Cristandade e Ocidente
Péricles
Capanema
A Cristandade
tem inspiração e raiz longínqua no Império Romano, espaço de convivência civilizada
do mundo antigo, do qual foi aperfeiçoamento. Tendo como objeto ser espaço da convivência
virtuosa de povos sob a luz de Cristo, começou a surgir como forte realidade histórica
com Carlos Magno (742-814), seu maior símbolo. Firmou-se muito tempo depois no Sacro
Império Romano Alemão, a mais importante realização de tal ideal.
Território,
direito e senso de governo marcaram o império sob Roma. O mesmo, proportione
servata, valeu para a Cristandade. Agrupava as nações cristãs. O direito, muito
variado, aperfeiçoava-se seguindo as trilhas do consuetudinário e do Direito Romano.
O governo, via de regra, ▬ por longo período imerso em atmosfera pré e
supranacional ▬ agia consoante o princípio de subsidiariedade, embora sua explicitação
só viesse séculos depois. Georg Schmidt o chamou de Império-Estado complementário
(poderia ser chamado de Império-Estado subsidiário). Enfim, a Cristandade foi realização
valiosa, ainda que insuficiente e até em pontos defeituosa, da ordem temporal cristã.
Infelizmente, sua luz foi se apagando, até que em 1806 se extinguiu. Deixou enorme
saudade, restou fulgurando como ideal no horizonte da Europa cristã.
Anos atrás ouvi do prof. Plinio Corrêa de Oliveira frase que ficou: “Em relação
à Igreja, eu sou como o judeu em relação ao Templo. Amo o Templo, amo as ruínas
do Templo, e se essas ruínas se converterem em pó, amarei o pó que resultou dessas
ruínas”. Analogamente, para um católico imbuído da convicção de como importa existir
uma ordem temporal cristã, tais palavras se aplicam por inteiro à Cristandade. Até
o pó dela merece amor. É também dele a proclamação: “"Quando ainda muito jovem, considerei enlevado
as ruínas da Cristandade, a elas entreguei meu coração, voltei as costas ao meu
futuro, e fiz daquele passado carregado de bênçãos, o meu porvir”.
Aqui vou levantar
ponto essencial, sem o qual inexistiria a Cristandade. Os povos que a compunham
tinham convicção de que seus interesses maiores eram a preservação e aperfeiçoamento
daquele estado de coisas. Em segundo plano, vinham os interesses nacionais, regionais,
corporativos, familiares, pessoais. Talvez o mais relevante exemplo de defesa da
Cristandade tenha sido são Pio V (1504 – 1572), Papa a partir de 1566. Articulou
enorme aliança militar destinada a formar a armada que derrotou os turcos em Lepanto
em 1571, preservando uma Europa onde ainda eram vivos os restos da Cristandade.
Em sentido contrário, tantas vezes os agredindo, temos o longo trajeto da chamada
aliança franco-otomana, que começou em 1536 entre Francisco I e Solimão, o Magnífico.
Começavam a prevalecer os interesses do Estado-nação, os da Cristandade iam
para o fundo do palco.
No século
20 e 21, eco precioso, se quisermos ruinas veneráveis, da Cristandade foi o que
se chamou o Ocidente cristão e, mais recentemente, apenas Ocidente. Nessa acepção
de Ocidente, que não é geográfica, estão por exemplo, Japão, Coreia do Sul,
Cingapura.
Escrevia acima,
o Império Romano foi espaço de convivência do mundo civilizado. O Ocidente é o espaço
de convivência de princípios básicos do que se poderia chamar a civilização cristã;
se quisermos, da ordem temporal cristã. Nos dias presentes, vigência de
liberdades na vida pública e privada, economia de mercado. E nesse sentido, hoje,
um espírito bem formado deve colocar os interesses ocidentais, de momento
enormemente ameaçados, na frente dos interesses de qualquer país, mesmo o seu.
Adversárias dos princípios ocidentais no século 20 e 21 foram as potências
totalitárias e coletivistas, entre outras, a Alemanha nazista, a Rússia
soviética e agora a China comunista.
Fiz longa
introdução para entrar fácil no assunto do artigo: no tratado de livre comércio
entre a União Europeia e o Mercosul. É amazônico, inclui concorrência, serviços,
investimentos, temas ambientais, desenvolvimento sustentável, compras de governo,
propriedade intelectual. Muita coisa ainda. O governo brasileiro, estimativa
inicial, prevê que em 15 anos as exportações brasileiras para a União Europeia
terão um acréscimo de US$100 bilhões de dólares anuais. E haverá grande aumento
de investimentos da UE no Brasil. O acordo trará ao Brasil prosperidade, maior renda,
geração de empregos.
O caminho
até a implementação final será longo, cheio de obstáculos. Teremos muita
discussão nos meios de divulgação e nos parlamentos dos 28 países que compõem a
União Europeia (e também no Parlamento Europeu). Haverá debates nos países do
Mercosul. Os assuntos devem ser tratados e resolvidos. Não são o foco de meu
artigo.
Meu foco
é outro. O Brasil está perigosamente dependente da China, vamos escorregando
para a condição de efetivo, ainda que não confessado, protetorado chinês. Não
só o Brasil, igualmente a Argentina, Uruguai, Paraguai. O acordo com a União
Europeia, pelo menos em parte, nos tira de tal dependência, aumenta a
efetividade de nossa independência e soberania. E das outras nações, acima
mencionadas. Seria conveniente aproximação semelhante com os Estados Unidos e
Japão. Estão em jogo gravíssimos interesses ocidentais.
Sintomas
reveladores. A esquerda europeia está furiosa. A esquerda brasileira rosna
(sempre silenciosa em relação à aproximação com a China). O candidato kirchnerista
Alberto Fernández, saindo da visita a Lula, declarou que, se eleito, vai
rediscutir o acordo. Querem de todo modo explodi-lo, apesar da pobreza que daí
seguirá. Pelo que vi nos meios de divulgação, nem na Europa, nem aqui, ninguém sublinha
que o mais importante do acordo é o fortalecimento dos interesses ocidentais.
É.
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