Entre lá e cá, muita
diferença há
Péricles Capanema
Em fins de 2017 Malcom Turnbull, primeiro-ministro da
Austrália, denunciou o óbvio ululante, calado pela imensa maioria dos dirigentes
contemporâneos. Dos políticos brasileiros no governo, então, nenhuma exceção, o
silêncio é total sobre matéria que têm por dever tomar posição. Preocupa ainda o
mutismo de setores com responsabilidade institucional relativa à independência
e segurança nacionais.
Aliás, já tratei desse óbvio algumas vezes, a primeira
em 15 de dezembro de 2015 (Desnacionalização suicida); versava sobre a expansão
imperialista da China comunista, no Brasil em especial pela compra de
amazônicos ativos por estatais chinesas. Naquela ocasião, observei: “Na década de 70 foi usual a palavra finlandização. A Finlândia havia
perdido mais de 10% de seu território para a Rússia, quase 20% de seu parque
industrial e, pelo temor do vizinho ameaçador e poderoso, acertava sempre o
passo com Moscou, não importava o que fizessem os tiranos comunistas. Aquele
antigo e civilizado país, formalmente soberano, de fato padecia uma forma
larvada de protetorado. [...] Com a enorme e cada vez maior presença econômica
do Estado chinês entre nós, vai chegar o dia em que o país, em numerosos
assuntos internos, vai ter diante de si potência mundial imperialista. [...]
Está em curso entre nós um processo que vai levar à perda efetiva da soberania
nacional. No fundo do horizonte, terrível perspectiva, nos espera o protetorado
envergonhado, mesmo que cuidadosamente disfarçado”.
Agora tenho companhia para gritar comigo, uma delas, a
maior autoridade de um dos grandes países do mundo. Que sua advertência sirva
de exemplo para nós aqui no Brasil e alhures. Tinham endereço certo as palavras
do político australiano sobre “tentativas sem precedentes e crescentemente
sofisticadas para influenciar o processo político”. Referiu-se ainda a
“inquietadores informes sobre a influência chinesa”. Estava claro, os
relatórios preocupantes tinham origem nos serviços de inteligência do País. Não
espanta pois que Feng, professor de estudos chineses em Sidney, tenha constatado,
mais de 90% das dezenas de grupos da comunidade chinesa no país são controlados
por Pequim.
No Japão, Michael Danby, deputado no Parlamento
australiano, ecoou as advertências de Tornbull. Fez duro discurso contra o
perigo chinês não apenas na Austrália mas em todo o Sudeste asiático e no
Pacífico em geral. Acusou a China de estar agindo como um novo Komintern (a
antiga internacional comunista), com presença crescente na economia e na
política. Afirmou ainda que tais esforços são parte da estratégia do PC chinês
de “competir com os Estados Unidos globalmente”. Nesse contexto, políticos no
Parlamento da Down Under trabalham
para aprovar legislação que dificulte a ação imperialista da China na
Austrália.
Não é diferente a situação na Nova Zelândia. Cresce
ali a consciência do perigo, mas, de outro lado, é generalizada a impressão, o
governo já não tem liberdade inteira para agir em defesa dos interesses do País
diante da presença intimidante e (vamos usar a palavra precisa) chantageadora
da China. A professora Anne-Maria Brady da Universidade de Canterbury, das mais
ativas na denúncia da ameaça chinesa, julga que o governo já concordou, quando
nada tacitamente, na aplicação de uma política comum que ela intitula “de não
surpresas”. Eventuais advertências sobre a ingerência chinesa serão sempre
expressas privadamente. Exemplo desse fato, nos últimos meses os serviços de inteligência
da Austrália e da Nova Zelândia advertiram os dois governos sobre a crescente e
preocupante intromissão chinesa nos assuntos internos dos dois países. A ASIO (Australian Security Intelligence
Organisation, em português Organização Australiana de Inteligência de
Segurança) colocou em seu relatório anual destinado ao Parlamento que governos
estrangeiros tentam influir abusivamente no país representando “ameaça para
nossa soberania, integridade das instituições nacionais e exercício dos
direitos dos cidadãos”. Em outubro último, Duncan Lewis, chefe da ASIO, advertiu
parlamentares australianos que é necessário estar “muito consciente das
possibilidades de interferência estrangeira em nossas universidades”. Um dado
revelador, a Dollars and Democracy
Database da Escola de Direito de Melbourne pesquisou, 80% das doações na
Austrália para campanhas políticas dos dois grandes partidos provenientes do
Exterior entre 2000 e 2016 tiveram como origem a China comunista. Relatórios cobrindo
a imprensa, o mundo dos negócios e as universidades constatam a mesma busca de
predomínio. Setores na Austrália se alarmam e gritam. Na Nova Zelândia, com situação
semelhante, mutismo total na classe política. Não parecem ser os primeiros
sintomas do que chamei acima “protetorado envergonhado, mesmo que
cuidadosamente disfarçado”? Finlandização.
