Retrocesso ufano
Péricles
Capanema
O mundo
vai assistir, logo adiante, entre 6 e 27 de outubro, às sessões do Sínodo para
a Pan-amazônia, que terá como tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e
para uma ecologia integral”. E logo virão seu documento final (cujas linhas
gerais, se não a versão última, já estão sendo redigidas enquanto escrevo) e
ações consequentes. Tal encontro vem gerando preocupação em meios
eclesiásticos, nos quais as mais destacadas manifestações até agora foram as
dos cardeais Walter Brandmüller e Gerhard Müller, que qualificaram de herético o
documento preparatório, a “Instrumentum Laboris” (instrumento de trabalho),
assim como em meios civis, até integrantes do governo brasileiro manifestaram za
justo título receio com o rumo do encontro. Tratei a respeito em artigos
anteriores, “O non possumus do cardeal alemão”, “Outro cardeal alemão entra na
liça” (cfr. periclescapanema.blogspot.com).
Ressalto nesta
matéria aspectos de especial interesse da “Instrumentum Laboris”. Texto longo, um
pouco à maneira dos “cahiers de doléances” por ocasião da Revolução Francesa, 147
parágrafos, de alto a baixo bafeja a bem dizer todas as causas revolucionárias atuais;
à vera o desenrolar das afirmações causa horror do começo ao fim. Dito de outro
modo, peça de demolição, autodemolição e desagregação.
Poderia
ser um texto do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) ou da CPT (Comissão
Pastoral da Terra), ambos órgãos da CNBB, na prática linhas auxiliares do PT. Tais
órgãos e tantos outros de orientação semelhante praticam às escâncaras a opção
preferencial pela revolução ▬ no fim das contas, em detrimento dos pobres, pois
perpetram diuturnamente agressões às esperanças e aos direitos deles, o mais
imediato dos quais é o de crescer, ter condições para melhorar de vida ▬ basta
ver Cuba e Venezuela, na rota para o paraíso prometido).
Mostro exemplo
gritante, a “Instrumentum Laboris” quando fala dos santos e mártires da Igreja
Amazônica elenca Chico Mendes entre eles. Deste, afirma a Enciclopédia
Latino-Americana: “O líder popular Chico Mendes teve a fortuna de encontrar seu
grande mestre, Fernando Euclides Távora, militante comunista. Em 1975, já
militando nas comunidades de base – as CEBs – fundou o primeiro sindicato de
trabalhadores rurais do Acre. [Foi] dirigente nacional da Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e do Partido dos
Trabalhadores (PT)”. Um agitador
revolucionário, militante petista, entre os vários santos e mártires, a quem
devemos venerar, modelo para os católicos. Despencou a essa demagogia desavergonhada
o documento da Santa Sé.
Muitas vezes a linguagem é vaga, ambígua, sujeita a interpretações
várias. Aqui e ali uma afirmação sensata a fazer contraforte com o tom geral
revolucionário. Vale aqui regra de ouro da hermenêutica, exposta por Arnaldo
Vidigal Xavier da Silveira em livro sobre a missa de Paulo VI: “Vamos considerar, em tese, o princípio: as passagens obscuras e
malsonantes de um documento não o tornam suspeito quando nele há também textos
ortodoxos relativos às mesmas questões. A isso cumpre dar uma primeira
resposta, de ordem hermenêutica: A) Em princípio, é verdadeira a regra segundo
a qual os textos confusos e obscuros de um documento
devem ser interpretados pelos claros. B) Mas a regra exige uma distinção: a) é aplicável quando as
passagens suspeitas ou heterodoxas ocorrem apenas uma vez ou outra, à
maneira de lapso; b) não vale quando as passagens suspeitas ou heterodoxas são
numerosas (pois o que ocorre à maneira de
lapso é, por natureza, casual e em pequeno número); nessa hipótese, deve-se
recorrer a outras regras e a outros meios de interpretação; c) quando, além de
numerosas, as passagens confusas, suspeitas e heterodoxas formam, umas com as
outras, um sistema de pensamento, a
citada regra de interpretação não vale, mas se aplica a regra oposta: é mister
então perguntar se não são os textos ortodoxos que devem ser interpretados à
luz dos confusos, suspeitos e heterodoxos. O que ocorre à maneira de lapso não
costuma ser frequente, e sobretudo não pode constituir sistema”. Não
estamos diante de lapsos, fazemos frente a um sistema de pensamento, que
impulsiona um movimento.
