O bafo da demagogia
oculta a podridão
Péricles Capanema
Estigma perene. Raíssa, indiazinha de onze anos, foi
assassinada barbaramente por cinco estupradores concertados. Como pôde
acontecer? Não podia; o estupro coletivo sangrou o coração do Brasil. Daqui a pouco,
infelizmente, temo, coração frio, ninguém mais vai se lembrar dela. Este artigo
é para que Raíssa seja sempre recordada. E ainda para que as lições que surgiram de sua
morte, e nos esbofeteiam a cada instante, também permaneçam. A menina morreu
atirada de um penhasco nos limites da aldeia Bororó. Terá sido vista como pacote
inútil ou comprometedor. Um dos participantes do descarte (e do estupro) era
tio seu, irmão da mãe. Na cadeia os estupradores de meninas, é usual, lei do
meio, são mortos pelos demais detentos. O tio de Raíssa morreu na cadeia.
Registro necessário. Tecerei pequenos comentários sobre fatos
amplamente divulgados. No meu caso, estes foram respigados em especial na
extensa reportagem de Vinicius Konchiski, que relatou com precisão a realidade
macabra e multifacetada; não floreou, não enfeiou.
Favela indígena. Raíssa da Silva Cabreira, a indiazinha
estuprada e assassinada, tinha como a mãe, Vanilda da Silva, sobrenomes portugueses,
gente aculturada, pelo menos em parte; moravam mãe e filha numa favela indígena
(tecnicamente residiam na Reserva Indígena de Dourados), Mato Grosso do Sul. A
reserva, instituída em 1914, tem 3 mil hectares, está a dez minutos de carro do
centro de Dourados, cerca de 250 mil pessoas, importante centro agropecuário,
conhecida como “Cidade Modelo”. A mais densamente povoada reserva do Brasil, ali
moram, via de regra precariamente, em torno de 20 mil pessoas, indígenas, mestiços,
brancos, negros. Saúde e educação escassas, segurança baixa, pouca água potável,
cachaça solta, droga disseminada, criminalidade alta. Organizações de finalidades
várias doam meritoriamente cestas básicas para quem ali vive. A maioria dos
residentes pertence à etnia guarani kaiowá. Existem muitos terenas. A mais as
habitam indígenas de outras etnias. Duas aldeias estão na área. Uma, a Bororó (maioria
kaiowá); outra, a Jaguapiru, parece um bairro, composta por etnias diversas;
fica à margem da rodovia MS-156. Os assentamentos do INCRA receberam o nome de
favelas rurais; aqui uma reserva recebe o nome de favela indígena. Na realidade
do Brasil, temos dinheiro público torrado e perdido a rodo somado à roubalheira
(negligência, imperícia, imprudência, desonestidade ▬ culpa e dolo), com pouca
ou nenhuma melhoria efetiva para os supostos beneficiários, quando os há.
Dependência estatal. Vou entrar por um atalho, daqui a pouco
voltarei ao estradão. Criada em 1914, até hoje a reserva não anda pelas
próprias pernas, depende do Poder Público e de entidades privadas
assistenciais. Culpa dos índios? Não. De ideias regressistas, muitas vezes
entulhos autoritários, que impedem o avanço. Em resumo, as ajudas e
compensações, necessárias e louváveis, deveriam com compasso, gradualmente, estimular
a autonomia; e depois a liberdade dos assistidos. Como uma mãe faz com o filho
▬ o auxílio afetuoso é formativo, molda a personalidade, prepara para a vida em
liberdade.
Servos da gleba para sempre. O regime legal das reservas não ajuda.
Disfarça-se a realidade, mas o que se perpetua no Brasil, quanto aos índios, é
versão adaptada do servo da gleba medieval. Na Idade Média, o senhor feudal mantinha
a propriedade da terra; em troca os servos da gleba gozavam de estabilidade,
proteção e segurança. Hoje, o senhor feudal (o Estado) mantém a propriedade da
terra. Oferece em troca, mais na promessa que na prática, proteção e segurança.
Com piora. O senhor na Idade Média era próximo, morava no castelo ao lado,
acolhia-os ali, conversava com eles. O senhor hoje é o Estado-Moloch, sem face,
impessoal, totalitário, distante.
