terça-feira, 14 de setembro de 2021

De ore tuo te judico (2)

 

De ore tuo te judico (2)

 

Péricles Capanema

 

Continuo na exposição e análise do voto do ministro Edson Fachin no RE 1.017.365. Resumindo o que afirmei no primeiro artigo, apenas respigo trechos do voto ajuntando pequenos comentários.

 

Servos da gleba. Os indígenas brasileiros, por determinação constitucional, foram reduzidos à condição de servos da gleba. Condição petrificada, não lhes é aberta a possibilidade do domínio. O servo da gleba medieval não tinha a propriedade da terra (domínio). Trabalhava nela e em troca recebia alimentos, proteção, segurança, estabilidade. Em repetidas ocasiões em todo o voto, ecoando opinião comum, afirma-se, é reconhecida aos indígenas a posse permanente da terra. O ato administrativo estatal tem caráter declaratório, jamais constitutivo. O ministro Fachin transcreve voto antigo do ministro Celso de Mello que trata da questão, externando, aliás, opinião pacificada na Corte: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Continua o relator: “Portanto, muito embora a homologação do procedimento tenha como finalidade a exteriorização da posse indígena, com o consequente registro da área na Secretaria de Patrimônio da União, repita-se que o procedimento demarcatório não constitui terra indígena em nenhuma de suas fases, mas apenas reconhece a existência da posse tradicional preexistente”.

 

Possibilitar a reprodução cultural, segundo usos, costumes e tradições. A outorga dominial (de fato, esbulho, como se verá) que a União fez, reservando-se a propriedade, e concedendo a posse, tem como base os direitos originários ▬ sobre eles discorro abaixo. Para justificar o fato brutal, já muitas vezes repetido, alegam-se proteção do bem-estar, garantia da reprodução cultural segundo os usos. Prevê a lei, tal situação nunca será modificada; os indígenas permanecerão sempre na condição de servos da gleba. Foi sempre assim? Não.

 

Direitos originários. O reconhecimento e a declaração da posse indígena se dão com base nos direitos originários dos índios sobre a terra, manifestado via de regra pela ocupação tradicional. O direito originário, anterior à Lei Magna e, de fato, anterior à constituição do próprio Estado é claro direito natural. Sem o confessar, o que se afirma é a legitimidade e validade deste direito natural. Dirão alguns, não é direito natural, é direito histórico. Bobagem, tem raiz no direito natural. A posse no caso é o exercício de uma das faculdades próprias ao domínio. Enfatizo o fato óbvio, se o direito é originário, antecede à lei positivada, é direito natural e inclui o domínio. E estamos diante de esbulho estatal, que nega aos indígenas o domínio. Foi sempre assim, dirá alguém. Não foi. O ministro Fachin traz documentos que provam que antes não era assim, estamos diante de realidade relativamente nova, os reis reconheciam, sem nenhum entrave, aos indígenas o domínio e a posse da terra. De outro modo, julgavam justamente, reconheciam o fato anterior inconcusso, não lhes negavam o domínio. E, com ele, a posse. Contudo, é óbvio, num quadro jurídico que levasse em conta os institutos do Direito Civil.

 

Proponho seguir o bom exemplo dos reis, avançar sensatamente na direção correta, eliminando o retrocesso. Seria política de amplo e longo alcance, admito, mas representaria reconquista e avanço extraordinários, conferiria aos indígenas condições para desenvolver em melhores condições os direitos individuais, os direitos da personalidade, retirando deles assim uma tutela asfixiante. Com sensatez, mantendo todas as proteções, a extinção de tal entulho autoritário, acabaria com a condição de servo da gleba. Recorda o relator Fachin: “Assim, as cartas régias de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III, afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamento: ‘os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando eles livremente o quiserem fazer’”. O mesmo reconhecimento do domínio [e posse, claro] dos indígenas sobre as terras, lembra o ministro Fachin, ainda se pode constatar em alvará régio de 1680: “Nada obstante o contexto fático, o reconhecimento de posse e domínio sobre as terras que ocupam ocorre com o Alvará Régio de 1680, o qual consignava: ‘[...] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia’”. Foi o Direito contemporâneo que operou a regressão: suprimiu o domínio, esbofeteando o Direito Natural, reconhecendo como grande concessão a posse. Da condição de senhores, reconhecida pelos reis, caíram para a situação de servos da gleba. Não estaria na hora de avançar, retomando com prudência e senso da justiça a trilha real? Pelo menos de pensar proativamente a respeito? Repito, colocar a questão de modo a favorecer a segurança  felicidade dos indígenas, mas levando em conta,, com peso e medida, os institutos do Direito Civil.