A situação da Nova Zelândia levanta gravíssimo
problema para a segurança do Ocidente. Cinco países de língua inglesa, aliados
especialmente próximos, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova
Zelândia compartilham dados de seus serviços de inteligência (a chamada Five Eyes Intelligence). Se a Nova
Zelândia permitir a crescente ingerência chinesa em alto nível, poderá ser
impelida a compartilhar dados sensíveis com a China, parte dos quais recebidos
dos outros quatro. Transformar-se-á no que em inglês se chama o soft belly (ventre mole). A carapaça
cobre todo o jacaré, menos o ventre, vulnerável às flechas. Por ali é
facilmente morto. Continuará a existir a confiança entre os cinco? Ou a
prudência daqui a pouco comandará
atitude diversa?
Poderia continuar indefinidamente historiando fatos na
Nova Zelândia e Austrália que reverberam no Congresso dos Estados Unidos e provocam
faíscas na Inglaterra e até na Alemanha. Mas preciso parar, falta espaço. E é
claro, a respeito de tudo isso, a China comunista contrataca, atribuindo as
reações à paranoia, ao macartismo e ao racismo. Dispõe de cartas importantes na
manga: é o maior parceiro comercial da Austrália, o maior parceiro de bens com
a Nova Zelândia e o segundo de serviços. Aliás, o mesmo vale para o Brasil.
Contudo, ainda transcrevo pequena parte do há pouco
divulgado estudo feito pelo Eurasia Group
para 2018 (está na rede), em geral considerado o mais importante instituto de análise
de riscos. Assinala: “O modelo político da China agora está sendo tido vigoroso
como nunca antes ▬ numa ocasião em que o modelo político dos Estados Unidos
está enfraquecido”. Continua: “A China está assinando cheques e criando um
estrutura global de poder, enquanto outros estão pensando bilateralmente ou
localmente. O modelo gera interesse e imitadores, com governos na Ásia, África,
Oriente Médio, América Latina, tendendo mais em direção às preferência de
Pequim. Desde 2008, observamos uma erosão gradual da percepção global sobre a
capacidade de atrair das democracias liberais do Ocidente. Agora existe uma
alternativa viável. Aqui está o maior risco de 2018”.
Lá. No geral, a Austrália toma medidas sérias, são feitas
a respeito reuniões no Congresso dos Estados Unidos. O em geral tido como mais
importante instituto de análise de riscos coloca a ascensão da China como o maior risco de 2018. Cá. No Brasil, muitos gabarão os
investimentos chineses (mutismo sobre o comando deles por governo e Partido Comunista
chinês). Serão comuns hosanas à habilidade de nossos diplomatas, governo e
empresários no fortalecimento dos laços comerciais com a China. Nada ou quase
nada se encontrará sobre a cautela que toma a Ásia, setores da Alemanha e dos
Estados Unidos.
As muitas diferenças entre lá e cá não nos lisonjeiam.
Na cara, sintomas de despertar. Na coroa, superficialidade, cegueira e desleixo;
deixo de lado cumplicidades eventuais.
Epa, esperem. Terminava o artigo, abri o Estadão. Na
página dois, Sérgio Amaral, embaixador em Washington, “em caráter pessoal”, trata
da volta do mundo bipolar ▬ agora Estados Unidos versus China. Fecha o artigo assim:
“Em seguida [a China] expandiu-se pela África e agora avança na América Latina,
como ilustra a magnitude dos investimentos chineses na região”. Grande passo, tomara,
nosso embaixador na principal capital do mundo, por fim também enxerga o óbvio.
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