Bolo em camadas
Péricles Capanema
Meu primeiro impulso foi pôr aí em cima o equivalente,
mais expressivo, gâteau de couches e não bolo em camadas. Gâteau de
couches nos remete a mais sabores e a formas mais bonitas, à pâtisserie
(doceria, confeitaria) francesa, produtos que são verdadeiras obras de arte,
pequenos andares de delícias de diferentes gostos.
A ideia de fundo é a de soma, adição de
realidades harmônicas e complementares. Como metáfora, serve para quê? Para os
mais variados fins, no meu caso para representar virtude, para muitos amarga e dura,
a seriedade. O contrário, a seriedade é atitude que torna suave a vida. Seriedade
é objetividade; vou procurar tê-la como inspiração e ser objetivo ao tratar dos
dados divulgados pelo PISA mais recente. Não me esqueço, como os bolos, temos seriedade
de uma camada, seriedade de duas, de várias camadas, a seriedade simples do porteiro
e a seriedade elaborada do general.
De início, vamos considerar com seriedade
simples (bolo de uma camada), sem desviar o olhar, os dados devastadores do
PISA de 2018 (Programme for International Student Assessment – PISA, em
inglês, Programa Internacional de Avaliação de Alunos), exame aplicado a cada
três anos em 79 países a estudantes de até 15 anos; mais de 600 mil avaliados,
dos quais 17,5 mil brasileiros. São dados controversos, mas apontam uma
direção. O Brasil ficou na 66ª posição. Em leitura, 54ª, ciências, 67ª, em
matemática, na 70ª. Na China, 16% dos estudantes estão no nível mais alto da
disciplina, com raciocínio matemático considerado avançado. Entre os países da
OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento), apenas 2,4% dos
alunos chegam a esse patamar.
Outro ponto. Os colégios de elite
brasileiros colocam o país na 5ª posição da leitura, ao lado da Estônia. O
resultado das escolas públicas nesse quesito é o 65º. Escolas privadas de
elite, o Brasil em ciências fica no 12º no mundo. Escola pública em ciências,
Brasil no 71º. Privada de elite em matemática, 30º lugar. Púbica em matemática,
75º. 10% dos jovens do mundo conseguem diferenciar fato de opinião. No Brasil, total
bem menor, 2%. Nenhum aluno das classes mais pobres conseguiu fazer tal
distinção. Parte dos alunos das privadas de elite termina os estudos no
Exterior e não volta ao Brasil.
O quadro desolador vem do que tem sido nossa
educação fundamental há décadas. Se não for mudado, esqueçam o Brasil entre as
nações mais prósperas da terra para as próximas décadas. Estamos dentro da
sociedade do conhecimento. O começo do caminho ▬ não é o único, mas essencial ▬
para a prosperidade do Brasil é aumentar o padrão do ensino fundamental das
escolas públicas. Vale tritrilhões de vezes mais que ficar tagarelando e
papagaiando frases feitas como “resgatar a pobreza”, “pagar a dívida social”,
“eliminar a desigualdade”, “distribuir renda”, e vai por aí afora. Pior ainda
seria moldar o ensino fundamental segundo doutrinas demolidoras como as de
Paulo Freire ou a ideologia de gênero. Acabaria de afundar.
Não vou ser conselheiro Acácio, temos
grandes técnicos na área que sabem exatamente o que propor e fazer. O óbvio
ululante é que nos últimos 50 anos o rumo foi frouxo e cheio de defeitos.
Repito, se não for consertado o ensino fundamental, a rabeira será nosso
destino permanente. Sei, boa instrução não basta para a prosperidade. Mas é
essencial. E, quem nasceu pobre, via de regra, só tem uma oportunidade de crescer
na vida; fazer, nos seus primeiros anos, um bom curso fundamental.
Vou deixar o bolo em uma camada, vamos para
o bolo em duas camadas. De outro modo, colocar mais algumas questões no quadro.
Por vezes com boas razões se criticam no Brasil as desigualdades gritantes, a infância
desamparada, o uso que o crime organizado faz de crianças. Como diminui-los? Ao
lado do ensino fundamental, base dele, faz falta a primeira educação familiar.
O ambiente familiar é o mais importante para a formação do caráter e o
florescimento do que a instrução fora de casa poderá proporcionar. O que
acontece até os 5 anos marca fundo a vida toda. Se no Brasil faz muita falta a
primeira educação familiar, é porque a família está falhando. E assim, quem a
defende com unhas e dentes, luta por causa social de generalizado impacto na
diminuição da pobreza. O economista professor Roberto Macedo, discorrendo sobre
educação, em especial a infantil, ressaltou ponto de enorme importância: “Tive circunstâncias educacionais muito favoráveis, pois
minha mãe deixou o magistério para cuidar dos seus oito filhos. Na época,
famílias desse tamanho eram comuns. Ela levou todos à escola, e nossa casa era
também uma escola, pois ela ensinava várias coisas, e cobrava desempenho
escolar. Havia também muitos livros e até jornais diários, que atraíam nossa
atenção. E jogos infantis, muita conversa com ela e entre irmãos, tudo isso
estimulando nossa cabeça já na primeira infância. E, ainda, a interação com os
filhos de famílias vizinhas, também ajudando no desenvolvimento intelectual e
social
As duas primeiras camadas eram até certo ponto
previsíveis. A terceira, acho, nesse bolo em três camadas, é que traz novidade.
Relia partes do livro “Minha vida de menina” de Helena Morley (pseudônimo de
Alice Dayrell Caldeira Brant) ▬ do qual Georges Bernanos certa vez comentou com
o ministro Capanema: “obra genial, livro único, impossível de traduzir, um
milagre” ▬ e topei com cena instrutiva de fins do século XIX em Diamantina:
“Hoje tive o maior espanto de minha vida. Vovó, todos os sábados, manda um de
meus irmãos ao Palácio, que é perto da Chácara, trocar uma nota em borruquês do
Bispo. Põe tudo numa caixa de papelão e fica sentada na sala de jantar, à
espera das pobres delas. A cada uma dá um borruquê novo de duzentos réis. São
elas, Chichi Bombom, Frutuosa Pau-de-Sebo, Teresa Doida, Aninha Tico-Tico,
Carlota Pistola, Teresa Buscapé, Eufrásia Boaventura, Maria Pipoca e siá
Fortunata. [...] Eu sempre fico por perto ouvindo as queixas”.
Uma avó, com a neta por perto, recebe na
sala mulheres pobres para dar esmola. Ambiente descontraído, acolhedor,
simples, respeitoso, onde, imersas num ar difícil de definir, pretas, brancas,
mulatas conversam, trocam opiniões e depois as pobres vão embora. Se o Brasil
quer de fato um dia ser grande ▬ grande de grandeza cristã, a única que
interessa ▬ e não apenas próspero, este ar difícil de definir não pode morrer. Digo
mais, não pode definhar. Enfatizo: tem que se firmar, aperfeiçoar-se e
conquistar espaços.
É
esse o ambiente do Brasil antigo, também percebido nas palavras do professor
Macedo. Definha, infelizmente, está morrendo. Se desaparecer por inteiro, de
nada vai adiantar estarmos na primeira fila do ensino fundamental. E concluo,
para ser proveitosa, a análise da formação infanto-juvenil entre nós requer olhares
de profundidade diferentes. Só então se apresentará apetitosa, atraente e nutritiva
como um bolo em camadas.
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