizada, a conhecida patrulha ideológica, observa com objetividade Alexandre Garcia, é um totalitarismo no âmbito do pensamento. É totalitarismo generalizado no Brasil, que deixou os conservadores “encolhidos e temerosos”.

O jornalista atribui às redes papel libertador do pensamento conservador: “Agora surgiu a libertação e as pessoas descobriram as redes sociais. Elas viram que ali poderiam ter voz, que ali teriam uma chance, que se expandiu e aí formou a onda. Pelas redes sociais estamos livres para falarmos o que quisermos sem sermos tolhidos pela censura do politicamente correto [...], e essa liberdade conduziu a um resultado eleitoral em outubro de 2018”.

Aqui, Garcia matiza o pensamento; nas redes, à vera, ele observa ondas. Encrespadas, acrescento. E contra elas se armou a patrulha, em especial nos meios de divulgação. Continua ele: “Quando passaram a perceber que teria dois lados, começaram a gritar que ‘polarizou, polarizou, polarizou’ e chegaram a chamar o outro lado de radical e até de extremista, com medo da dialética e de ter um segundo pensamento que acabaria com a monocracia”. Governo de um, monocracia, aqui tem o sentido de imposição de pensamento único, uma espécie de “1984”. Lembra deveras Georges Orwell, são espécies dos gêneros “novilíngua” e “polícia do pensamento”, denunciadas pelo jornalista inglês.

Em resumo, existe no Brasil e vem de longe um oceano conservador pacato; de momento temos ainda ondas conservadoras encrespadas. Visto mais de perto, o oceano conservador é imenso, retorna logo à calmaria, depois das borrascas e tormentas; mais, gosta dela e para ela retorna, logo que possível. Público de hábitos simples, com escassas possibilidades de se fazer representar na vida pública, tem o olhar posto na família, bem como está desabituado a considerar longamente interesses além do círculo doméstico. Preza a honestidade, a discrição, a palavra dada. Seu maior entretenimento é o convívio, em especial no interior da família. Temperante por atavismos, desagradam-no incontinências, desmandos, linguagem chula, palavrões, insolências, agressões destemperadas. Desconfia de perspectivas e planos mirabolantes. Tem, a bem dizer, nenhuma presença na vida pública, não é visto nos meios de divulgação, não chama atenção na economia. Quanto representa do total da população? Não sei, bem pode ser mais que a metade. Entre o mar tranquilo e as vagas crispadas, o mais importante é o oceano sereno, ainda que, as segundas apareçam mais, o primeiro seja quase nunca visto.

O Brasil mar tranquilo se vê representado no Brasil ondas encrespadas? O tom agrada? O conteúdo convida à adesão? A postura tranquiliza? Não, o Brasil divisado acima ainda se sente órfão ▬ pelo menos em larga medida. Ou, quase sempre, a sensação do público é, estamos em presença de contrafações.

E os votos? No dia da votação, o eleitor não escolhe a comida preferida, é obrigado a escolher entre pratos que lhe são apresentados. E existem as fraudes, os truques publicitários, em geral desvelados depois que se fecham as urnas e começa o ramerrão do governo ou as sessões legislativas. Em resumo, continua ainda enorme orfandade pairando como sombra melancólica sobre todo o Brasil.

Tem mais. A representatividade aqui precisaria se manifestar antes em âmbitos socais e só depois se tornar política e eleitoral. Seriam necessários figuras de destaque na família, nas escolas, no mundo do trabalho, que patenteassem nas ideias e comportamento o que a metáfora do mar tranquilo procura dizer ▬ serenidade, decência, compostura. Enfim, tipos humanos que as representassem autenticamente. E em etapa complementar, não sempre necessariamente cronológica, caminhassem para ter relevância eleitoral e política.

Viro a página. Corria 1982, coligação com tintura esquerdista havia ganho eleições no Brasil, na ocasião governado pelo general João Baptista Figueiredo. Comentou o fato o professor. Plinio Corrêa de Oliveira em artigo na imprensa diária, de onde retiro um aspecto (Folha de S. Paulo, 14.12.1982): “Contento-me [...] em destacar delas [as eleições] um ponto em torno do qual, a meu ver, tudo gira. É ele de índole muito mais temperamental do que ideológica, como, aliás, corresponde ao feitio de nosso povo. [....] O brasileiro é cordato, e só gosta de assistir discussões e brigas quando não são "para valer" mesmo. Aí elas o encantam. É a hora da torcida, do fuxico, da fofoca”.

