Intolerância
Péricles Capanema
Intimidação inibitória. Outro subtítulo que poderia ser utilizado: a volta de
intolerância insolente. Disparados pelos próximos donos do poder, aumentam os pontiagudos
avisos aos navegantes, vem perseguição por aí; de ordem moral, profissional,
judiciária. Cancelamentos; estão na moda. Um dos avisos, a freada (várias já) nas
indicações para os tribunais superiores. Outro, a tentativa desastrada de minar
a indicação de Ilan Goldfajn para a presidência
do BID. Põe a nu o regresso do aparelhamento, a pertinácia em entupir o serviço
público de cupinchas e comparsas.
A pior face do PT. O PSDB, em enérgica nota, tendo como
motivo a canhestra manobra de impedir Ilan Goldfajn de assumir a presidência do
BID (posição vantajosa para o Brasil), advertiu sobre o retorno da gestão autoritária,
vício enraizado, antes mesmo da posse ▬ tais vezos demolidores trazem à memória
a fábula do escorpião carregado pelo sapo; a picada mortal era inevitável, estava
na natureza dele: “Ao boicotar a candidatura de Ilan Goldfajn à
diretoria do BID, o ex-ministro Guido Mantega, além de atropelar os trâmites da
instituição, mostra a pior face do PT: a incompreensão de certos processos
democráticos. Profissional respeitado [...] foi indicado por um governo
legitimamente eleito e o futuro governo deve respeitar a decisão”. Mais
exatamente, não foi incompreensão, foi contestação. Quando os referidos
processos não o favorecem, joga-os pela janela.
Patrulhas ideológicas eriçadas. Mas pretendo falar de outra coisa, à primeira vista
pequena, contudo, vista com lupa, enormemente sintomática, pois é exemplo revelador
da intolerância desvairada ▬ “ex pede Herculem”.
Chicotadas prenunciativas. Eliane Catanhêde, comentarista da GloboNews, em
programa televisivo, de forma natural e argumentada, examinou atitudes recentes
de Janja (Rosângela) esposa de Lula. consideradas inadequadas pela jornalista,
por excessivas e inapropriadas. Apontou despropósitos, o que deixou fora de si
os patrulheiros lulopetistas. A profissional de imprensa estava na função dela;
só sugeriu mais discrição e comedimento. Foi o que bastou. Tomou saraivada de
lambadas da intolerância eriçada. Subiu nas redes a hashtag “Respeita a Janja”.
Ela não havia sido desrespeitada pela jornalista, diga-se de passagem.
O leitor que julgue. O (a) leitor (a) que julgue a sova pedagógica, veja se
tem alguma proporção com o fato real. Mas serviu como aviso; que tenha efeito
nulo ou contraproducente. Então, para facilitar o juízo objetivo e
circunstanciado, segue o comentário inteiro da d. Eliane: “O presidente é o
Lula. Tudo o que é excesso pode criar problemas. Tudo tem limite. Tudo o que
excede pode dar problema. E há um incômodo com o excesso de espaço que a Janja
tem ocupado. Ontem, por exemplo, quando Lula fez aquele discurso em que ele
chorou quando falou de fome, quando derrapou ao desqualificar a estabilidade
fiscal, a responsabilidade fiscal, ela estava ali sentada. Ela não é presidente
do PT, não é líder política, ela não é presidente de partido. Enfim, por que
que ela estava ali? Qual é o papel da primeira-dama? A gente tem vários
exemplos de primeiras-damas, desde a ditadura militar, dona Yolanda Costa e
Silva, super maquiada, super artificial, tinha a mulher do Geisel, que era
muito discreta, dona de casa. Em compensação, ninguém esqueceu a Rosane Collor
jogando a aliança fora, fazendo confusão, todo dia tinha briga, e diziam que
ela fazia, sei lá, coisas religiosas meio estranhas na Casa da Dinda, ou seja,
isto não é bom. Eu acho que um bom exemplo de primeira-dama foi a Ruth Cardoso
que, como a Janja, tinha um brilho próprio, era uma professora universitária,
era uma mulher super respeitada na área dela, fundou Comunidade Solidária. Mas
ela não tinha protagonismo, ela não tinha voz nas decisões políticas. Se tinha,
era a quatro chaves no quarto do casal. Ou seja, já incomoda sim. Porque ela
vai começar a participar de reunião, já começou a participar de reunião, já vai
dar palpite e daqui a pouco vai dizer, esse pode ser ministro, esse aqui não
pode. Isto dá confusão. Se é assim na transição, imagina no governo”. Foi o que
disse.
Desprezível. Imaginem,
d. Eliane ousou educadamente expor reservas, crime de lesa-majestade. Gleisi
Hoffmann, presidente do PT, rapidamente divulgou nota ácida: “Me apavora o
machismo incrustado na cabeça de mulheres ditas esclarecidas, onde estereótipo
dos papéis delegados a nós é o importante. Desprezível fala de Eliane Cantanhêde
s/ @JanjaLula.Ter
opinião e participação política é direito de TODAS nós mulheres! Sem essa de
primeira-dama”. Desprezível, sabemos, está no Dicionário Informal, tem como
sinônimos abjeto, asqueroso, ignóbil, infame, imundo, hediondo, sórdido,
nojento, degradante, vergonhoso. Paro por aqui. Algum desses qualificativos
poderia ser aplicado adequadamente ao comentário sereno da d. Eliane? A
deputada Gleisi Hoffman, como ela confessou, ficou apavorada com o comentário.