Apunhalados no direito de melhorar de vida. Indígenas mais esclarecidos, asfixiados com
a petrificação da política do retrocesso, querem já deixar a efetiva e
inconfessada situação de servos da gleba. A tutela prolongada e indefinida os
está asfixiando. Relembro. A Constituição de 1988 (artigos 231 e 232) concede
aos indígenas posse permanente, direitos imprescritíveis e inalienáveis, uso
fruto exclusivo. Nunca o domínio. E ainda impõe lista amazônica de restrições. Os
indígenas, em movimento crescente, querem ter os direitos do brasileiro comum, caminhar
com sensatez na trilha da autonomia crescente para um dia chegar à liberdade
inteira. De passagem, aspiração justíssima, a liberdade em todo os âmbitos é
direito humano fundamental. Tais indígenas, pelo menos boa parte de seu setor
mais atuante, estão agrupados na COOPAIBRA ▬ Cooperativa de Agricultores e
Produtores Indígenas do Brasil. Lutam para atualizar a legislação, empreender
em suas terras, produzir e comercializar. Enfim, mediante a iniciativa privada,
crescer na vida, educar-se, viver melhor, tirar seus povos da pobreza, do
alcoolismo, das drogas. De quebra, sair da humilhante situação de servo da
gleba. Com isso, além de alargar as próprias possibilidades de melhorias e as
de sua família, serão mais úteis à sociedade. Na paradeira putrefaciente da
presente situação, que ameaça se ampliar, manteremos indefinidamente os
pântanos (caldos de cultura) em que pulularão sem fim casos como o de Raíssa.
Secar tais pântanos, política indispensável e urgente.
Inclusão e avanço para os indígenas. Os índios têm direito de deixar o gueto dos
excluídos, para onde foram empurrados por décadas de imposições
“progressistas”, de fato fontes de atrasos. Faltam oportunidades, faltam
possibilidades. Com a mudança do quadro, viriam emprego, renda, saúde e
educação melhores; enfim, vida mais humana.
Recurso extraordinário 1.017.365. A propósito, está em julgamento no Supremo
o Recurso Extraordinário 1.017.365. Se obter maioria de votos, teremos aumento
das áreas destinadas às reservas indígenas, onde continuarão existindo, será o
normal trágico, situações parecidas à da Reserva de Dourados. À vera, favorece
a fossilização de uma estrutura legal e a predominância de grupos políticos,
cuja ação leva ao retrocesso e exclusão social. Mais reservas, mais paradeira,
decomposição social, dinheiro público jogado no ralo, indígenas servos da gleba
para sempre. De outro modo, menos autonomia, vida com menos oportunidades, mais
tutelas estatais, horizontes fechados. As patrulhas do retrocesso, uma vez
mais, terão barrado as rotas de crescimento pessoal para as etnias indígenas. O
recurso já tem o voto favorável do ministro relator Edson Fachin. Goza ele
ainda de grande algazarra publicitária. No bumbo, puxando a fileira da
vanguarda do atraso, os de sempre: o pessoal da CNBB, CIMI e PT. O programa em
duas palavras está claro: na mão cada um ostenta uma moeda no alto: na cara,
blasonam compaixão; na coroa, promovem ações de efeitos cruéis para com as
populações indígenas. Logo atrás, no mesmo cordão da crueldade, a corneta da Procuradoria
Geral da República. A FUNAI é recorrente.
Falta uma proposta. Como, parece, está em falta uma proposta de
solução, um caminho. Submeto-a ao crivo de todos. Joguem pedras à vontade. É resumo,
linhas gerais, trajes matutinos. No encaminhamento de problemas assim, delicados
e espinhosos, normal seria um debate nacional que reunisse lideranças indígenas
responsáveis, produtores rurais das regiões mais afetadas, figuras de relevo da
ciência e da experiência. Claro, prefeitos e deputados das áreas em questão. Suas
conclusões, fruto do amadurecimento de muitos pontos de vista, seriam então encaminhadas
para o Executivo que, com base nelas, patrocinaria iniciativas legislativas factíveis,
realmente favoráveis aos povos indígenas e aos produtores rurais, tantas vezes
adversários na propaganda falaciosa, de fato irmanados profundamente no
interesse de desenvolver rincões ainda inexplorados do Brasil. É pedir demais?
