O futuro chegou antes da
hora
Péricles Capanema
Amigo meu de décadas, como poucos culto,
amável e inteligente, enviou-me dito francês conhecido “savoir dire, savoir
plaire, savoir faire” (saber dizer, saber agradar, saber fazer), como possível tradução
da locução inglesa “soft skills”, por mim examinada em texto recente ▬ “Foco no
sucesso”, desde 27 de outubro em meu blog periclescapanema.blogspot.com.
Perguntava eu no artigo se alguém tinha em
mente tradução adequada para o que hoje significa “soft skills” no mundo dos
negócios, em que de forma especial exprime qualificações necessárias para ali
alcançar posições de destaque (eu não tinha). Minha intenção primeira no
presente texto era discorrer sobre em que a viva construção francesa acima transcrita
parece exprimir corretamente o “soft skills” e em que, a meu entender, deixava
de lado certos aspectos.
Todo o artigo já estava na cachola, era só
limar um ou outro pormenor e pôr no papel. No texto imaginado por mim havia um
ponto que só uma vez ouvi levantado (aliás, por político mineiro que já nos
deixou há tempos) como fundamental na vida: a importância do convívio com
homens inteligentes. O experiente homem público julgava indispensável para a
formação intelectual, para moldar a personalidade, para as obrigações de pai de
família e de profissional o tal convívio. “Procure sempre o convívio dos homens
inteligentes”. Claro, homens no sentido normal da palavra, mulheres, crianças,
moços, idosos (seres humanos). Ousaria rematar com um pontinho: busque o
convívio dos bons observadores. Nada soma quem não sabe ver direito a
realidade. Os raciocínios brotam desfocados se os olhos antes não captam realidade
objetiva e rica.
Corta, o resto fica para depois. De repente
fui agredido pela realidade e me vejo obrigado a tratar agora de outro assunto.
O amigo acima mora em Frankfurt. Outro amigo, residente em Paris, a quem não
vejo faz muito tempo, muito tempo mesmo, o que lamento, têm algo em comum: o
mau gosto de ler textos meus. Passou os olhos pelo “Preocupa” (postado no blog também
em 27 de outubro) e se viu na obrigação de me avisar: o futuro já chegou.
Pensei comigo: antes da hora (para os incautos). O futuro em tela estava
marcado para 2047.
Todos sabem, o “Le Monde” é jornal de
enorme importância, com viés de centro-esquerda (não é um “Le Figaro”). E assim
em geral ecoa mal ou não ecoa as vozes que vêm da direita. O “Le Monde” edita uma
espécie de revista “Le magazine du Monde”, cujo número 424 de 1/11/2019 traz informativo
artigo de Florence de Changy intitulado “Les entreprises étrangères sous
pression chinoise” (As empresas estrangeiras debaixo da pressão chinesa).
Não são empresas pequenas, são mamutes
famosos, alguns dos quais do mundo do alto luxo. Florence de Changy começa
relatando o caso da NBA (National Basketball Association), a gigante
norte-americana que coordena o basquete nos Estados Unidos. Um simples tuíte de
Daryl Morey, dirigente do Houston Rockets, apoiando os combatentes pela liberdade
em Hong Kong (atenção, só reclamam o que consta dos textos legais), desencadeou
furor na China continental, o que causou prejuízos grandes aos maiores clubes
dos Estados Unidos. Alguém duvida que o furor não foi instigado pelas
autoridades chinesas? Retaliada no bolso, a NBA entrou logo na linha. O recado,
e não é o primeiro, ficou mais claro: o governo chinês exige lealdade absoluta
(se quiserem troquem lealdade por submissão, fidelidade, vassalagem,
subserviência, dá no mesmo). Não admite ninguém pisando fora da linha traçada pelo
PCC (Partido Comunista Chinês).
Outro caso. Tem sede em Hong Kong uma
linha aérea grande e reputada, a Cathay Pacific. Em agosto, o governo chinês
exigiu da empresa que demitisse imediatamente duzentos empregados que participaram
dos presentes protestos na cidade. Ou, menos que isso, de alguma maneira manifestaram
algum apoio, mesmo que discreto. Ordem dada, ordem cumprida. Foram logo demitidos
os pouco mais de duzentos funcionários. Rua. E ainda três dirigentes. A punição
não terminou aí, funcionários de grandes empresas chinesas estão proibidos de
voar na Cathay Pacific. Avery Ng, deputado social-democrata, nota: “O governo
chinês deu o recado: qualquer pessoa, qualquer uma mesmo, que ousar tomar
posição não conforme à linha determinada pelo Partido Comunista Chinês, será
punida ou demitida. É aviso ameaçador para todas as empresas que tenham o menor
interesse no mercado chinês”.
Poucas semanas depois, foi a vez do BNB
Paribas, banco francês. Funcionário seu em Hong Kong ousou colocar no Facebook
particular expressão de alguma maneira depreciativa com a China continental e
favorável aos Estados Unidos. Sofreu avalanches de ataques das milícias
digitais. Teve de sair do banco (a reportagem não deixa claro se pediu demissão
ou foi demitido; na prática, a mesma coisa, rua).
Resumindo o clima, observou francês residente
há quinze anos em Hong Kong: “Começamos a ter medo de nossa própria sombra. É
enorme o efeito da intimidação chinesa. Todo mundo sabe, mas não se pode falar
a respeito. Além do mais, de que adiantaria? É a nova realidade”.
De momento, todas as grandes empresas de Hong
Kong, e aqui estão incluídas as francesas, muito presentes no setor do luxo e
das finanças, temem o passo em falso fatal. Têm uma única escolha: obedecer
Beijing. Versace, Givenchy, Coach, Delta Airlines, Zara, entre outros, já
pagaram por seus erros.
A vigilância inclui o Tibete e a China Nacionalista.
Estão proibidos comentários ou quaisquer manifestações que destoem da linha
oficial do Partido Comunista. Beijing nos dois assuntos não tolera ponderações contrárias
a seus interesses. A Dior, numa apresentação interna, projetou um mapa da
China. Por distração, não constava nele Taiwan. Guerra das milícias digitais. A
Dior se dobrou em desculpas, reconheceu publicamente o dogma comunista da “China
única”, “respeito constante pelo princípio da China única”. E assim vai.
E assim irá. Pelo tratado com a Inglaterra,
a administração de Hong Kong só passará a ser chinesa em 2047. A China perdeu a
paciência, mandou às favas escrúpulos, e já está sinalizando sobre o que teremos pela
frente. O futuro está chegando antes. Para Macau, a data é 2049, mas ali o
futuro já chegou. Eles não piam contra a China, que já domina tudo. Hong Kong e
Macau recebem hoje tratamento que, se não acordarmos, será o nosso daqui a
algum tempo. Quando? Não sei. Uma coisa sei, para nós, o futuro também pode
chegar antes da hora.
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