Terreno legal minado
Péricles Capanema
Poderá acontecer no Brasil a mesma coisa. Terminei, de caso pensado, o último artigo “A
produção permanente do caos” com a frase “A nova lei instauraria em larguíssima
medida a segurança jurídica no agro brasileiro”. O que fazia aí o “em larguíssima
medida”? Com a lei, ficaria parcialmente protegida a segurança jurídica. Por
inteiro, não. Permanecem brechas largas ▬ muitas e em vários âmbitos. Pensava eu
ao concluir o mencionado artigo nos “resquícios legais”, utilizados pelo
governo de Salvador Allende (3/11/1970 – 11/9/1973) para impor legal e
gradualmente o comunismo no país andino. Salvador Allende não precisou mudar a legislação,
utilizou a que estava valendo, o embasamento legal do país estava repleto de
minas despercebidas pela maioria desatenta.
Avanzar ocupando espacios de la
institucionalidad burguesa. As normas demolidoras dormiam no fundo das gavetas no meio da
despreocupação geral ▬ “avanzar ocupando, paso a
paso, espacios de la institucionalidad burguesa”, foi lema socialista
intensamente empregado naquela época. Ocupando o poder, com base em leis
vigentes, a coligação governante Unidade Popular detonou algumas das minas
enterradas na charneca normativa e, com isso, pôde realizar amplíssimo programa
estatizante; à vera, explodiu o país. Poderá acontecer no Brasil a mesma coisa.
Existem, espalhados na legislação nacional, incontáveis “resquicios legales”;
são minas que um dia poderão explodir, detonando o país. Tenho em vários
artigos advertido para esse perigo. Oxalá que não soframos a saraivada
demolidora, disparada com munição já hoje estocada nos paióis brasileiros. Escrevo
para afastar a ameaça, molhar ou eliminar a pólvora. Infelizmente, pelo que
percebo, nenhuma repercussão, ou quase nenhuma; é um dos meus numerosos fracassos.
Reconheço e admito, a forma pode deixar muito a desejar, mas o conteúdo merece
atenção. Lembro aqui “Voz que clama no deserto”, postado em 22.1.2019; “Delenda
est Carthago”, postado em 19.2.2019; “Amadurecimentos esperançosos”, postado em
3-7-2019; “Brisa de bom senso”, postado em 7.8.2019; “Pústulas diletas”,
postado em 12.12.2020.
Poderá acontecer, não; está acontecendo. Corrijo-me. Na verdade, a assertiva acima, poderá
acontecer a mesma coisa entre nós, tem incorreto o tempo verbal. Já está
acontecendo. Na campanha desabrida em curso para estatizar o campo brasileiro e
entregar a posse das áreas estatizadas aos índios, temos episódio prenunciativo
no caso do marco temporal, cuja destruição é visada por ação concertada de
frente ampla poderosíssima, animada por utopismos e ambientalismo extremistas. Todo
o bloco das esquerdas está lutando encarniçadamente para que a lei nº 6.001 de
19 de dezembro de 1973 (governo Médici) continue intacta, enquanto deputados da
bancada ruralista querem modificá-la para aumentar a participação de segmentos
sociais; enfim torná-la mais inclusiva e participativa. Escrevi em artigo
recente (“Ainda é possível salvar os índios”) a respeito, aqui vai: “Opção preferencial
pelo entulho autoritário. Agora, a segunda haste da torquês, dilacera
igualmente. A esquerda toda, CIMI, PT, PSOL, ONGs filo-comunistas
internacionais e seus companheiros de viagem fazem defesa furibunda de um
entulho autoritário, a saber, disposições tecnocráticas e autoritárias da lei
nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (governo Médici). Para todos eles, é xodó
intocável em relação ao ali escrito. Com base nelas, e com adrede interpretação
do artigo 231 da Constituição Cidadã, acima mencionada, esperam gradualmente
borrifar o agro brasileiro de norte a sul de manchas de efetivo comunismo ▬
salpicação crescente de propriedades estatais entregues a comunidades
indígenas. A experiência histórica mostra, teremos grupamentos humanos
vegetando na miséria, lanhados pela desorganização interna e de órgãos
governamentais, torturados pelo crime, a mais de viver do dinheiro público. É
futuro que se deseje?”
Documento
revelador. Só agora chego ao ponto crucial do presente artigo. Está na rede, em
PDF, o “paper” “Los resquicios legales y el uso das las normas jurídicas que
interpretadas constituyen uma herramienta para configurar el derecho
descodificado”.[Os resquícios legais e o uso das normas jurídicas que interpretadas
constituem ferramenta para configurar o direito descodificado]. Marcos Espinosa
é o autor do trabalho esclarecedor do tema; o patrocinador é Carlos Abel Jarpa
Webar. Ambos são políticos de expressão no Chile, deputados federais em várias
legislaturas. A matéria, simpática ao governo da Unidade Popular, tem dois
pontos principais: ressalta a importância dos resquícios legais no governo da referida
coligação e destaca o papel central do professor e jurista Eduardo Novoa
Monreal (1916 - 2006), assessor jurídico do presidente Salvador Allende, na aplicação
e aceitação tal instrumento. Reitero, Marcos Espinosa é simpático ao uso dos
resquícios legais e manifesta admiração pelo professor Eduardo Novoa Monreal. É
congruente que seja também essa a posição de quem patrocina e divulga o
trabalho, o deputado Carlos Abel Jarpa Webar. Para nós brasileiro, o “paper” é
revelador especialmente por ser a situação legal nossa enormemente parecida com
a descrita no trabalho.