Enquanto lia a “Instrumentum Laboris” chocava-me de maneira particular o
ataque ao progresso moderno e a glorificação idílica, romântica, descolada da
realidade, da vida primitiva e dos parcos recursos indígenas. (“Como recuperar
o território amazônico, resgatá-lo da degradação neocolonialista e devolver-lhe
seu bem-estar saudável e autêntico?”). Passava-me pela cabeça uma frase que
ouvi na infância: o diabo não dá o que promete. Já não está na moda o progresso,
a ciência. Agora as mais extremadas correntes revolucionárias empurram de forma
ufana para a vida primitiva, para a regressão e o atraso. Para tais correntes,
decisivas na elaboração da “Instrumentum Laboris”, como tresanda a naftalina o mote,
viçoso nos anos sessenta, do pontificado de Paulo VI: “o novo nome da paz é
desenvolvimento”.
Extratos da “Instrumentum Laboris”, catados aqui e ali do amazônico
texto. “O cuidado da vida supõe oposição a uma visão insaciável do crescimento
ilimitado, da idolatria do dinheiro. Somos parte da natureza porque somos água,
terra e vida. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram
as veias de nossa Mãe Terra. A selva não é um recurso para explorar, é um ser.
[Na Amazônia] tudo é compartilhado, os espaços particulares – típicos da modernidade
– são mínimos”. E vai por aí afora.
Só tem um problema. Nada mais impopular para a imensíssima maioria dos índios
que querer mantê-los no primitivismo. Índio quer eletricidade, posto de saúde,
escola, estrada. Crescer na vida. O programa revolucionário para os índios, excludente
e isolacionista, um elitismo às avessas, esbofeteia seu impulso de inclusão, de
melhorar, de ter acesso aos avanços civilizatórios.
Em livro publicado meses atrás, “Brigo pelos homens atrofiados”, um
conto, sob o pseudônimo Zeca Patafufo, tratei de tais objetivos ▬ que agora vejo
estampados em vários parágrafos da “Instrumentum Laboris” ▬, bem como de sua impopularidade
entre os pobres. No referido conto pontificava o revolucionário Al Zuretta: “O
Abu nunca entenderá que caducou a narrativa iluminista. E também está
desvalorizada a narrativa modernista”. — Aí, arrematou: — “O Abu inda tem na
cabeça, devemos ser construtores; patacoada. A ideologia do progresso contínuo
e inelutável é o pior ópio do povo. Demora não e desfaremos as obsessões pela
produtividade e empreendedorismo; é retrocesso patente o tal direito ao
desenvolvimento. As aspirações e direitos são históricos; nascem, espigam e
para um bocado deles, feitos anacrônicos, chega a hora de morrer. Estamos no
caso. O revolucionário agora é o decrescimento, a dissociação social
contestadora, a reinserção do homem na natureza enquanto parte e não senhor dela.
Bandeiras com amanhã: decrescimento, ecologia, igualdade social, diversidade —
a nossa, não a deles —, ideologia dos gêneros”. Aí levantou conformes: — “Tem
uns poréns: a elas, às bandeiras, sobretudo à do decrescimento, falta
magnetismo. As multidões detestam o minguamento, aspiram ao contrário, subir na
vida. E ao povo repugnam também as exigências radicais dos naturebas, igualdade
social, sexos indiferenciados. É duro mudar mentalidades; enquanto não as
mudarmos, nosso programa permanecerá utópico” Utopia devastadora, prestigiada nos
mais regressivos círculos revolucionários, em outubro próximo atroando ufana, se
não for denunciada, nas salas vaticanas de alto luxo. Que São Pedro nos proteja.
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