Plínio Corrêa de Oliveira tratou das possibilidades da esquerda e, a seguir, analisou também as perspectivas para o centro e a direita, que são os setores dominantes na faixa do público colhida pela metáfora do mar tranquilo: “O centro e a direita só continuarão a representar um papel marcante na vida brasileira se souberem adaptar-se a tal”. Adaptar-se ao fato de que o Brasil privilegia pacatez, decência, compostura. Do contrário, com o tempo, o mar irá secando, pode virar lagoa.

Ele continua no mesmo diapasão: “O Brasil de hoje quer absolutamente pacatez. Se a esquerda vitoriosa não souber oferecê-la, esvanecer-se-á. Se o centro e a direita não souberem conduzir sua luta num clima de pacatez, terá chegado a vez deles se esvanecerem”.

E olha para o futuro: “Quem ganhará: a direita? o centro? a esquerda? ▬ Quem conhecer as verdadeiras fibras da alma brasileira e souber entrar em diálogo pacato com essas fibras. Seja governo, seja oposição, pouco importa. A influência será de quem saiba fazer isto”.

Concluiu: “A hora [é] para as discussões arejadas, polidas, lógicas e inteligentes. Os pacatos toleram tudo, exceto que se lhes perturbe a pacatez”.

O futuro chegou, pelo menos um futuro chegou. Fundamentalmente, o temperamento público do Brasil de 1982 é o mesmo do agora existente em 2020. Morrerão na praia as ondas encrespadas se deixarem perceber, mesmo ao lado de valores estadeados, ligadas às melhores raízes do Brasil, destampatórios chulos, insolências, primarismo, falta de compostura, agressões destemperadas, fundamentação inconvincente, ausência de decência, morrerão na praia. Delas continuará distante o mar tranquilo. O público conservador continuará (ou voltará s ser) encolhido e temeroso; o mar irá virando lagoa.

Uma nota final. Pelo que me lembro, ninguém havia notado antes a importância da pacatez na vida e política brasileira; fator essencial. Comentário precioso, não o deixemos rolar pela sarjeta.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Junípero Serra, o santo execrado pelos intolerantes


Junípero Serra, o santo execrado pelos intolerantes

Péricles Capanema

São Junípero Serra, venerado em especial no México e na Califórnia, faleceu em 28 de agosto de 1784 na Missão São Carlos Borromeu (Monterey), minado pela tuberculose. Em campanha crescente, anos e anos o santo missionário vem sendo insultado de, entre outros doestos, “o santo genocida”, agente de “conquista imperial que oprimia e escravizava indígenas”. Tem estátuas derrubadas, chutadas e cuspidas nos Estados Unidos, em particular na Califórnia. Setores extremados, com a conivência de correntes de mesma orientação, ainda que de comportamento moderado,  não toleram no Estado a presença moral do frade franciscano intitulado desde há décadas por opinião generalizada “o Apóstolo da Califórnia”. As mesmas gargantas que vituperam genocida, escravagista, imperialista, é corrente, berram elogios ao mundo LGBT, à vida selvagem, descrita idilicamente. E em geral querem a eleição de Joe Biden e até fazem campanha por ele. De passagem, não custa notar, nenhuma mesquita é atacada, nenhum líder muçulmano sofre impropérios, embora Maomé tenha tido escravos e o islamismo tenha promovido a escravidão na África.

Um lado, a narrativa dos que veneram Junípero Serra (nome em catalão Miquel Josep Seera i Ferrer). O frade nasceu em 24 de novembro 1713 em Petra (Maiorca, Ilhas Baleares), filho de honrados, analfabetos e católicos pais camponeses. Teve brilhantes estudos eclesiásticos. Em 15 de setembro de 1731 emitiu os votos religiosos, quando adotou o nome de José Miguel Junípero, homenagem ao discípulo de são Francisco de Assis. Foi ordenado sacerdote em 1727, alcançou o grau de doutor em Teologia, tornou-se rapidamente professor respeitado na Universidade de Palma de Maiorca, além de notável orador sacro. Tinha nome em Palma de Maiorca.

