domingo, 15 de dezembro de 2019

Migração redentora


Migração redentora

Péricles Capanema

Sempre me impressionaram as soltas de pombos-correio. Voam em círculos largos, duas ou três voltas e, súbito, como que acabada a indecisão, tomam rumo, flechas no retorno ao pombal. Por que os círculos ascensionais das aves? Não sabem que curso escolher? De qualquer modo, fazem imagem linda das divagações do espírito. Umas, perda de tempo, não se alteiam como eles. Diferente outras, sobem, volteiam, mas, bem colocadas, antecedem de pouco a fixação do objetivo. Por vezes de uma vida toda, como os voos dos pombos-correio, não raro linhas de mil quilômetros até os columbários.

Permito-me divagar um pouco sobre migrações, mas tenho norte ▬ hoje pode surpreender. Migrações lembram caminhadas, jornadas, marchas, percurso, trajetória. E depois, termo, parada, chegada, êxito, triunfo. Ou fracassos e decepções.

Em incontáveis casos, repletas de simbolismos, as migrações brilham pelos séculos com enorme poder evocativo. Rememoro duas de raiz bíblica. A migração dos judeus, os filhos de Jacó, para o Egito, precedida da venda de José como escravo pelos irmãos a mercadores ismaelitas. Pretexto do crime dos irmãos: José era um sonhador. Aliás, não custa lembrar, pela vida afora, muitos de nós, “sonhadores”, somos como José, vendidos por quem menos se espera, na busca de vantagens passageiras.

Os anos passaram, José, o escravo fracassado e vendido, teve carreira fulgurante. E nos deixou grande lição de perdão. Aos irmãos envergonhados, as palavras doces do rebento rejeitado, pelas mãos de Deus alçado a ministro do faraó, mandachuva de um império, que apenas diz: “Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito”. Depois de 400 anos, outra migração, os judeus estão de volta, guiados por Moisés, vagueiam quarenta anos pelo deserto do Sinai, no retorno à terra prometida, Canaã.

Outro exemplo, migrou também o filho pródigo da casa paterna, levando a herança rica, que dilapidou na farra. E depois, pobre, arrependido, fez a jornada de volta. “Pai, pequei contra o céu e contra ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho”.

Tantas outras migrações e das mais variadas naturezas. Vou tratar de uma delas, das mentalidades, no seio da opinião pública e no mundo oficial. Acontece no Brasil e é migração que tem potencialidades para ser redentora.

Vamos ao ponto. Em 17 de novembro de 1889 o governo provisório expulsou a Família Imperial do Brasil. Em 21 de dezembro o decreto de banimento foi publicado. Dom Pedro II e família não podiam voltar, não podiam os membros da Família Imperial possuir bens imóveis aqui; se tivessem estavam obrigados a vendê-los em dois anos, extintas ficavam as dotações oficiais. Começava tentativa de varrê-los da história brasileira. Era uma forma de passar borracha no passado, recurso de legitimação da república. Com a consequente batalha em torno de símbolos, imagens e comemorações se iniciava uma nova era que proclamava e desejava ser inequívoca ruptura com a anterior.

Não aconteceu e não funcionou. De fato, pouco depois, espontaneamente, o Brasil de alto a baxo se recusou a tomar uma atitude jacobina e deu início a movimento oposto, a reaproximação com a Família Imperial. Multiplicavam-se em escolas, rodovias, edifícios, empresas, os nomes de Pedro II, Leopoldina, Princesa Isabel. Cidades eram memória viva, Teresópolis, Petrópolis, Joinville. E começavam a ser apresentados na Câmara um atrás do outro projetos para cancelar o banimento da Família Imperial, o primeiro dos quais em 5 de agosto de 1891, menos de dois anos depois do golpe de 15 de novembro, da lavra dos deputados Caetano e Albuquerque e Anfilófio de Carvalho. Não prosperou, claro.

Um marco dessa migração (reencontro, outro nome), pelo impacto enorme, merece recordação especial: o retorno ao Brasil do barão do Rio Branco (1845 – 1912) em 1º de dezembro de 1902, depois de 26 anos no Exterior para assumir o ministério das Relações Exteriores. Fruto autêntico do ambiente social e político do 2º Reinado, permaneceu na chefia da diplomacia brasileira ao longo de quatro presidentes ▬ Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca. Faleceu no cargo, marcou direção até hoje prevalente.

Rio Branco triunfara na Europa e nos Estados Unidos em questões delicadas de fronteiras com consagradoras manifestações de inteligência, erudição e tato. Coberto de louros, convidado para o ministério, foi apoteótica e reveladora sua chegada no Rio de Janeiro. O navio que o trouxe entrou no porto rodeado de embarcações. Ao meio dia saltou em terra, onde multidão enorme o esperava. Fisionomia serena e senhorial, bigode forte, presença e domínio de cena impressionante, lembrava tanta coisa, os modos e o jeito de Bismarck, recordava em especial o Império e seus homens públicos, evocava a Família Imperial, revivia um mundo que deixara saudades e que se recusava a morrer. Ali era seu mais qualificado representante.

