Raízes apodrecidas
Péricles Capanema
Estímulos para a produção da droga. Leitura no Estadão de domingo, 7 de
novembro, artigo de Mario Vargas Llosa sobre o apocalíptico problema da
expansão do consumo das drogas ilícitas. Despertou em mim reflexões amargas que
de há muito latejam; as raízes da América Latina estão apodrecendo. E aí, se a
decadência prosseguir, a sociedade se decomporá por inteiro. O escritor peruano
relata situações que em parte presenciei no Peru e na Bolívia: “No que os peruanos
chamam de ‘sobrancelha da montanha’, entre os Andes e a Amazônia, o território
da coca, fonte da cocaína, ocorrem três colheitas ao ano; apesar de os camponeses
não consumirem a droga, somente a cultivam e a vendem. Eles mastigam a coca e o
suquinho que extraem os protege do frio, da fome e do cansaço. Aviõezinhos
colombianos chegam às desoladas paragens dessa serra e seus pilotos pagam em
dólares pelas cargas que levam de lá”. A outra possibilidade, relata Vargas
Llosa, é a compra feita pelo governo, caso os produtores queiram trocar
cultivos: “Quem convenceria os camponeses que devem substituir seus cultivos de
coca por produtos alternativos, que venderiam por caminhos espantosos, que lhes
ocupam muitos dias, ao Agrobanco das cidades que pagam em sóis e, ademais,
tarde ou nunca?” Na prática, possibilidade próxima de zero. Aqui está a cara do
problema.
Mercados ricos adubam a expansão. A coroa, na mesma pena do Prêmio Nobel de
Literatura: “As drogas são vendidas por toda parte. Os narcos as entregam nas
portas dos colégios. Em cidades onde o uso das drogas era secreto e
inconfessável, hoje em dia é quase público, está ao alcance de todos e se
tornou uma exibição de modernidade, de juventude e de progresso. Os grandes
traficantes são objeto de culto”. De um lado, enormes mercados, sobretudo em
países ricos. E ali, no mundo industrializado, com estímulo do clima
glamourizado, caem com maior rapidez as barreiras do horror em relação ao uso
das drogas. De outro lado, representa o meio de vida de sem-número de famílias
camponesas; dependem para sobreviver e progredir da venda das folhas da coca. É
congruente, o consumo cresce em quase todos os recantos da Terra. Neste
contexto de alarma crescente, a confusão mental se espalha à medida que pululam
nos meios de divulgação as mais variadas, esdrúxulas, chocantes e
contraditórias propostas de solução. Os cidadãos comuns, sujeitos ao bombardeio
das discussões, preocupados, olham em volta e não percebem saída prática. Volto
à comparação; a terra social no descanso esconde as raízes; revirada, mostra
parte delas em decomposição. E não apenas na América Latina.
O exemplo elucidativo do Afeganistão. É o problema de fundo que infelicita o Afeganistão
▬ raízes largamente apodrecidas. Daquele país provêm cerca de 80% da heroína e
do ópio ilícito consumidos no mundo. A droga corrompe e financia todos os
grupos do país. Políticos, Estado islâmico, talibã, Al Qaeda, camponeses, tudo
ali depende em grau maior ou menor do comércio da papoula. Tal câncer, virulentíssimo,
com metástases generalizadas, contamina há muito qualquer possibilidade de
saída aceitável para a situação de caos interno e miséria. Os Estados Unidos,
no período de ocupação, vinte anos, gastaram por volta de 10 bilhões de dólares
no combate ao comércio do ópio e da heroína. Resultados? Quase nenhum. De fato,
o comércio cresceu durante a ocupação norte-americana. Em suma, o mundo
assiste, em parte bestializado, ao afundamento gradual de um país agredido pelo
narcotráfico, narco-religiões e narco-terrorismo.
América Latina envenenada. Metaforicamente, o Afeganistão não poderia
berrar para a América Latina: “Eu sou vocês amanhã”? Haveria terreno comum,
reflexão amargurada. E tal situação, lembrei, provoca caos interno e miséria. Existem,
disseminados pela América Latina, o narcotráfico, os narcoterroristas, os narcogovernos,
as narcoprisões. Mais amplamente, o tráfico intoxica partes do Brasil de norte
a sul. O caso vai além. Segundo as agências norte-americanas de combate às
drogas, são numerosos os países latino-americanos cujas lideranças políticas
estão corrompidas pelo crime organizado; de outro modo, pelo comércio das
drogas. Apenas como exemplo, os países da ALBA (que são ou eram onze), a
organização tem entre seus filiados os intitulados narcogovernos.
A contaminação nas reservas indígenas. Assunto momentoso, delicado e de enorme
importância. A qualquer momento, poderá estar na pauta do STF o julgamento do
RE 1.017.365 (o processo do marco temporal). Contra a tese do marco temporal,
já votou o ministro relator Edson Fachin. A favor da tese do marco temporal se
posicionou o ministro Kassio Nunes Marques. Se no plenário, prevalecer a tese
do ministro relator, pipocarão pelo Brasil novas reservas indígenas
(propriedade estatal das terras, usufruto das etnias). Terão destino trágico parecido
com as existentes, miséria, caos e abandono. Quanto ao uso de drogas, é
doloroso e indispensável conhecer sua situação, em especial nas regiões de
fronteira. Transcrevo abaixo informações que circularam amplamente nas redes,
com base em reportagem de “O Globo” de abril de 2021, texto de Carolina
Benevides e Marcelo Remígio: “Nas aldeias,
índios plantam maconha, estão viciados até em oxi e trabalham para o tráfico.
Nas reservas de Mato Grosso do Sul, número de homicídios e suicídios tem
aumentado. Rio Branco, Acre. - Aldeias indígenas do Acre, do Amazonas e de Mato
Grosso do Sul estão na rota de entrada das drogas no país. Sem policiamento,
reservas próximas às fronteiras com Bolívia, Colômbia e Peru se tornaram pontos
estratégicos para o narcotráfico e locais de recrutamento de mão de obra
barata. Indígenas têm consumido cocaína, merla, crack e também oxi - uma nova
droga, subproduto da cocaína e pior que o crack, que surgiu no Acre, já se
espalhou pela Região Norte, por alguns estados do Nordeste e do Centro-Oeste e
chegou a São Paulo, conforme O GLOBO mostrou no último domingo. Índios das
aldeias Marienê e Seruini, no Amazonas, perto do município de Pauini, na
fronteira com o Acre, plantam maconha nas terras indígenas para traficar e
consumir. Eles levem a droga para a cidade, vendem para as bocas-de-fumo ou
trocam por óleo, açúcar e sabão. Cocaína, oxi e merla também podem ser
encontrados nas aldeias do Acre, especialmente em Boca do Acre, segundo índios
que vivem perto da região”. No presente quadro de demagogia e abandono, a
disseminação de novas reservas indígenas no Brasil (ou sua ampliação), decorrência
a bem dizer inevitável da derrubada do marco temporal, agravará a situação de miséria indígena, além de facilitar
a presença do narcotráfico em tais áreas. Retrocesso claro.
Avanço no rumo certo. Ter clara a situação é o
primeiro passo da solução. Será fácil resolvê-la? Dificílimo. Fugindo da
demagogia, sem romantismos, nem superficialidades, mas com perseverança e sensatez,
é possível caminhar no rumo da saúde, raízes saudáveis. E aí brilha logo de saída
a sanidade familiar, que repercutirá na saúde moral da juventude. São pedras
para construir a via de saída.
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