Não lavou as mãos na
bacia de Pilatos
Péricles Capanema
Como amplamente noticiado, em 22 de agosto o arcebispo
Carlo Maria Viganò, núncio nos Estados Unidos de 2011 a 2016, ademais de ter
ocupado importantes cargos na diplomacia vaticana (Delegado das Representações
Pontifícias, por exemplo), divulgou documento intitulado “Testemunho” em que
relata conivência e até promoção do homossexualismo em especial na Hierarquia
católica dos Estados Unidos. O mais importante caso denunciado foi a proteção por
parte de altas autoridades na Hierarquia eclesiástica ao antigo Arcebispo de
Washington, o então cardeal Theodore McCarrick (renunciou ao chapéu
cardinalício; o primeiro caso desde 1927).
Suas acusações de acobertamento, conivência e promoção
não se limitaram aos Estados Unidos. Alcançaram Roma (outros locais ainda),
implicam altíssimos hierarcas católicos, entre os quais os cardeais Sodano,
Bertone e Parolin, secretários de Estado.
Afirma o antigo núncio, existe um pacto infame de
silêncio, uma omertà, que une hierarcas, sacerdotes e seminaristas. “Temos de ter
a valentia de derrubar esta cultura de omertà e confessar publicamente as
verdades que mantivemos ocultas”. Dom Viganò denuncia ainda, continua ativa
rede de homossexuais dentro das estruturas da Igreja.
Entre outras medidas de saneamento, dom Viganò reclama
a demissão imediata de todos os envolvidos no acobertamento e promoção dos
vícios homossexuais na Igreja.
O mais grave da denúncia vem aqui: “Francisco está
abdicando do mandato que Cristo deu a Pedro de confirmar a seus irmãos. Mais, com
sua ação os dividiu, os induziu em erro, estimula aos lobos a continuar
destroçando as ovelhas do rebanho de Cristo”. Em outras palavras, aponta gravíssima
lesão aos deveres do cargo.
Prossegue: “Neste momento extremamente dramático para
a Igreja universal tem de reconhecer seus erros e, em coerência com o princípio
da tolerância zero, o Papa Francisco precisa ser o primeiro a dar o exemplo aos
cardeais e bispos que encobriram os abusos de McCarrick e tem de se demitir
juntamente com eles”. O Papa Francisco afirmou no voo de volta da Irlanda, não
dirá uma palavra a respeito. O Vaticano até agora tem se mantido silente.
Não vou tratar do documento de dom Viganò, já muito
divulgado. Nem de reações a ele que tiveram relevância na imprensa. Pretendo apenas
destacar reações ainda pouco conhecidas do público brasileiro. Dom Joseph
Strickland, bispo diocesano de Tyler no Texas, merece nelas menção especial. Tomou
posição imediata, diante do que entendeu seríssima e pessoal responsabilidade
pastoral. “Pilatos, vendo que nada adiantava, mas que cada vez era maior o
tumulto, tomando água, lavou as mãos diante do povo, dizendo: ‘Eu sou inocente
do sangue deste justo’” (Mt, 27, 24). Fez o contrário de Pilatos.
Transcrevo trechos do comunicado do bispo diocesano de
Tyler: “Prezados sacerdotes, diáconos, religiosos e diocesanos da diocese de
Tyler: Uma carta do Arcebispo Viganò (texto completo anexo), antigo núncio nos Estados
Unidos, apresenta afirmações graves e pede a renúncia de prelados de alta
hierarquia, entre eles o Papa Francisco. Vou ser claro, são ainda denúncias, mas
como seu Pastor, as acho verossímeis. A resposta deve ser uma severa
investigação. Não tenho autoridade para iniciar tal investigação, mas
utilizarei minha voz de todos os modos para reclamá-la. Todos os que forem
encontrados culpados precisam prestar contas, até mesmo nos mais altos níveis
da Igreja. Rezemos todos pela Igreja e peçamos a intervenção de Nossa Senhora. Somos
o rebanho de Cristo. O Espírito Santo nos guiará nestas trevas. Ordeno a todos
os sacerdotes que informem a respeito os fiéis nas missas do dia 26 e
imediatamente postem o material nos seus websites e outras mídias sociais”
Outras manifestações vieram na mesma direção, também de
grande significação. O bispo diocesano de Phoenix, dom Thomas J. Omsted,
divulgou o seguinte comunicado (trechos): “Já faz 39 anos que conheço o
arcebispo Carlo Maria Viganò. Fomos colegas na Secretaria de Estado da Santa
Sé. Ainda que nada saiba da informação que ele revela, e assim não posso
verificar sua autenticidade pessoalmente, sempre considerei e respeitei dom Viganò
como homem de verdade, fé e integridade. Por esta razão, peço que o testemunho do
arcebispo Viganò seja levado a sério por todos e que cada denúncia feita seja
investigada a fundo. Todos os que encobriram tais atos devem ser conhecidos”.
Monsenhor Jean-François Lantehaume, também antigo
núncio em Washington, não quis falar sobre o caso. Mas afirmou: “Viganò disse a
verdade. É tudo”. No Facebook, um pouco mais: “O núncio Viganò é o prelado mais
honesto que conheci no Vaticano”.
De enorme importância foi a declaração do cardeal
Daniel DiNardo, presidente da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados
Unidos (a CNBB de lá). Segundo ele, as acusações do arcebispo Carlo Maria
Viganò “merecem respostas que sejam conclusivas e baseadas em provas. Sem tais
respostas, homens inocentes podem ser manchados por falsas acusações e os
culpados podem ser deixados livres para repetir os pecados do passado”.
Em atitude que pode se multiplicar no Episcopado dos
Estados Unidos, dom Samuel Aquila, arcebispo de Denver, divulgou o seguinte
comunicado: “Caríssimos irmãos e irmãs em Cristo: Muitos de vocês sabem que na
semana passada o antigo representante do Papa nos Estados Unidos, o arcebispo
Carlo Maria Viganò, deu a público testemunho que traz sérias denúncias sobre o
caso do arcebispo McCarrick. Nos meus contatos com o arcebispo Viganò sempre
percebi nele um homem de profunda fé e integridade. Uno-me ao cardeal DiNardo e
ao Comitê Executivo da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos
solicitando à Santa Sé investigação completa das denúncias que inclua autorizar
uma comissão de leigos que examine o caso”.
Tenho diante de mim mais de trinta manifestações de
bispos, arcebispos, um cardeal, professores de moral e de teologia, leigos de
destaque solicitando a mesma investigação. Não é possível delas tratar aqui;
aliás, estão na rede, em inglês e em outros idiomas.
“O clamor dos filhos de Israel chegou a mim; e eu vi a
sua aflição”, lemos no Êxodo. A frase vem de Deus, claro, mas, por analogia, vale
para quem Deus colocou para guiar o povo nas vias da salvação. Vale até para o
católico simples. Não era segredo, o povo fiel, de há muito vem se sentindo
órfão, escandalizado observa pastores cuja conduta, lembrando a imagem de Viganò,
estimula lobos a massacrar ovelhas. Um primeiro passo na direção oposta ▬ não
lavar as mãos na bacia de Pilatos ▬ desperta esperança de que outros virão no
mesmo rumo, seria uma caminhada de restauração. Rezemos.
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