Carismas bons e
carismas devastadores
Péricles Capanema
As várias acepções de carisma. Carisma, na linguagem teológica, tem significação
precisa, é dom sobrenatural concedido a um fiel ou a um grupo de fiéis para o
bem comum da comunidade cristã. Dom dado para benefício de outros. Tal conceito
ecoa na linguagem informal. Fala-se continuamente em carisma, vocábulo que
emite fulgurações, a miúdo brilhantes, por vezes soturnas, impreciso; enfim, à
vera, inefável. Não vou tratar aqui do significado teológico do termo, mas de
seu uso corrente na vida civil, temporal, de todos os dias.
Figuras carismáticas. Estou começando a ler boa biografia,
informativa e elucidativa, do general Charles de Gaulle (1890-1970) ▬ Julian
Jackson é o autor. Jackson constata, em torno do biografado apareceu logo uma aura
de legenda. A auréola que o envolve vai além do que foi e fez. Quase que a
legenda vale mais que a realidade, ou talvez valha mais, sei lá. Um de seus
ministros, gaullista conhecido, Alain Peyrefitte, qualificou bem o fato enigmático
em “boutade” expressiva: “A verdade do general está em sua legenda”. Charles de
Gaulle morreu há mais de 50 anos. Hoje, na França, 3.600 localidades têm um
espaço dedicado a ele (2º lugar, Louis Pasteur (1822-1895), 3.001; 3º lugar,
Victor Hugo (1802-1885), 2.258). Os franceses, recente pesquisa, perguntados
sobre qual o personagem mais importante de sua história, assim responderam: De
Gaulle (44%), Napoleão (14%). De Gaulle é caso claro de carisma. Sua influência
na vida da França e, até do mundo, está ligada a essa característica
importante, rara, um tanto misteriosa, com efeitos maravilhosos, com frequência
devastadores. O líder carismático assalta as mentes, vez por outra desnorteia, confunde,
dificulta a lucidez, galvaniza energias, entusiasma, extasia, tranquiliza,
exaspera, instiga, excita, impulsiona, incendeia, amortece. No rumo da lógica e
do bom senso, é uma bênção. Na orientação contrária, demole, acarreta desastres,
pode ser transformar em maldição apocalíptica. Existem na História pencas de ditadores
e demagogos carismáticos.
O Rei. Vou dar um cavalo de pau na narrativa. O carisma é multifacético, manifesta-se
em vários campos, até em ambientes familiares. Temos agora diante dos olhos fato
triste do cotidiano brasileiro. Pelé encontra-se em situação delicada de saúde,
já se teme, e para breve, o pior. É hora de recordações, de voltar o olhar para
o passado, de orações e solidariedade. Nos sites e notícias da imprensa
escrita, ao tratar do fato, sempre aparece de forma elogiosa e simpática o
epiteto “o Rei” ou “o Rei do futebol”. Não conheço ninguém no mundo do esporte a
quem, com tal naturalidade, aplica-se o cognome de Rei. Todo mundo acha normal,
entende-o como expressão da realidade. Não foi apenas tratar bem a bola, existe
ainda um carisma pessoal de atração e simpatia
O carisma da realeza. Veio-me a pergunta: quem primeiro sentiu
ares de realeza, se quisermos, o carisma dessa peculiar realeza em Pelé? Fui
pesquisar, trombei logo com resposta satisfatória. Segundo Ruy Castro, que
biografou Nelson Rodrigues (O anjo pornográfico), foi o brilhante cronista
esportivo (entre outros títulos, também ostenta o de mais importante cronista
esportivo do Brasil) quem em primeiro lugar percebeu em Pelé, digamos, o
carisma de rei do futebol. Em crônica de 8 março de 1958, intitulada “A realeza
de Pelé”, antes portanto da Copa do Mundo da Suécia, Pelé, jovem atacante do Santos,
17 anos, foi assim descrito por Nelson Rodrigues: “Verdadeiro garoto, o meu
personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais.
Dir-se-ia um rei. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos
invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica
há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima
de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem
considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Na Suécia, ele não
tremerá de ninguém. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude
viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça
como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Com Pelé no
time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas.
Os outros é que tremerão diante de nós”.
O carisma na guerra. Do futebol, pulo para a guerra. Em 16 de
março de 2019 postei artigo intitulado “Ganhava as batalhas com os olhos”.
Analisava realidades parecidas com o que vai acima. E trazia esta afirmação desconcertante
(e verdadeira) de Napoleão: “’Raramente tirei a espada,
porque ganhava as batalhas com os olhos e não com minhas armas’. Era a presença
do Corso, e nela o olhar (os olhos), galvanizando as energias dos batalhões que
então se lançavam com frequência irresistivelmente ao ataque. Mudou a história
da Europa, até do mundo. Em geral para o mal, infelizmente”. Carisma de efeitos
devastadores.
Rendição sem batalha. Ainda está no escrito de 2019: “Sun Tzu, quatro
séculos antes de Cristo, ensinou em ‘A Arte da Guerra’: ‘Os que conseguem que
se rendam impotentes os exércitos inimigos sem lutar, são os melhores mestres
da arte da guerra. Um verdadeiro mestre das artes marciais vence forças
inimigas sem batalha, conquista cidades sem assediá-las. A vitória completa se
produz quando o exército não luta, a cidade não é assediada’”. Muitas vezes só pela
força do carisma e fama.
Aviso aos navegantes. O artigo de 2019 era ainda um primeiro aviso aos
navegantes. Advertência para otimistas, sempre de conduta demolidora, quase
sempre de ouvidos moucos. Era isso, não acreditem em calmarias, o mar é cheio
de surpresas, muitas delas ruins: “As vitórias e derrotas humanas, mais que o dinheiro,
os ótimos silogismos e a organização, devem-se a fatores imponderáveis (ou
muito dificilmente ponderáveis e explicitáveis). O que são? Impulsos
potentíssimos, não raro bafejados pela graça ou pela tentação. Contra eles,
quando aviventam o mal, existe reação possível? É difícil, mas o começo está na
temperança, cabeça fria e raciocínios claros. Pretendia falar sobre a situação
do Brasil. O que estará nos esperando na esquina, já agora maquinado debaixo de
nossos narizes? Daqui a quatro anos, o que supor que enfrentaremos?”. Constato,
quatro anos depois, no limiar de 2023, o mar está borrascoso, teremos tempestades
pela frente. E renovo o que então afirmei como providência primeira: temperança,
cabeça fria, raciocínios claros. São antídotos forte contra derrotismo,
decepções, desânimos, demagogismos e intimidações. Contra a ação envolvente,
dissolvente, enfeitiçadora, com frequência ameaçadora, de carismas
devastadores.
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