domingo, 28 de novembro de 2021

A Constituição e os índios (2)

 

A Constituição e os índios (2)

 

Péricles Capanema

 

Estatização selvagem. Continuo artigo anterior, lá examinei a momentosa questão do marco temporal e do RE 1.107.365, reproduzo a seguir declarações esclarecedoras (e potencialmente aterradoras) de Marcelo Xavier, presidente da FUNAI, por ocasião de audiência pública virtual na Câmara dos Deputados em 1º de outubro próximo passado.

 

Fatos-bomba. O terror decorre da possibilidade de demolição social e econômica dos fatos-bomba ali apontados como concebíveis e até inevitáveis, dependendo da virulência da vitória das correntes chamadas indigenistas. Segundo o alto funcionário existem hoje 491 pedidos de reivindicação de terras indígenas, que envolvem 253 milhões de hectares (em números redondos, 2,53 milhões de km2, aproximadamente 30% do território brasileiro). Ainda segundo Marcelo Xavier, em estudo, existem 121 áreas. Em fase de declaração e delimitação são 10 milhões de hectares. Já as terras indígenas regularizadas ou homologadas somam outros 107 milhões de hectares (aproximadamente 13% do território brasileiro). Foi didático o presidente da FUNAI: “Hoje nós temos em áreas indígenas no Brasil o equivalente aos territórios de Portugal, Espanha, França e Suíça. Se nós formos imaginar que o marco temporal será mudado com o tema de repercussão geral, em discussão do Supremo Tribunal Federal, teremos o acréscimo de Alemanha, Itália, Hungria, Sérvia, Grécia e Reino Unido como terras indígenas”. Terras indígenas? Em termos. É eufemismo, adocica. A propaganda divulga coisas assim, “terras para índios pobres e desapossados”; à vera, são ditos que encobrem a realidade amarga. Nada aqui de fato é terra indígena. É coletivismo, são terras da União. O usufruto é indígena. Estamos diante de um amazônico programa de estatização selvagem.

 

Estatização selvagem furtiva. Curiosamente, nenhuma liderança indígena, nenhum soba de ong ambientalista, nenhum morubixaba de partido de esquerda levanta este ponto fundamental, entretanto óbvio ululante. Bico calado, pois a estatização delirante interessa a todos eles, bruxos do coletivismo, arautos de fatos-bomba, verdadeiros demolidores do Brasil. Repito, a propriedade (domínio) é pública; os índios têm a posse, são modernos servos da gleba. Na prática, porquinhos-da-Índia de experiências sociais mitomaníacas que só trouxeram tragédias onde começaram a ser aplicadas.

 

Matéria constitucional. Aqui está ponto de imprescindível consideração (nem vou tratar no momento de lei natural e bem comum). Foco nele. A Carta Magna está sendo esbofeteada e não apenas pelas considerações que exponho agora. Com efeito, a Constituição em seu artigo 170 funda a ordem econômica, entre outros pilares, sobre a propriedade privada. E o inciso XXII do artigo 5º considera fundamental o direito de propriedade. Uma tal ameaça à propriedade privada no Brasil, se vitorioso o voto favorecedor do coletivismo do relator Edson Fachin no RE 1.107.365 (voto que nega a tese do marco temporal) é compatível com a Constituição? Pelo menos, não fere a “mens legis”? Aplicado mesmo que gradualmente em todas suas consequências, agora latentes, segundo o entendem as correntes ambientalistas mais extremadas e mais na moda, estará extinta a propriedade privada no campo e, por ricochete, com o tempo, nas cidades.