É caso de pavor? A Secretaria Nacional de Mulheres do PT foi atrás, disparou no
mesmo alvo com nota oficial de repúdio, afirmando ser contra qualquer “tipo de
violência”. No caso, a d. Janja sofreu violência? Nenhuma. Dois exemplos,
respigados entre as centenas de ataques que Catanhêde sofreu na imprensa e nas
redes, em que avultaram, ter outros, para tristezaz nossa, a grosseria, arrogância,
petulância, desdém, indigência intelectual.
“No opposition, Thomas”. Tudo isso aviva na imaginação cena conhecida do filme “A
man for all seasons” (em português “O homem que não vendeu sua alma”) em que
Henrique VIII adverte várias vezes a santo Tomás Morus com o “no opposition,
Thomas”. O santo foi decapitado por ordem do monarca pela suposta oposição muda
que lhe teria feito. Nem o mutismo lhe foi tolerado.
Educação por admiração, imitação e osmose. Educação nunca foi nem é principalmente instrução ▬
essencial embora. É ainda formação do caráter, exercício de hábitos, agudizar
inteligência, fortalecer a vontade, ornar com mais sensíveis antenas as
múltiplas potencialidades da sensibilidade. Estimular ações nessa direção
constituem maneiras superiores de governar, altamente favorecedoras do bem comum;
avanços civilizatórios inestimáveis. Retorno à matéria imediata. A d. Janja, a
d. Elaine, a deputada Gleisi são mulheres com presença na vida pública. A
Secretaria Nacional de Mulheres do PT, igualmente presente no Brasil que se
publica, trata de assuntos femininos. É incoercível, por analogia, o espírito é
solicitado para cenas em que haja notável presença feminina, aqui e alhures,
não importa a esfera e âmbito de influência. De imediato, aa mais chamativa. Há
pouco faleceu a rainha Elisabeth II (1926-2022), das mais importantes e
emblemáticas figuras femininas no século XX e XXI. Exerceu com maestria, além
das funções institucionais do cargo, uma forma de governo crescentemente
valorizada, a exemplaridade. Exemplaridade, muito relacionada com admiração, imitação
e osmose.
Exemplaridade. Tratar hoje de governo e empoderamento (palavra em
moda) sem colocar o centro a exemplaridade transluz sintoma claro de arcaísmo. É
a região da repressão ao conhecimento oxigenador, pântano de concepções retrógradas,
enfim; obstáculo a avanços civilizatórios. Infelizmente, e é sintomático, nas
reações furibundas acima elencadas (e em outras de matriz parecida) nunca
apareceu este aspecto: governar é também dar bom exemplo e, por esse meio,
formar personalidades de valor. E é o principal. Javier Gomá Lanzón, grande
erudito espanhol, especialista no tema, observa a respeito: “O espaço público está
cimentado sobre a exemplaridade, esse é seu cenário mais genuíno e próprio. Só
o exemplo prega de forma eficiente”. Volto a Elisabeth II. Às mulheres de sua família. Nas últimas
décadas, com delicadeza e tato, inspirando comportamentos, despertando anseios,
consolidando convicções, enfim, formando personalidades, em atuação pautada,
repito, por propósito, discrição e educação (e pelas atitudes evidenciando, a ‘contrario
sensu’, o grave prejuízo para as
relações sociais de modos encharcados de arrogância, grosseria, desdém e
prepotência) três mulheres se fizeram credoras de forma especial da gratidão do
Reino Unido: a rainha Elisabeth, sua mãe, Queen Mother (1900-2002) e sua avó, Queen
Mary (1867-1953). Vale para elas, vale para qualquer um não importa a posição
que ocupe.
Bom exemplo como bússola. Quando o rei Jorge VI faleceu em 1952, Elisabeth II,
agora rainha, recebeu carta da avó paterna (Queen Mary), lembrando-lhe o dever:
“Caríssima Lilibeth, você deve estar devastada como eu estou pela perda. Contudo,
você deve colocar estes sentimentos em segundo plano diante das obrigações do
dever. A dor pela morte de seu pai [filho da missivista] será sentida
imensamente. Seu povo precisará de sua força e liderança”. Recorda à neta, existem
duas Elisabeths, a esposa casada com Philip Mountbatten, o duque de Edinburgo, e
a Elisabeth Regina [Elisabeth Rainha].
As duas Elisabeths estarão frequentemente em choque, observa: “A Coroa
deve vencer, sempre vencer”. Conselhos de 1952.
Inspiração universal. A digna conduta das três mulheres, cuja compostura
luminosa atravessou sob intenso escrutínio, mais de cem anos [1867 a 2022], apresentou
sem-número de exemplos didáticos, que ecoavam beneficamente no mundo inteiro. Contribuíram
em grau dificilmente aferível para o aperfeiçoamento das relações humanas, facilitaram
a harmonia e a paz social. Assim se constrói, em larga medida, o bem comum. Para
finalizar, o procedimento ao longo de décadas das três grandes damas inglesas tem,
quase nem precisaria acentuar, enorme atualidade para o Brasil, país onde ministro
do Supremo se volta desdenhoso para simples particular e dispara com soberba
vulgaridade, arrogância e prepotência: “Perdeu, mané, não amola”. A atitude
inesperada, mesmo para público já acostumado com insolência debochada, põe a nu
o retrocesso em expansão que nos ameaça. Vivemos em país onde avança o retrocesso,
corremos riscos de nos transformarmos em vanguardas do atraso..
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