Complexo de vira-latas
Péricles Capanema
De novo, mais um tropeção na ladeira buraquenta das
realizações (e dos sonhos). Outra imagem, mais uma repetição no curso médio, já
são várias, o aluno (o Brasil) até agora não conseguiu entrar na faculdade, faz
anos lá estudam primos como a França e o Canadá. Vem ainda à cabeça a frase
atribuída a de Gaulle: “O Brasil não é um país sério”. Loser. Paro por aqui, chega, tantas outras comparações deprimentes
poderiam ainda ser lembradas, algumas das quais pipocam na imprensa e na rede.
Vamos ao fato. A Standard & Poor’s, agência de
classificação de riscos, abaixou a nota de crédito do Brasil, de BB para BB-. O
empurrão aproxima o país da zona dos caloteiros, onde estão Cuba, Venezuela, Moçambique,
Angola (já sob plenos efeitos das maravilhas do socialismo), distanciando-o da
região dos que têm o hábito de pagar as contas e despertam confiança nos
negócios, como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França (que sofrem os
horrores do capitalismo).
No fundo do horizonte enxergamos horrorizados a perspectiva
da Brazuela, ou seja, a situação brasileira pode ficar cada vez mais parecida
com a da Venezuela, onde hoje muita gente do povo briga aos tapas por comida de
cachorro. Nem todos se alarmam, porém. Marcus Pestana, deputado federal tucano,
estadeou sinceridade escarrapachada: “A classificação de risco que interessa à
esmagadora maioria dos deputados é o risco eleitoral”. Preocupação com o
Brasil, zero. Contudo, não busquemos a saída escapista, jogar toda a culpa no
cangote dos políticos, somos nós que os elegemos e por nossa culpa a qualidade
vem caindo. Em geral vivem em nossa região, são nossos conhecidos. E o próximo
Congresso, pressentimento generalizado, terá qualidade moral igual ou inferior
ao atual. Tudo isso agrava a sensação de beco sem saída.
Com o rebaixamento da nota, normal, se a direção da
economia não mudar, para órgãos públicos e empresas privadas o dinheiro no
Exterior vai ficar mais caro, haverá menos aplicações de estrangeiros entre nós,
crescerá a desconfiança com os rumos da economia. Em suma, tendência para a
carestia, menos emprego, menos renda; mais sofrimentos, especialmente para os
pobres.
Em um primeiro momento, Henrique Meirelles, ministro
da Fazenda, jogou o fardo da culpa no Congresso. Recebeu o troco: “Resposta de
um candidato, uma pena”, declarou Rodrigo Maia, presidente da Câmara. “Muitas
vezes ultrapassamos os nossos limites para entregar o que a equipe econômica
pedia”, rebateu Eunício Oliveira, presidente do Senado. Michel Temer entrou em
campo e acabou com o bololô que piorava ainda mais a situação. Os três atores
passaram a agir combinados.
Em resumo, voltou brava a sensação de que vivemos em país
que não dá certo. Se quisermos, nação com a sina do azarado, que com amargura
repete, Deus é brasileiro. Complexo de vira-latas. “Por complexo de vira-latas entendo eu a inferioridade em que o
brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro
precisa se convencer de que não é um vira-latas”, definiu-a assim Nelson
Rodrigues, o criador da expressão. Como deixar de ser vira-latas?
O cientista político Bolívar Lamounier arrisca
explicação de fundo, aplica-se à atual situação de desencanto: “O fator
preponderante nos retrocessos e rupturas sempre foi a falta de convicção das
elites, sua falta do mais elementar bom senso e sua covardia quando o exercício
da autoridade governamental se fez necessário. A República de Weimar e o Brasil
de 1961-64 são bons exemplos. Dói constatar [...] o Brasil não se livrou de uma
classe política virtualmente desprovida de responsabilidade pública”.
Ponho as palavras do cientista político como meu
aeroporto a partir do qual vou tentar voar um pouco. Acho, toca em dois pontos
centrais, o primeiro, elites como fator indispensável do bem comum. E a pessoa
começa a pertencer è elite, quando nela brota preocupação com o bem comum.
Decai à medida que vai se apagando o senso do bem comum. Falo de todos os tipos
de elite, operárias, sociais, intelectuais, esportivas, militares, artísticas, empresariais,
publicitárias, morais, sei lá mais o quê. Precisam ter convivência harmônica, unidas
pela noção viva que a primeira entre elas é a elite moral. Enquanto o Brasil não
tiver um sem-número de corpos sociais que, em cada âmbito, estimulem o
movimento de ascensão, nosso futuro será de chorar. Boa parte da ascensão vem
da admiração profunda pelos “role models” autênticos, faróis, a começar na
família. E da família embebendo até os mais recônditos desvãos da sociedade.
Nesse ambiente surgiria organicamente uma elite política benéfica ao País. A
representação estaria muito mais ligada à excelência que ao dinheiro, a táticas
eleitorais, a recursos publicitários. Assim e não batendo pé nos ataques bestas
às zelite, encontraríamos rumo.
Vou me fixar agora em um aspecto do assunto. Lamounier
fala de covardia, falta de elementar bom senso, inexistência de
responsabilidade pública na classe política brasileira. Tem razão, acrescento
um ponto. Lembrou-me livro, publicado em 1927, que fez furor na França e na
Europa, La trahison des clercs de
Julien Benda. Clercs aqui quer dizer
intelectual, homem das letras. Entre outros aspectos, Julien Benda falou ali da
tendência que tem o intelectual à covardia e à falsidade. O que nos empurra
para a necessidade dos bons hábitos morais. Subjacente a qualquer programa de
governo estão os bons costumes. Sem bons costumes, até o melhor programa
fracassará.
Por que digo tudo isso? Para propor uma medida
prática. Brasília vive imersa na corrupção, está ali nos dirigentes quase morto
o senso do bem comum (o segundo ponto do texto comentado). Apenas um exemplo: temos
60 mil assassinados por ano no país, nas estradas morrem cerca de 50 mil, 600
mil ficam lesionados, gravemente ou nem tanto. De cada dez motoristas parados
na virada do ano, seis foram autuados (ou sejam, apresentavam riscos ou estavam
ilegais). Não desperta horror, mas é um quadro terrível de desordem, indisciplina,
falência do poder público, acobertado pela impunidade e corrupção. Nesse
ambiente, como evitar o complexo do vira-latas? Pelo menos tentemos votar
direito (moralidade + iniciativa privada), as eleições estão na porta. E procurar
que outros em nosso círculo de relações também o façam. Já seria um bom começo.
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