terça-feira, 14 de setembro de 2021

De ore tuo te judico (1)

 

De ore tuo te judico (1)

 

Péricles Capanema

 

Julgo-te pela tua boca. Pelo que tu disseste. Apenas isso. Houve constrangimento ou coerção, enfim, algo que diminuísse o valor probatório das palavras enunciadas? Não, como veremos, o ato foi livre, espontâneo; diria mesmo, libérrimo, público, prestigiado. E lembro aforisma ainda hoje corrente no processo penal, a rainha das provas é a confissão. Vem do Direito Romano, repercute no conhecido adágio espanhol: “a confesión de parte, relevo de prueba”.

 

Preocupação funda. Tratarei em alguns artigos, este é o primeiro, do Recurso Extraordinário 1.017.365, que traz à baila a grave questão do marco temporal nas demarcações de terras indígenas. O futuro do agronegócio no Brasil depende da solução que a ela der o Supremo, lembrou com fundamento o Presidente. Melhorando, ecoou opiniões disseminadas na agropecuária e em setores da indústria e do comércio.  Se for decidida na conformidade com o que exige a esquerda extremada (CIMI, entre outros organismos), teremos próximo o risco de anos a fio de queda na produção, carestia de produtos agrícolas, desestímulo para investimentos, generalização da pobreza. Nada poderia ser mais cruel para o povo; e para os índios. A compaixão cristã reclama luta pela defesa da prosperidade e assim a rejeição do RE 1.017.365.

 

O voto do relator ministro Edson Fachin. Mais especificamente, vou tratar do voto do relator, ministro Edson Fachin, que guerreou a tese do marco temporal, abrindo caminho para a demolição da segurança jurídica (já tão combalida) no campo brasileiro. O longo voto do ministro Fachin, 109 páginas, está na íntegra em vários sites de rede; é de consulta rápida e fácil. Meu trabalho se limitará a respigar partes dele, acrescentar aqui e ali pequenos comentários. Qualquer um poderá conferir na rede a autenticidade da citação e, com isso, a pertinência do comentário. Dessa forma, não atravancarei a leitura com referências.

 

Frankenstein apavorante. Em resumo, o que temos? Dói-me dizê-lo e faço as vênias devidas ao douto ministro da Suprema Corte, mas no caso (o voto) temos um texto demagógico, distante da isenção que se deve esperar de um magistrado, eivado de incoerências e contradições, a mais de escasso valor jurídico. De forma congruente, em seus efeitos, favorecedor do totalitarismo, do retrocesso, da intolerância e da exclusão. O curso incoercível da lógica com tristeza leva ainda a afirmar, os indígenas são cruelmente tratados como cobaias de experimentações, cujo desfecho prático, se triunfar o utopismo, será petrificar suas comunidades no atraso e na miséria.

 

Fundamento filosófico. O ministro Fachin ao hostilizar o marco temporal assume e divulga (nenhuma reserva expressa no texto) a doutrina exposta por Ailton Krenak: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza”. Existe então uma historinha para embalar (outra palavra para enganar, iludir crianças na hora de dormir): somos humanidade. Adultos, saberemos a verdade. Não somos, de fato, humanidade, pois não somos pessoa humana ▬ convicção demolidora central em suas posições. Tudo é natureza; somos, à vera, mera parte de um organismo, a natureza. O único real é o organismo natureza. Aqui está na doutrina o maior fundamento para a posse indígena, os indígenas se consideram parte de um organismo. Precisam da terra para manter essa simbiose, suas concepções e modo de vida. São terra, enfim. Comenta o ministro Fachin: “A terra para os indígenas (...) relação de identidade, espiritualidade e de existência”. Indígenas e terra, idênticos.

 

Demolição da pessoa humana. Em sentido contrário, toda a civilização ocidental se desenvolveu tendo como base o conceito de pessoa humana, a seguir enunciado “individua substantia rationalis naturae”, na clássica definição de Boécio. A pessoa é substância individual de natureza racional. Substância individual racional, daí ter direitos individuais, entre os quais os direitos da personalidade. Toda a ação humana busca a felicidade; de outro modo, o aperfeiçoamento da pessoa ▬ direito a desenvolver rumo à plenitude a própria personalidade. Família, grupos intermediários e até o próprio Estado existem, fundamentalmente, para o aperfeiçoamento da pessoa humana. Negada a nota de indivíduo da pessoa, desmorona todo o edifício jurídico sobre o qual se construiu a civilização ocidental. Se não existir o homem, ser racional individual (precipitado à condição de mera parte do todo, a natureza) fica absurdo falar em direitos individuais, direitos de comunidades.

 

Outro fundamento do direito indígena: o imaginário. O texto abaixo, reproduzido pelo relator, já consta do processo anterior, a Pet nº 3.388, água que o ministro Fachin trouxe para seu moinho, pois, entende, fá-lo-á moer mais rápido e com maior força o marco temporal: “Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia”. Imaginário é fantasia. Está escrito aqui, na fantasia indígena a terra é um ser (só falta dizer vivo) que junta em si ancestralidade, coetaneidade e futuro. Estamos próximos da definição de um deus; concepção panteísta da Terra, sem dúvida. O indígena faria parte desse ser que tudo abarca. Desaparece, de novo, a noção sobre a qual se construiu o direito e da qual nasceu a civilização ocidental e cristã: “individua substantia rationalis naturae”.

 

Plenitude para os índios. O indígena, nosso irmão, tem direitos individuais, como qualquer ser humano; mais especifica\mente, tem o direito ao desenvolvimento inteiro de suas potencialidades. A ele precisam ser proporcionadas condições para tal. Voltarei ao tema.

 

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