 

Outra pirueta semântica. A posse é atributo da propriedade. Está no próprio relatório: “A posse civil pode ser conceituada como ‘sempre um poder de fato, que corresponde ao exercício de uma das faculdades inerentes ao domínio’ (GOMES, Orlando. Direitos reais. 19.ed. atual. por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 51), tal como definido no artigo 1.196 do Código Civil, in verbis: “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. E então, como fica a questão da posse indígena?  Foi forjada mais uma teoria [em linguagem informal, uma pirueta] para evitar as trilhas conhecidas do Direito Natural, do Direito Civil e do Direito Constitucional. Evangeliza o ministro Fachin: “De início, cumpre afirmar que já restou assentado por esta Corte que a posse indígena difere frontalmente da posse civil, não sendo portanto regulada pela legislação privatística vigente, mas sim pelas previsões constitucionais configuradoras do direito territorial indígena. É como delineou a questão o acórdão prolatado na Pet nº 3.388: ‘[...] Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo seus usos, costumes e tradições’ [...] Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena.” O ministro Fachin não fugiu do tema espinhoso; enunciou-o com simplicidade. O referido conceito de posse não tem guarida no Direito Natural [isto digo eu, consoante o enunciado do texto], não tem guarida nos institutos ortodoxos [isto é, conhecidos e admitidos] do Direito Civil, não tem guarida nas doutrinas do Direito Constitucional. É coisa nova, que ele deixa vaga, guarda-se bem de conceituar, [à vera, verdadeiro negotium perambulans in tenebris], intitulada pelo relator de “instituto heterodoxo” do Direito Constitucional. Qualquer estudante de Direito Constitucional poderia ajudar o ministro aqui qualificando a referida heterodoxia: arbítrio. É doutrina arbitrária e cerebrina, gizada para justificar um frankenstein jurídico.

 

Reduções jesuítas. As reservas e terras indígenas lembram instituição antiga, açoitada impiedosamente pelo obscurantismo iluminista, as reduções jesuítas ▬ aldeamentos com pouco contato com o exterior, destinado a formar uma nova sociedade isenta dos vícios vigentes fora dela; utopias na narrativa do enciclopedismo. Dessa forma, os jesuítas para criar a nova cristandade, utopias cristãs, afirmavam os racionalistas, limitavam a liberdade, educavam em certa direção. Com traços parecidos, agora utopias sociais contemporâneas, nas reservas indígenas se almeja instituir um novo modo de vida, uma nova civilização, se quisermos, a ser imposta a cobaias de experimentação social (na prática, a utopia apregoada pela academia, meios de divulgação e mundo oficial). Limitam-se as liberdades para obtê-la, precipitando os indígenas tutelados para a condição substancial de servos da gleba. Atrofiam-se possibilidades de realização pessoal do índio, de sua família e de seu grupo. O ministro Fachin manifesta revelador incômodo com contato com forasteiros, ao discorrer sobre comunidades indígenas isoladas: “A compreensão de uma sociedade plural e de respeito à diversidade, como aquela que a Constituição de 1988 busca constituir, exige que se respeite o direito à autodeterminação desses povos, mantendo-os fora do contato constante com outras pessoas, em respeito a seu modo de vida”. É a novilíngua, para garantir a autodeterminação, cerceiam-se os contatos. É congruente, polui o contato com o forasteiro empapado de civilização ocidental, mercantilista e individualista. Situações assim, que se multiplicam, a lógica nos comanda a conclusão, nascem da intolerância, provocam exclusão. É o que, mutatis mutandis, teria vigência em reduções jesuítas, segundo detratores; é o que tem vigência nas aldeias talibãs.

 

Parcialidade chocante. Em abono de suas posições, o ministro Fachin em geral busca apoio nas mais extremadas correntes revolucionárias do indigenismo e da cena política, o que não se harmonizam com a isenção e a imparcialidade que se espera dos magistrados. Cito três, CIMI (Conselho Indigenista Missionário), APIB - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e CNV - Comissão Nacional da Verdade ▬ na atuação se revelou uma comissão nacional da mistificação. Quanto às duas primeiras cita como dado objetivo e inconteste: “Como informam a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, admitidos no feito na qualidade de amici curiae, o Brasil possui hoje, de um total de 1.298 terras indígenas, 829 demarcações não finalizadas, ou sequer iniciadas”. Se o RE 1.017. 365 obtiver maioria, por aqui já se percebe, teremos o efeito de suas decisões, de saída, em cerca de mil situações conflitivas Brasil afora. Da Comissão Nacional da Verdade, o relator cita trecho de demagogismo delirante, apresentado como portador de dados objetivos: “Como resultados dessas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”. 8.350 indígenas assassinados. Número real: exponencialmente maior. Fora os casos em que o número é tão alto que desencoraja estimativas. É isso, extrato de relatório apresentado à Suprema Corte.

 

Tutores infiéis. Paro por aqui, continuo depois. Infelizmente, doloroso constatá-lo, temos texto mambembe, inçado de inverdades, fantasias, arbitrariedades, que poderá servir de base para decisão que lesará gravemente o agronegócio, petrificará o atraso, gerará pobreza. O relator, douto homem de ciência e jurista conhecido, de certa maneira foi empurrado para a apresentação de texto decepcionante (para ficar por aqui) por falta de alternativa. É indefensável logicamente a causa demolidora que teve a infelicidade de esposar. Os indígenas precisam de amigos que gostem de vê-los em situações de grande realização pessoal, desejam-nos crescendo na vida, em ascensão moral e material; que Deus os livre da multidão de tutores infiéis.

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