A vida como ela é. Acabou a digressão, volto para o
estradão, o caso Raíssa. Policial honrado e prestativo o capitão Gaudêncio Benites,
41 anos, indígena da etnia guarani kaiowá, pertence aos quadros da PM do Mato
Grosso do Sul. Tenta ajudar no que pode o pessoal da reserva. Seu celular em 9
de agosto último foi entupido de mensagens sobre a morte de Raíssa. Estava
cansado, havia passado a noite de domingo procurando um outro indígena, igualmente
morador da reserva; desentendera-se este com a ex-mulher e, bêbado, invadira a
casa dela, provocando no interior destruição quase total. Foi então para onde
estava Raíssa: “A gente acompanhava a situação da Raíssa, que morava num
barraco, sem móveis, sem comida, com familiares que bebiam muito. Infelizmente
é a nossa rotina na aldeia; sem perspectiva, o pessoal bebe e acaba cometendo
desde atos de violência, agressões, até os piores crimes." Vale notar, a
reserva, entre 2012 e 2014, teve taxa de 101 pessoas assassinadas por 100 mil
habitantes, aproximadamente cinco vezes maior que a de Dourados (pouco menos de
20 pessoas por 100 mil habitantes). Neyla Ferreira, defensora pública,
sublinha: “Em 99% dos casos de briga, agressão ou abuso, os envolvidos estão
drogados ou bêbados”.
Improvisação para ajudar. Em maio de 2020 a Secretária de
Segurança Pública do Mato Grosso do Sul doou aos indígenas das aldeias Bororó e
Jaguapiru duas caminhonetes Blazer, ano 2008, já retiradas do serviço pela PM; iriam
ser leiloadas. Hoje são utilizadas no patrulhamento. Às vezes, os veículos
quebram, é difícil arranjar dinheiro para o conserto. Falta gasolina, o mesmo
problema, vaquinhas, cada um ajuda um pouco. Continua o capitão Benites: “A
gente sai atrás dos barzinhos, das casas onde o pessoal está com o som muito
alto, com cachaça na mão, e procura pedir para maneirarem na bebida”. É
proibida a venda de bebidas para menores de 18 anos e a de drogas, claro. Pouca
gente obedece, impunidade generalizada. Benites e seus colegas de farda tentam
impedir o tráfico e o consumo ilegal de bebidas: “Vamos na cara e coragem,
pondo em risco a própria vida. Só levo um pau comigo, para caso de emergência
mesmo. Um dia desses, meteram o pé no vidro da camionete e quebraram. Agora,
precisamos juntar dinheiro com a comunidade para consertar”. Nesse ambiente
viveu Raissa onze anos.
Burocratismo sufocante. Verifiquei no artigo de Vinicius
Konchinski os órgãos públicos que trabalham para ajudar a população que mora na
Reserva de Dourados (repito, indígenas, mestiços, brancos, negros). Polícia
Civil do Mato Grosso do Sul, Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul,
Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul, NUPRIR (Núcleo Institucional de
Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e de igualdade Racial e Étnica da
Defensoria Pública do Mato Grosso do Sul), SEJUSP (Secretaria de Estado de
Justiça e Segurança do Mato Grosso do Sul), Universidade Federal da Grande
Dourados, FUNAI (Fundação Nacional do Índio), Ministério da Saúde, Ministério
da Educação, governo do Mato Grosso do Sul, Prefeitura de Dourados, Defensoria
Pública da União, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul. Certamente está incompleta a
lista. Ademais, trabalham ali organizações particulares de assistência. Temos
um aranzel de competências misturadas na confusão: exclusiva, privativa, comum,
concorrente. Um exemplo. Fato pungente, repetitivo, muitos indígenas se
suicidam na Reserva de Dourados. Em 2019 (estamos caminhando para o fim de
2021) foi proposto pelo MPF-MS e Defensorias um acordo extrajudicial entre os
governos (União, Estado, Município) para estudar e minorar o problema. O Estado
alegou que seria necessário para tal uma lei aprovada pela Assembleia
Legislativa. Tudo parado, até hoje inexiste projeto de lei a respeito. Outro
exemplo, as informações fornecidas pela FUNAI ao repórter: “A Funai informou que
questões relativas à saúde dos indígenas e ao abuso de álcool e drogas são
competência do Ministério da Saúde. Já a educação é responsabilidade do
Ministério da Educação, governo do Mato Grosso do Sul e prefeitura de Dourados.
Sobre a morte de Raíssa e a violência na Reserva de Dourados, a Funai declarou
que acompanha os casos e subsidia tecnicamente os órgãos de segurança pública”.
