O “non possumus” do cardeal alemão
Péricles Capanema
“Non possumus” ▬ não podemos; na linguagem
corrente, não posso. Não podemos foi a resposta de são Pedro e são João ao príncipe
dos sacerdotes que lhes proibia a pregação do Evangelho. “Se é justo diante de Deus
obedecer antes a vós que a Deus, julgai-o vós mesmos; não podemos, pois, deixar
de falar das coisas que temos visto e ouvido” (At, 4, 19-20).
“Non possumus” é expressão usualmente empregada
quando dever de consciência impõe desacordo público com algum ato de autoridade.
Foi, assim, por exemplo, que Pio IX (1792 – [1846] 1878) respondeu a Napoleão III
(1808-1873) que havia sugerido a ele, como Chefe dos Estados Pontifícios, a entrega
da Romagna a Vitor Emanuel II (1820-1878), na ocasião ainda rei da Sardenha.
Os exemplos se multiplicam na vida pública e privada.
Preciso, porém, falar de um cardeal alemão, erudito e destemido, que há pouco, publicamente,
disse um “non possumus”, fundamentado e sereno, que ecoa de alto a baixo na Igreja.
Dom Walter Brandmüller, nascido em 1929, recebeu em 2010 o capelo cardinalício de
Bento XVI. Reconhecido como sacerdote douto nos ambientes eclesiásticos e da alta
erudição, em especial grande historiador, passou a vida em reflexões, estudos, aulas,
congressos, publicações; tem numerosos livros difundidos no mundo inteiro. Foi
só no outono da existência, 81 anos, como prêmio e reconhecimento de bons serviços
recebeu a púrpura.
Corta. Estamos na véspera do Sínodo sobre a Pan-amazônia.
Ou por outra, do sínodo sobre a Amazônia inteira. É região imensa, compreende a
bacia do rio Amazonas, são 6.900.000 km2, dos quais cerca de 3.800.000 km2 no Brasil.
Além do Brasil, abarca sete outros países: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru,
Venezuela. Suriname. E ainda a Guiana Francesa. No Brasil, a Amazônia Legal representa
59% do território, onde em 2000 viviam 20,3 milhões de pessoas, sendo 68,9% em zona
urbana. Hoje, certamente, muitos mais.
O Sínodo, que se reunirá em Roma de 6 a 27 de
outubro próximo tem como lema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para
uma ecologia integral”. Observadores e comentaristas, considerando a amplitude
dos temas propostos, afirmam que suas conclusões podem mudar o rumo da Igreja.
Até agora, seu mais importante documento, espécie de pauta prévia, é a “Instrumentum
laboris” (instrumento de trabalho), divulgado pela Santa Sé em 17 de junho último.
Foi
em relação a tal documento, que tomou posição o cardeal dom Walter Brandmüller
em documento de 27 de junho cujo original traz o título “Eine Kritik des
‘Instrumentum Laboris’ für die Amazonas-Synode” ▬ Crítica da Instrumentum
Laboris para o Sínodo da Amazônia.
O
Purpurado iniciou suas palavras vergastando a ingerência indevida da proposta em
matéria temporal: “Para começar precisamos nos perguntar por que um sínodo de
bispos deveria tratar de temas que ▬ como é o caso de três quartos da
‘Instrumentum Laboris’ ▬ têm só marginalmente algo relacionado com os
Evangelhos e a Igreja. Obviamente que a partir deste sínodo de bispos,
realiza-se uma intromissão agressiva em assuntos puramente temporais do Estado
e da sociedade do Brasil. Há que se perguntar: o que a ecologia, a economia e a
política têm a ver com o mandato e a missão da Igreja? E acima de tudo: que
competência profissional e autoridade tem o sínodo eclesial de bispos para
emitir declarações nesses campos? Se o sínodo realmente o fizesse, isso
constituiria uma invasão e uma presunção clerical, que as autoridades estatais
teriam todo motivo para repelir”.
Com
segurança e bom senso o cardeal alemão diz que o documento é “intromissão
agressiva” em assuntos temporais de pessoas sem qualificação profissional e
autoridade para falar a respeito. Vai além, seria “presunção”, “invasão”, e
daria motivo justificado para as autoridades civis repelirem a ingerência indevida.
Vou
tratar apenas de alguns pontos ventilados pelo cardeal. A seguir, critica o
conteúdo teológico do documento, dizendo que, fundado no ideal do “bom
selvagem” de Rousseau e na doutrina iluminista, propende para uma igreja
natural e chega a uma “idolatria panteísta da natureza”. Censura ainda a
rejeição da cultura ocidental, o desapreço da razão, a ereção das florestas
“pasmem, vem até declaradas como um ‘locus theologicus, uma fonte especial de
revelação divina”. E conclui: “o resultado é uma religião natural, com máscara
cristã”. Em consequência, temos “a autodestruição da Igreja ou a transformação
do ‘Corpus Christi Mysticum’ em uma espécie de ONG secular com missão ecológico-social-psicológica”.
Para o cardeal estamos diante de “uma nova forma do modernismo clássico do início
do século XX”.
Seguidor
do “seja o vosso falar: sim, sim; não, não”, conclui o hierarca com clareza
solar: “Portanto, deve ser dito hoje com força que a ‘Instrumentum laboris’ contradiz
o ensinamento vinculante da Igreja em pontos decisivos e, portanto, deve ser qualificada
de documento herético. Dado que até mesmo a revelação divina é aqui
questionada, ou mal-entendida, deve-se também falar que, além disso, é
apóstata. [...] A ‘Instrumentum Laboris’ usa uma noção puramente imanentista de
religião [..] constitui um ataque aos fundamentos da fé, [...] deve ser rejeitada
com a máxima firmeza”.
O
documento do cardeal Walter Brandmülller é bálsamo para os católicos
brasileiros. Eles haviam se escandalizado com a linguagem balofa, vaga, imprecisa,
quando não escandalosamente falseadora da realidade, cheia de ambiguidades
estudadas, que perpassa toda a “Instrumentum Laboris”, mas que invariavelmente bafeja
programas de ecologia extremada, anticapitalistas, coletivistas, favorecedores
do primitivismo indígena; enfim, pautas propugnadas pela esquerda de todos os
matizes, em especial a radical.
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