Segundo Álvaro Lins, foi assim que o povo e o mundo oficial celebraram Rio Branco: “O percurso pelas ruas da cidade veio a constituir uma cena espetacular. Do préstito faziam parte representações de todas as classes e entidades sociais: do Governo, da Câmara e do Senado, do Exército, da Marinha, do corpo diplomático, do corpo consular, das escolas militares, dos colégios oficiais e particulares, de associações religiosas, de sociedades culturais e literárias, de instituições científicas, de clubes mundanos, das escolas de Direito, Medicina e Engenharia, do comércio, da indústria, das repartições públicas de diversos ministérios, dos veteranos da guerra do Paraguai. Clarins e bandas de música anunciavam a sua passagem. Por toda parte se via o seu retrato. As ruas estavam embandeiradas, num espetáculo festivo de cores e dísticos, e das sacadas atiravam-lhe flores. Coberta de flores também estava, desde a véspera, a estátua do Visconde do Rio-Branco.”. Este mundo estava banido?

O nome, José Maria da Silva Paranhos Júnior. Poderia ser chamado de dr. José Maria, dr. José, seu Juca, o Paranhos, Juquinha, Zeca Paranhos, Juninho. Nada pegaria. Era o barão ou Rio Branco. Firmava Rio Branco, o jamegão valia; não dava bola para a supressão do título, lavra da república, nem para a obrigação de utilizar seu nome de registro. Desinibidamente usou o título supresso e nunca escondeu as convicções monarquistas. Estava banido o Império? Estava banida a Família Imperial? Nada mais artificial, brutal e postiço.

Por que deixou a Europa, depois de 26 anos lá?  O governo necessitava dele não apenas para negociações diplomáticas importantes. Precisava de sua irradiação para se cobrir de respeitabilidade. Punha à frente da pasta do Exterior e como figura de proa dos homens públicos um garantidor da ordem, um expoente da cultura, modelo de eficiência e senso prático na gestão dos negócios estrangeiros. Elevava assim sua estatura nas Américas e até no mundo. O retrocesso republicano prejudicava, era urgente um avanço, imprescindível acabar com o descompasso entre o Brasil e o mundo civilizado. Para tudo isso Rio Branco servia como uma luva.

No fundo do palco cuja figura principal era o barão, desenhava-se a figura da Família Imperial, sem cuja ação dificilmente se formariam figuras públicas como a que dominava a cena pública nacional. Ela voltava aos poucos, reconquistava espaços. O reencontro se consolidava, evaporava-se o plano de confiná-la, esquecida, na Europa.

Em dezembro de 1919, depois da derrota de numerosos projetos semelhantes extinguindo o banimento, o deputado mineiro Francisco Valadares (aparentado com o senador Benedito Valadares), mais uma vez, propôs o fim do banimento. Já estava escandaloso o caso. O Congresso aprovou-o. Em 3 de setembro de 1920, foi assinado no Catete o decreto que revogava o banimento. A Família Imperial podia voltar; era véspera do centenário da Independência, realizada por um de seus membros.

Voltou, ela que nunca deveria ter saído. Houve gradual reinserção de figuras da Família Imperial na sociedade brasileira. Acelerou-se a trajetória da Família Imperial para o centro da vida nacional e continuou a derrubada das barreiras artificiais entre ela e a opinião nacional.

Um salto sobre muitos acontecimentos. Hoje temos dom Bertrand homem público, dom Luiz Philippe homem público, dom Rafael começando a se firmar: “Fomos ensinados desde pequenos a ser vistos como exemplos”. O presidente Bolsonaro declara a dom Luiz Philippe: “Você deveria ter sido meu vice, e não esse Mourão aí”. E o ministro da Educação escreve textos assim: “Não estou defendendo que voltemos à Monarquia, mas o que, diabos, estamos comemorando hoje? Há 130 anos foi cometida uma infâmia contra um patriota, honesto, iluminado, considerado um dos melhores gestores e governantes da História”. E ainda: “O Império teve seus dois principais atos assinados por mulheres educadas, inteligentes e honestas. Elas nos governaram bem antes de Dilma. A Lei Áurea e nossa Independência foram assinadas respectivamente pela Princesa Isabel e por Dona Leopoldina”.

Chamo a atenção para ponto quase nunca enfatizado: a naturalidade generalizada com tal situação, da qual dei poucos exemplos acima. Todo mundo acha normal fatos assim, se tirarmos a minoria jacobina, petrificada em preconceitos gastos. Razão? Não são raios em sol sereno, inserem-se naturalmente dentro de processo já velho de mais de um século, que vem ganhando volume, com o qual todos convivemos. Dois movimentos: a Família Imperial caminhou, em longa marcha, para o centro da vida nacional; o segundo, o Brasil andou, décadas afora, em direção a ela. Penso, sintoma da migração, um plebiscito como o de 1993, causa bem apresentada e propaganda bem conduzida, daria muito mais que os 10% da época.

Até onde nos conduzirão as duas migrações? Não sei, ninguém sabe. Mas sei, enquanto a Família Imperial representar honestidade, moralidade, simplicidade, esplendor, harmonia, em suma, ser esperança de garantidora de uma sociedade estaqueada na família e promovendo incontáveis plenitudes de natureza vária de que o Brasil necessita e pode abrigar, muito dificilmente terá fim tal migração. São os 40 anos no Sinai. E estou certo, terá sido migração redentora. Que são Pedro de Alcântara, padroeiro da Família Imperial, lhe ajude e ajude a todos nós nessa caminhada, que é pelo bem nacional.

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