Ponto final; a burocracia resolveu a questão. Estão aí em ação, um pouco mais,
um poucomenos, as estruturas de proteção de todas as Raíssas no Brasil,
Utopias
destruidoras. Não
existe apenas o burocratismo sufocante que torra dia e noite o dinheiro
público. Pior ainda, sob certos aspectos, é o utopismo dominante em
universidades, igrejas, redações e órgãos públicos. Transcrevo análise
expressiva, constante do site do CIMI (autora, Iara Boniin): “Sob os princípios da reciprocidade entre as pessoas, da amizade
fraterna, da convivência com outros seres da natureza e do profundo respeito
pela terra, os povos indígenas têm construído experiências realmente
sustentáveis que podem orientar nossas escolhas futuras e assegurar a
existência humana. Estes povos têm nos ensinado que para construir o Bem Viver
as pessoas devem pensá-lo para todos. Isso significa dizer que é preciso
combater as injustiças, os privilégios e todos os mecanismos que geram a
desigualdade. Assim, a “causa” indígena se vincula com a “causa” dos pobres e
marginalizados.” De outro modo, a solução é o nivelamento. Imposto com base em
slogans e frases feitas, de costas para a realidade. É o Bem Viver. Na
realidade tais utopias conduzem de forma incoercível (as experiências
históricas o provam) para um só fim: ditadura e miséria. Desses ares tóxicos
são sopradas soluções para ajudar as Raíssas espalhadas pelo Brasil.
Fecho inesperado. Apresento conclusão inopinada.
De alguma forma, contudo, exigem-na o impulso de limpeza de panoramas.
Detergente do espírito. Nem vou comentar o que está acima, fala por si. O leitor
talvez ainda precisará de remanso diante de tanto horror. “Senhor Deus dos
desgraçados, Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura ... Se é verdade. Tanto
horror perante os céus!”
Contraste com a vida do padre
Antônio Vieira. Encontrei
o remanso (ou o detergente) em texto de 1903 ▬ conferência sobre a vida do
padre Antônio Vieira (1608-1697) ▬ de Carlos de Laet (1847-1927), grande escritor,
católico e monarquista, batalhador toda a vida, polemista temido: “O que mais particularmente nos
interessa na vida de Vieira, é, senhores, o santo amor que sempre dedicou à
catequese e à liberdade dos índios. Os brancos efetuavam pelo âmago do país
correrias em que aprisionavam e reduziam a cativeiro os prófugos selvagens.
Arrancavam-lhes as mulheres e as filhas, matavam as crianças, e dos homens
válidos faziam, à força de pancadas, servos para os trabalhos rurais. Era a
escravidão debaixo da forma mais odiosa. A nossa história colonial está cheia
desses horríveis atentados, eterna vergonha pela intrépida iniciativa dos
nossos avós. Pois bem, senhores, foi contra esta ordem de coisas que se
ergueram os jesuítas e à frente deles o famoso Vieira”.
Missionava mais de duzentas mil pessoas
(a maior parte, indígenas) em meados do século XVII. Cita então um conhecido biógrafo do
jesuíta; “O espaço desta campanha de norte a sul (aqui chamo, senhores, vossa
atenção) é de mais de quatrocentas léguas por costa; as cristandades e aldeias
que nelas se contavam, eram cinquenta e quatro; as almas, passam de duzentas
mil. Não se contém nesta resenha com estância determinada, porque queria estar
em todas, o capitão e cabo de todos, o padre Antônio Vieira; porque, disposto
primeiro o seu exército para a parte do norte, isto é, do Maranhão até o rio
dos Amazonas, reserva-se para passar ao sul até a Fortaleza do Ceará”.
Dois colégios na selva, internatos e
externatos para indiazinhas. E então fala Carlos de Laet: “Eu vos pergunto, senhores, onde
atualmente os planos de civilização dos indígenas, os quais com este se possam
comparar? [ ...] São dominicanos estrangeiros os que ora catequizam nas margens
do Araguaia, em territórios do Pará e de Goiás. Fundaram ali a colônia da
Conceição do Araguaia, núcleo de mais de quatro mil pessoas; mantêm dois
colégios, um internato de cinquenta meninas, e um externato para número
indeterminado de meninas, dirigido este pelas irmãs Dominicanas. [...] Não
acompanharei, senhores, o padre Vieira em todos os incidentes da sua longa
existência. Para isto fora mister não uma, porém muitas conferências. O que
fica dito, é o essencial”.
Exemplo e obrigação. Raíssa teve a existência decepada,
quando despertava para a vida. Que sua morte desperte iniciativas salvíficas. Não
assassinemos as esperanças de milhões de indígenas, irmãos e irmãs dela. Padre
Antônio Vieira, protegei-os. E que seu amor pelos indígenas, energia, atividade
séria e senso do real iluminem os setores que deles se ocupam entre nós.
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