 

Consequências estapafúrdias.  Tudo isso, para alardeado (e falso) amparo a universo populacional, os índios, justificadamente querido, população relativamente pequena, infelizmente ainda atendido de forma insuficiente, ligado por laços de sangue, benevolência e amizade à imensa maioria dos brasileiros. Com efeito, conforme o censo do IBGE de 2010, existiam na época no Brasil cerca de 800 mil índios. O número agora estará próximo ao de 2010. Hoje, a maior parte deles vive em áreas urbanas. Esses indígenas, se vitoriosa a hermenêutica constitucional inaugurada abusivamente pelo ministro Fachin em seu voto, virarão posseiros de terras públicas, terão potencialmente o país inteiro como “terra que tradicionalmente ocupam”, segundo interpretação elástica e abarcadora, já muito difundida (cfr. artigo 231 da Constituição). Será o fim da segurança jurídica; com sua demolição, a insegurança no agronegócio, a queda na produção do campo, a carestia e o desemprego. Aqui aparece outro princípio constitucional esbofeteado: o da razoabilidade. Implícito na Lei Maior, é princípio informador do devido processo legal, afere se os atos praticados estão em harmonia com valor supremo animador do ordenamento jurídico, a justiça.

 

Entulho autoritário xodó. Temos entulho autoritário vergastado pelos hierofantes do progressismo e entulhos autoritários que são xodós desse pessoal, objetos de carícias permanentes ▬ verdadeiros tumores de estimação, ninguém pode tocar neles. Vou apontar xodó intocável, ai de quem quiser mexer aí: a lei 6.001 de 19/12/1973 (governo Médici) que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Estabelece que as terras indígenas serão demarcadas por ato administrativo, após laudo de antropólogo nomeado pela FUNAI. O presidente da República tão somente homologa a demarcação. O PL 490/2007 mexe aqui, tira da presente legislação seu caráter autoritário e excludente, tornando-a mais inclusiva e participativa. Nada disso, deixa como está, “bom demais”, está berrando a esquerda. O mencionado monturo da ditadura abominada não pode ser mexido, o veneno aí contido pode extinguir a classe rural. “Es resquicio legal buenísimo”, diria partidário do governo de Salvador Allende.

 

PL 490/2007, tábua de salvação. O caso não tem saída? Tem, boa, mesmo que provisória. De momento, o mais razoável, urgente e inafastável é trabalhar pela aprovação do acima mencionado PL 490/2007, transformá-lo em lei. A situação legal passará de excludente, burocrática e discricionária para inclusiva e participativa. Muitos opinarão, muitos participarão, haverá maior influência dos agentes envolvidos, vozes populares mais fortes. É certo, as correntes assim chamadas ambientalistas (esquerdas de todos os matizes) chiarão, com a aprovação do referido PL 490 não cessarão as batalhas ideológicas, políticas e jurídicas. Haverá ações no Supremo contestando sua constitucionalidade e aqui vai o núcleo da argumentação para transformar o Brasil numa arena permanente de expropriações coletivistas (sem indenizações, posse originária), já exposto pelo advogado Eloy Terena: “Essa interpretação que eles fazem [do artigo 231] é gramatical do verbo ocupar. É a interpretação mais pobre que existe. A Constituição não falou que são direitos dos índios às terras que momentaneamente ocupam. Os direitos são sobre as terras tradicionalmente ocupadas. A Constituição não trabalhou com elementos temporais. A marca da tradicionalidade é sobre o modo como o indígena se relaciona com o seu território. Não tem nada a ver com tempo." Não tem nada a ver com o tempo a interpretação do artigo 231: é atemporal, é modo de ocupação, a terra ocupada em algum momento por tribos indígenas é tradicionalmente ocupada. Não contam para nada os institutos do Direito Civil. Todo o território do Brasil, todos sabem, já foi ocupado em algum momento por tribos indígenas ou até por grupos nômades. Um antropólogo nomeado pela FUNAI vai resolver o caso. Achou instrumentos, resquícios da ocupação pretérita? O caso potencialmente estaria resolvido em favor da declaração de terra indígena.

 

Interesse nacional cimeiro. O julgamento do RE 1.037.365 não é sobretudo do interesse de proprietários rurais; abarca de forma eminente cada brasileiro, inclusive índios que em sua esmagadora maioria querem, com apoio maciço do povo, aperfeiçoar-se, crescer na vida, serem cidadãos plenos, atuantes e influentes no Brasil. Não podem ser reduzidos, quiçá indefinidamente, a porquinhos-da-Índia de experimentações mitomaníacas.

 

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