Tucano do bico
quebrado
Péricles Capanema
Do tucanuçu ao araçari-miudinho. O maior dos tucanos é o tucanuçu, bem
poderia ter inspirado o símbolo do PSDB. Poderia ser outro, o tucano do papo
amarelo, igualmente grande. Bicam forte. Como inspiradores, eles arriscam dar o
lugar para o araçari-miudinho, o menor da espécie, bica fraquinho. Todas são aves
ameaçadas, o habitat está ficando menor e mais hostil, a caça corre solta. É
congruente, os simbolizados políticos tucanos passam por situação parecida, habitat
difícil, caça intensa contra eles. Mas não vou tratar especialmente de tucanos,
senão como ilustração atual e adequada do que ocorre na ornitologia política
brasileira inteira, é o meu ponto. Ou seja, vale para tucanos, vale para todos.
O tucanuçu está com o bico quebrado.
Prévias reveladoras. As recentes prévias tucanas permitem
entrada fácil na matéria. Tenho afirmado repetidas vezes que a maciça maioria
dos políticos ▬ direita, centro, esquerda ▬ foge como o diabo da cruz de um
assunto: o voto facultativo. Não gostam de falar nele, embora seja usual,
antigo e de efeitos razoáveis em praticamente todas as democracias mais
consolidadas e civilizadas do mundo. A mais de previsível melhoria na representação
política (só iria até as seções eleitorais o eleitorado interessado), o voto
facultativo ocasionaria no Brasil fortíssimo barateamento das eleições. Todos
sabem, o custo das campanhas é considerado o maior fator da corrupção na
política. Sem muito dinheiro, ninguém ganha eleições. Verbas de gabinete,
cotão, rachadinhas, fundo eleitoral, fundo partidário, acordos ligados à
liberação de emendas, diretorias de estatais, tudo isso ajuda a financiar campanhas.
E a eleger pessoas, infelizmente com pouca ou nenhuma representatividade real. Uma
pequena precisão ▬ homens do rádio e da televisão, artistas, celebridades,
representantes de categorias profissionais, em geral, podem gastar menos nas
campanhas, já são muito conhecidos antes das eleições. Sua eleição não tem
elevado o nível da representação política.
Acachapante desinteresse público. E por que político nosso, via de regra,
abomina voto facultativo? Por razão simples, colocaria a nu o desinteresse
popular em relação a eles e ao jogo democrático. Com voto facultativo, a grossa
maioria não iria votar. Com o obrigatório, a carneirada tem que ir ao aprisco
(seções eleitorais), se não vai é punida. Temos dia e noite o desfile de prestígios
pecos e postiça encenação dos ritos democráticos da democracia moderna,
assistidos por população distraída e asqueada. A expressão representante do
povo é oca entre nós. Os interesses reais e palpitantes estão alhures. No Chile
tão mais politizado, sabem qual foi o comparecimento popular, considerado alto,
para o primeiro turno das eleições presidenciais? 47,34 %. Nas últimas
presidenciais dos Estados Unidos a participação popular, a maior de 56 anos,
foi de 60,8%. No Brasil, meu palpite, as legislativas não atrairiam mais de
25%; se tanto. As eleições para os cargos do Executivo, um pouco mais. Claro, poriam
a nu a realidade inafastável, o desinteresse popular, com respingos fortes no prestígio
da classe política. Daí, repito, o horror dos políticos, não importa a coloração,
pelo voto facultativo.
Os números da prévia tucana. Segundo registros no TSE, afirmam os
jornais, o PSDB teria 1,3 milhão de filiados. Todos estariam aptos a votar nas
prévias partidárias em que três membros destacados (governadores João Dória e
Eduardo Leite, ex-senador Arthur Virgílio) disputavam a pré-candidatura ao
Planalto. O voto era qualificado (aqui vale o voto qualificado, em geral tão
vergastado pelos políticos). Para exercê-lo, era preciso baixar um aplicativo
no celular ▬ o cadastro. Cadastraram-se 44,7 mil tucanos para ato
importantíssimo da vida partidária, a escolha do pré-candidato à Presidência do
país. Cerca de 3% do total dos filiados tiveram interesse em participar. Por
volta de 97% dos oficialmente inscritos no partido, nenhum interesse teve em votar.
Pelo menos, quase 45 mil ainda se dispunham a apertar um botão no celular,
coisa dificílima, já se vê. Espera aí. Votaram de fato 29.360 filiados. Uns 15
mil se inscreveram, mas nem tiveram ganas de apertar o botão do celular. Na
prática, por volta de 2% votaram, em torno de 98% se desinteressaram. O grande
fato é a posição (ou falta dela) dos 98%. O fato menor, o racha tucano (54%
para Dória, 45% para Leite) ocupou manchetes. Numa mostra de humor negro
involuntário, Bruno Araújo, presidente do partido proclamou: “O PSDB sai desse
processo muito maior do que entrou no mês de abril”. Aconteceu com os tucanos,
aconteceria com qualquer partido, com notas um pouco menos marcantes, talvez,
com PT e Novo. Mesmo com o impulso do governo o quadro de desinteresse muda
pouco. O presidente Bolsonaro quis criar o Aliança para agrupar apoiadores. Em
vista da atual legislação, ao longo de dois anos, é necessário coletar assinaturas
que perfazem pelo menos 0,5% do total dos votos dados na última eleição para a
Câmara dos Deputados, distribuídas em no mínimo um terço dos Estados da União, nunca
menos de 0,1% do eleitorado que tivesse votado em cada um deles ▬ pouco menos
de 500 mil assinaturas no total. Não conseguiu, foi se abrigar no PL. Dois
exemplos recentes de desinteresse público.
Todos são araçaris-miudinhos. O símbolo do PSB é uma pomba. Nesse quadro
ficaria melhor como rolinha fogo-apagou. Se algum partido tivesse escolhido o carcará
como símbolo [aliás, adequado, voracidade famosa], no Brasil atual estaria mais
conveniente colocar com substituto o quiriquiri. E assim por diante.
Araçaris-miudinhos anêmicos. Sem romantismos, nem superficialidades, a
saída do quadro atual requer clareza de vistas, bom senso, maturidade,
paciência. Anos de esforços numa mesma direção. Com efeito, a situação política
em boa parte é reflexo de realidades sociais atávicas, nas quais estamos
imersos. Quem elegeu os políticos atuais foram eleitores com os quais
convivemos diariamente, muitos dos quais amigos e parentes. A anemia desagregadora,
contudo, pode ser combatida com veracidade e transparência; ter clareza a
respeito do quadro. São fatores impulsionadores de participação real e inclusão
benéfica, bem como antídotos eficazes contra atrasos e retrocessos.
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