Ninho de guacho
legal. O professor Novoa mostra em que terreno grassaram os resquícios
legais: “A legalidade chilena de fato é apenas um emaranhado frondoso de normas
carentes de sistemática, desordenadas e muitas vezes incoerentes”. Em ocasião
diversa, afirmou o professor Nova: “O sistema legal chileno faz muito tempo
perdeu seu caráter orgânico e está convertido em um vastíssimo conjunto de leis
desordenadas, carentes de princípios reitores, faltas de unidade, muitas vezes
incoerentes e contraditórias”. É diferente do Brasil? Em nada. Dentro desse
emaranhado, afirma o autor Marcos Espinosa, nasce o problema, qual norma
preferir, qual norma aplicar. E aí o governo de Allende buscou “a norma vigente
que permitisse realizar as mudanças estruturais para a implantação do Estado
socialista”. Obedecia à estratégia de “criar uma extensa propriedade social que
caísse nas mãos do Estado”.
Principais
instrumentos. O Chile
teve um governo socialista em 1932. Toda sua legislação nunca foi revogada,
apenas deixou de ser utilizada. Em 1970, Allende a aplicou. Havia ainda um
conjunto de normas legais discricionárias à disposição dos presidentes
anteriores, em especial no âmbito trabalhista e das atividades produtivas, que
as utilizavam com parcimônia. Allende se valeu delas.
Normas antigas em
vigor. O professor Eduardo Novoa Monreal foi atacado por “El Mercurio”, o
principal jornal do país, por estar estimulando atividades fora da Constituição.
Em carta ao matutino, ele observou: “O Poder Legislativo os convalidou (os
resquícios legais) em múltiplas ocasiões, aprovando leis que os modificavam ou
derrogavam, total ou parcialmente. O Poder Judiciário os aceitou como leis,
dando-lhes expressa aplicação com tal caráter em numerosas decisões. O Poder
Executivo e os organismos públicos de maior hierarquia, entre estes a
Controladoria Geral da República, impuseram seu acatamento. Seria possível
agora discutir sua legitimidade?” Em outra oportunidade, o professor Novoa
publicou trabalho explicando o que significava resquícios legais. Para eles,
era simples, são “caminhos legais para avançar rumo ao socialismo”. E detalhava,
existem “vários preceitos legais aptos a apoiar o programa da Unidade Popular”.
O preço caro do
desleixo. Manifestou-se desafiante em certo momento o professor Eduardo Novoa
Monreal: “Para mim está muito clara a razão da amargura que produzo nos
inimigos do governo ao mostrar a vigência de tais instrumentos legais e sua
possível utilização em uma política que leva ao socialismo. Tal amargura é
tanto maior quanto mais deles eram desconhecidas tais normas, porque só agora
percebem que muito antes do governo atual, quanto tinham força política,
poderiam tê-las derrogado. Sua ignorância, sua falta de assessoria jurídica
competente ou seu erro de cálculo levaram a deixá-las intocadas”.
Meta radical, métodos graduais. Não é raro escutar a falácia de que
Salvador Allende propunha socialismo democrático aceitável. É fake news,
para utilizar linguagem do momento. Aqui segue um comunicado caseiro da minha
doméstica FactCheck. Salvador Allende foi dos fundadores do Partido
Socialista Chileno (o qual sempre foi filiado disciplinado) partido que
afirmava em sua declaração de princípios: “O Partido aceita como método de
interpretação da realidade o marxismo”. A seguir indica como objetivo o fim da
propriedade privada dos meios de produção e a ditadura do proletariado: “O
regime de produção capitalista, baseado na propriedade privada da terra, dos
instrumentos de produção, do câmbio, do crédito e do transporte, deve
necessariamente ser substituído pelo regime socialista no qual a dita propriedade
privada se transforme em coletiva. Durante o processo de transformação total do
sistema é necessária uma ditadura dos trabalhadores organizados”. E proclama o
objetivo de transformar a América Latina em união de repúblicas soviéticas: “A
doutrina socialista é de caráter internacional e exige uma ação solidária e
coordenada dos trabalhadores do mundo. Para realizar este postulado, o Partido
Socialista proporá a unidade econômica e política dos povos da América Latina
para se chegar à Federação das Repúblicas Socialistas do Continente”.
Desativemos as minas. Reitero o que já venho repetindo há anos, para
alguns talvez já realejo incômodo: é preciso desativar as minas. Continuando
vigentes, probabilidade alta, um dia elas serão instrumentos para virar o Brasil
de pernas para o ar.
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