terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A voz que clama no deserto

A voz que clama no deserto

Péricles Capanema

Sempre me chamou a atenção a resposta de são João Batista aos enviados dos fariseus. À pergunta: “Que dizes de ti mesmo? Quem és, pois, para que possamos dar resposta aos que nos enviaram?”, ele evitou começar pelo mais natural: “Sou o filho de Zacarias”. Zacarias, sacerdote conhecido em Jerusalém, pertencia à elite sacerdotal. Era boa abertura. Ele pôs de lado a estrada fácil e começou pelo enunciado da missão: “Eu sou a voz que clama no deserto”.

Sei, é conhecido, o Evangelista quis enfatizar a ligação do homem com profecias bíblicas, em especial Isaias: “Voz que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai na solidão as veredas do nosso Deus.” João se apresentava tão-somente como o Precursor do Messias, anunciado por Isaias.

Mas eu tenho aqui outro intento, passar ao lado de fatos já bem analisados e, por uma vez, desviar a atenção para aspectos pouco destacados. Quem tem alguma coisa a anunciar vai para praças com multidões, miolos de cidades, encruzilhadas muito percorridas. Não se esconde em um deserto, onde quase ninguém mora, ainda que não distante do rio Jordão, pois são João nele batizava. Clamar ali? À primeira vista, pouca gente iria ouvi-lo, fracasso certo. Não aconteceu.

Ficou conhecido, arrebanhou gente, teve seguidores, virou pregador célebre naquele meio. Pelo menos dois de seus discípulos seguiram a Cristo. Um foi o apóstolo santo André, irmão de são Pedro. Foi atrás do irmão e o levou a Nosso Senhor. E ali mesmo foi proclamado futuro Papa: “Tu és Simão, filho de João, serás chamado Cefas (que quer dizer pedra)”. Por meio de são João, o futuro primeiro Papa foi encontrado. Com tudo o que daí decorreu.

Para muitos de seus contemporâneos teve fracassos, até o último, definitivo: perdeu a cabeça ▬ literalmente e não metaforicamente, manteve-a fria ▬, por causa de uma adúltera. Assim é a história. Alimentando-se de mel silvestre, vestido com pele de carneiro, asceta, voz poderosa, o filho de santa Isabel devia chamar muito a atenção. Até Herodes, tetrarca da Galileia, rei sibarita, gostava de ouvi-lo. E levava séquito. Nele estava, para presenciar o espetáculo, Herodíades, mulher do irmão Felipe, com quem Herodes passara a viver pública e escandalosamente.

João não se calou: “Não te é lícito ter a mulher de teu irmão”. Desvairada pelas contínuas chibatadas morais, a mulher logrou que o amante mandasse prender são João. Mas não conseguia a morte. Era demais. Herodes, fraco e devasso, tinha traços retos. “Herodes temia João, sabendo que era varão justo e santo; e defendia-o, e pelo seu conselho fazia muitas coisas, e ouvia-o de boa vontade”.

Situação de desfecho indeciso, mas raras vezes os fracos de vontade se opõem vitoriosamente aos ruins de vontade forte. Houve a festança do aniversário do déspota, patuscada com bebedeira, música e danças. O número de dança de Salomé, filha de Herodíades, fascinou o tetrarca que, no meio dos vapores etílicos, disse à moça: “Pede-me o que quiseres e eu to darei e juro-lhe: tudo o que me pedires te darei, ainda que seja a metade de meu reino”. A dançarina buscou conselho com a mãe e o obteve imediato: “A cabeça de João Batista”. Herodes entristeceu-se, o pedido estava fora da conta. Mas mesmo assim mandou assassinar João Batista e a cabeça em bandeja foi oferecida a Salomé.

João Batista era primo de Nosso Senhor, que o glorificou: “Que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Mas, que fostes ver? Um homem vestido de roupas finas? Mas os que vestem roupas finas vivem nos palácios dos reis. Então, que fostes ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e ainda mais do que profeta. Na verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não apareceu nenhum maior do que João, o Batista.”

Nunca encenou. A vida de são João evidencia o vazio atroz das representações, mesmo as supostamente virtuosas. Ele tinha um grande fato diante de si: o Messias estava entre eles. O povo, para recebê-lo bem, precisava antes de tudo de boas disposições. E são João  Batista ia direto aos pontos fundamentais, cuja falta impediria todo o resto. Pregava a mudança de vida e a penitência. Tenham vida direita, arrependam-se dos pecados, façam penitência.

Clamava no deserto, possivelmente pouco ouvido. Pregava verdades de restauração austera, onde era difícil até a vida animal. Por que procurar os centros das cidades? Não era ali o seu meio. Nada prometia como retorno imediato. E para tal não buscava o apoio dos homens nem das realidades humanas. Por que lembrar que era de família conhecida em Jerusalém? Por que cocorar Herodes, o rei? Tinha um caminho reto e era por ali que andaria. O Natal está cheio de lições assim. Uma delas, nascer o Salvador numa gruta, e ser abrigado numa manjedoura, utilizada pela criação.


Quanto tudo parecer perdido, se o dever indicar, mesmo sem apoios, é preciso continuar a clamar no deserto. Vai dar certo, deu certo com são João. A régua da vida sobrenatural é diferente da que mede as realidades naturais.

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