Tudo deixou para seguir o chamado de Deus para a vida missionária. Recebeu apoio dos superiores e com a idade madura de 35 anos embarcou em 1749 para o México (na época, vice-reino da Nova Espanha), juntamente com 20 outros missionários. Desembarcou em Santa Cruz em 7 de dezembro do mesmo ano. De lá, juntamente com seu companheiro, frei Francisco Palóu, mendigando, foi a pé até a Cidade do México estabelecendo-se no Colégio San Fernando. Ali permaneceu cerca de um ano, sendo enviado depois para missionar Sierra Gorda, próxima a Querétaro, uns duzentos quilômetros da Cidade do México. Permaneceu na região por cerca de 10 anos. Além da catequese, os frades ensinavam rudimentos de agricultura e pecuária aos índios, bem como fiação, tecelagem e cozinha para as mulheres. Em 1758, voltou para o Colégio San Fernando. Os próximos nove anos foram tomados com trabalhos administrativos, formação de noviços, missões nas dioceses de México, Puebla, Oaxaca, Valladolid e Guadalajara.

Aconteceu o inesperado. O rei Carlos III em 1767 expulsou da Nova Espanha todos os missionários jesuítas. Os franciscanos foram chamados para preencher a lacuna na Califórnia, região ainda selvagem. Deles era a missão evangelizadora, mas havia também colonização e conquista. Sacerdotes, militares, administradores, sob o impulso de Madri, marcharam em direção ao norte. À testa de 15 franciscanos, frei Junípero, em 14 de julho de 1767, deixou a Cidade do México para tomar no porto de San Blás o navio que o levaria à Baixa Califórnia. A expedição zarpou apenas em fevereiro de 1768. O frade estava próximo dos seus 55 anos, idade avançada na época, com dificuldades de saúde, quando chegou à Califórnia.

Trabalhou incansavelmente para estabelecer missões. O sistema era simples. Chegando a um lugar adequado, construíam capela, pequenas moradias para os frades, além de uma fortificação incipiente, proteção contra ataques. Muitos índios, curiosos, aproximavam-se. Vinham os contatos, as amizades, a catequese. A mais, os missionários ensinavam agricultura, criação de animais, noções de construção, serralharia, carpintaria. Havia também para as mulheres ensino de cozinha, costura e tecelagem.

Já idoso, em pouco mais de dez anos, frei Junípero fundou  nove missões, percorreu cerca de 9 mil quilômetros a pé, 5.400 quilômetros embarcado. Muitas das grandes cidades da Califórnia têm origem nas povoações iniciadas por ele, entre as quais, San Francisco, Los Angeles, San Diego. É o único religioso a ter estátua no Congresso dos Estados Unidos, ao lado dos “Founding Fathers”, ou seja, é considerado, até por pessoas sem formação religiosa, uma espécie de “Founding Father” da nação norte-americana. Convém ainda notar, lutou pelos direitos dos índios, muitas vezes desrespeitados por administradores e militares. Houve abusos? Toda atividade humana é passível de abusos. Contudo, temos o fato histórico, gigantesca obra evangelizadora e civilizatória.

O outro lado, os detratores. Respigo palavras de um deles, exemplo sintomático de até a que extremos estão dispostos a chegar. São afirmações delirantes de um scholar e ativista conceituado, o dr. Dean Chavers, publicadas em 2 de março de 2015, pouco dias antes de Junípero Serra ser canonizado em artigo intitulado “Turning a killer into a saint?”(“Vão canonizar um assassino?”, em tradução livre). Claro, o assassino é o frei Junípero. “ Só Deus sabe quantos índios Serra matou pessoalmente, mas foram centenas, se não milhares. Garroteou, enforcou, fuzilou, encarcerou, chicoteou. As mulheres indígenas foram tratadas com crueldade quase igual ▬ estupradas, escravizadas e abusadas”.

É a opção preferencial pela selvageria, bem como pelo ocultamento da vida de miséria, crimes e sofrimentos em que infelizmente estavam afundadas as comunidades indígenas por séculos. Romantizam fraudulentemente a realidade para tornar debilmente crível os ataques à evangelização e ao esforço civilizatório. A morte de George Floyd potencializou o movimento “Black lives matter”, que trouxe em seu bojo o vandalismo contra as estátuas. Nem santos são poupados. É só esperar, os padres Anchieta e Manuel da Nóbrega sofrerão a mesma sorte. São Junípero, são José de Anchieta, rogai por nós, rogai pelas Américas.