De ore tuo te judico (1)
Péricles Capanema
Julgo-te pela tua boca. Pelo que tu disseste. Apenas isso. Houve constrangimento
ou coerção, enfim, algo que diminuísse o valor probatório das palavras
enunciadas? Não, como veremos, o ato foi livre, espontâneo; diria mesmo,
libérrimo, público, prestigiado. E lembro aforisma ainda hoje corrente no
processo penal, a rainha das provas é a confissão. Vem do Direito Romano,
repercute no conhecido adágio espanhol: “a confesión de parte, relevo de
prueba”.
Preocupação funda. Tratarei em alguns artigos, este é o
primeiro, do Recurso Extraordinário 1.017.365, que traz à baila a grave questão
do marco temporal nas demarcações de terras indígenas. O futuro do agronegócio
no Brasil depende da solução que a ela der o Supremo, lembrou com fundamento o Presidente.
Melhorando, ecoou opiniões disseminadas na agropecuária e em setores da
indústria e do comércio. Se for decidida
na conformidade com o que exige a esquerda extremada (CIMI, entre outros
organismos), teremos próximo o risco de anos a fio de queda na produção,
carestia de produtos agrícolas, desestímulo para investimentos, generalização
da pobreza. Nada poderia ser mais cruel para o povo; e para os índios. A
compaixão cristã reclama luta pela defesa da prosperidade e assim a rejeição do
RE 1.017.365.
O voto do relator ministro Edson Fachin. Mais especificamente, vou tratar do voto do
relator, ministro Edson Fachin, que guerreou a tese do marco temporal, abrindo
caminho para a demolição da segurança jurídica (já tão combalida) no campo
brasileiro. O longo voto do ministro Fachin, 109 páginas, está na íntegra em
vários sites de rede; é de consulta rápida e fácil. Meu trabalho se limitará a respigar
partes dele, acrescentar aqui e ali pequenos comentários. Qualquer um poderá
conferir na rede a autenticidade da citação e, com isso, a pertinência do
comentário. Dessa forma, não atravancarei a leitura com referências.
Frankenstein apavorante. Em resumo, o que temos? Dói-me dizê-lo e
faço as vênias devidas ao douto ministro da Suprema Corte, mas no caso (o voto)
temos um texto demagógico, distante da isenção que se deve esperar de um
magistrado, eivado de incoerências e contradições, a mais de escasso valor
jurídico. De forma congruente, em seus efeitos, favorecedor do totalitarismo, do
retrocesso, da intolerância e da exclusão. O curso incoercível da lógica com
tristeza leva ainda a afirmar, os indígenas são cruelmente tratados como
cobaias de experimentações, cujo desfecho prático, se triunfar o utopismo, será
petrificar suas comunidades no atraso e na miséria.
Fundamento filosófico. O ministro Fachin ao hostilizar o marco
temporal assume e divulga (nenhuma reserva expressa no texto) a doutrina
exposta por Ailton Krenak: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a
história de que somos humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando desse
organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa
e nós, outra. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo
é natureza”. Existe então uma historinha para embalar (outra palavra para
enganar, iludir crianças na hora de dormir): somos humanidade. Adultos,
saberemos a verdade. Não somos, de fato, humanidade, pois não somos pessoa
humana ▬ convicção demolidora central em suas posições. Tudo é natureza; somos,
à vera, mera parte de um organismo, a natureza. O único real é o organismo
natureza. Aqui está na doutrina o maior fundamento para a posse indígena, os
indígenas se consideram parte de um organismo. Precisam da terra para manter
essa simbiose, suas concepções e modo de vida. São terra, enfim. Comenta o
ministro Fachin: “A terra para os indígenas (...) relação de identidade,
espiritualidade e de existência”. Indígenas e terra, idênticos.
Demolição da pessoa humana. Em sentido contrário, toda a civilização
ocidental se desenvolveu tendo como base o conceito de pessoa humana, a seguir
enunciado “individua substantia rationalis naturae”, na clássica definição de
Boécio. A pessoa é substância individual de natureza racional. Substância individual
racional, daí ter direitos individuais, entre os quais os direitos da personalidade.
Toda a ação humana busca a felicidade; de outro modo, o aperfeiçoamento da
pessoa ▬ direito a desenvolver rumo à plenitude a própria personalidade. Família,
grupos intermediários e até o próprio Estado existem, fundamentalmente, para o
aperfeiçoamento da pessoa humana. Negada a nota de indivíduo da pessoa,
desmorona todo o edifício jurídico sobre o qual se construiu a civilização ocidental.
Se não existir o homem, ser racional individual (precipitado à condição de mera
parte do todo, a natureza) fica absurdo falar em direitos individuais, direitos
de comunidades.
Outro fundamento do direito indígena: o
imaginário. O texto abaixo,
reproduzido pelo relator, já consta do processo anterior, a Pet nº 3.388, água
que o ministro Fachin trouxe para seu moinho, pois, entende, fá-lo-á moer mais
rápido e com maior força o marco temporal: “Terra indígena, no imaginário
coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de
verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade
e toda posteridade de uma etnia”. Imaginário é fantasia. Está escrito aqui, na
fantasia indígena a terra é um ser (só falta dizer vivo) que junta em si
ancestralidade, coetaneidade e futuro. Estamos próximos da definição de um
deus; concepção panteísta da Terra, sem dúvida. O indígena faria parte desse
ser que tudo abarca. Desaparece, de novo, a noção sobre a qual se construiu o
direito e da qual nasceu a civilização ocidental e cristã: “individua
substantia rationalis naturae”.
Plenitude para os índios. O indígena, nosso irmão, tem direitos
individuais, como qualquer ser humano; mais especifica\mente, tem o direito ao
desenvolvimento inteiro de suas potencialidades. A ele precisam ser
proporcionadas condições para tal. Voltarei ao tema.
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