O Brasil carcará
Péricles Capanema
Procurava subsídios para artigo e encontrei aos montes
o que não esperava. Foi assim. Em vez de fixar a atenção apenas nas colaborações
para os sites políticos das mais variadas orientações, voltei-a para a seção de
comentários. Deparei-me com o horror. Mares de opiniões pavorosas pela
irreflexão, superficialidade, insciência, despropósito, primarismo e
boçalidade; aqui e ali, pérolas nos brejos, observações inteligentes. Aproveitei
o embalo e, para verificar se o fenômeno era generalizado, fui espiar por alto repercussões
em sites de futebol, mundo do espetáculo e alguma coisa mais. Mesma coisa. Propositalmente
deixo de lado o enorme monturo da linguagem chula e dos palavrões. Não
recomendo a peregrinação deprimente.
Lembrei-me quase automaticamente de desabusadas e já
antigas ponderações de Nelson Rodrigues: “Antes, o silêncio era dos imbecis,
hoje são os melhores que emudecem. Até o século 19 o idiota era apenas o idiota
e como tal se comportava. E o primeiro a saber-se idiota era o próprio idiota.
Não tinha ilusões. Aquele sujeito que antes limitava-se a babar na gravata
passou a existir socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente.
Houve, em toda parte, a explosão triunfal dos idiotas. Outrora, os melhores
pensavam pelos idiotas, hoje, os idiotas pensam pelos melhores”.
A lógica empurra o jornalista para a conclusão: “O
grande acontecimento do século [20] foi a ascensão espantosa e fulminante do
idiota”.
Existiriam aos milhares, mas não vou memorar casos
engraçados, nem piadas sobre a idiotice. Bastaria empilhar trechos dos
improvisos, qualquer deles, da ex-presidente Dilma Rousseff para provar pela
evidência como andava certo Nelson Rodrigues. Um só, em Nova York. Ali, logo
depois do discurso inaugural da assembleia da ONU, feito pelo Brasil, achando
que dava o grande, disparando conselhos, procurando impressionar públicos de
outros países, assim se saiu a nossa então Presidente: “Até agora, até agora, a
energia hidroelétrica é a mais barata. Em termos que ela dura, da sua
manutenção e também pelo fato da água ser gratuita. E da gente podê estocá. O
vento podia ser isso tamém, mais ocê num conseguiu ainda tecnologia pa estocá
vento. Então, se a contribuição dos outros países, vamos supor que seja
desenvolver uma tecnologia que seja capaz de na eólica estocá, ter uma forma
docê estocá, porque o vento, ele é diferente em horas do dia. Então vamos supor
que vente mais à noite, cumé que eu faria para estocá isso? Hoje, nós usamos as
linhas de transmissão, cê joga de lá pra cá, de lá pra lá pra podê capturá isso”.
A nossa Presidente, em golpe de genialidade, na exposição solicitava aos outros
países que desenvolvessem tecnologia para estocar vento.
Repito, não é exceção, é apenas exemplo delirante (nada
no trecho tem pé nem cabeça) de fenômeno generalizado. Disparates desse nível
intelectual se encontram aos milhões em comentários na rede sobre os mais
diversos temas. De fato, lá tem coisa pior. De irmãos nossos, brasileiros,
enfim, e até de boa orientação. E, como a ex-presidente, arrogantes,
pretensiosos e autoconfiantes.
Assim, não convido para rir, o riso seria ▬ de novo
Nelson ▬ o disfarce de mágoa incurável, são retratos de nossa decadência. “Assim
é o brasileiro, tem sempre uma piada fulminante, não temos dinheiro, mas temos
a anedota”, outra observação do escritor recifense.
Tudo isso está muito entranhado no Brasil, arrancar
tais raízes demanda décadas (com otimismo). E será nesse ambiente que se darão
as eleições de 2018. Então, com realismo, temos de nos preparar para o pior, fazendo
tudo ao nosso alcance para que tal não ocorra.
Só outros hábitos nos tirariam do buraco. Lembro
alguns. Observação minuciosa, paciente e aplicada da realidade. E depois, com
base no material trabalhado e nas leituras, refletir com humildade,
despretensão, serenidade. Opinar? Sim e muito. Mas tão-somente quando tiver
alguma coisa de realmente útil para o enriquecimento do debate, mesmo os
domésticos. Já seria um começo.
A generalizada atmosfera de excitação, caldo de cultura
para opiniões definitivas e bestas, traz logo após o abatimento e a desorientação.
Daí escorrega para o irrealismo, a subserviência a clichês ocos e o desastre. Fracasso
não só pessoal, já seria lamentável, mas do Brasil. Em especial vale para os
jovens, e lá vou eu atrás de outro dito do grande dramaturgo: “Se o homem de
uma maneira geral tem vocação para a escravidão, o jovem tem uma vocação ainda
maior. O jovem, justamente por ser mais agressivo e ter uma potencialidade mais
generosa é muito suscetível ao totalitarismo. A vocação do jovem para o
totalitarismo, para a intolerância, é enorme. Eu recomendo aos jovens,
envelheçam depressa.”
Enquanto lia a seção dos leitores de vários sites,
irritantemente me voltava à memória o refrão de conhecida música “Carcará,
pega, mata e come”. Magro, feioso e voraz, um solidéu de penas pretas na
cabeça, o pássaro carniceiro só sabe pegar, matar e devorar. Na paisagem
sáfara, lá fica ele no alto, indiferente a tudo, menos às presas. Desce rápido
e as estraçalha. Pousa então em galhos das árvores, cabeça alta, bicão tosco
levantado. Logo depois volta a fazer o mesmo. É sua existência, bom símbolo de
cegueira para a realidade, pensamento mínimo e arrogância.
Termino com bonito, quase tocante, trecho de Nelson Rodrigues:
“O ser humano é um caso perdido. E falo isto com a mágoa de quem queria ser um
santo. O único ideal que eu teria na vida, se fosse possível realizá-lo, era
ser um santo. Eu queria ser um sujeito bom. A única coisa que eu admiro é o
bom, fora disto não admiro mais nada”. Programa para cada um, para o Brasil,
apropriado especialmente para dias do Natal.
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