Escravos do óbvio
Péricles Capanema
Verdades apunhalam. O que traz prestígio? Tanta coisa. Uma delas, saber espalhar
otimismo, mesmo sem base sólida? Pode acontecer; temos o conhecido “keep
smiling”. Prometer êxitos, ainda que altamente improváveis? Também. Livros de
autoajuda e defender o tal pensamento positivo são formas de prometer êxitos, quase
sempre fumaças da imaginação; contudo, viraram moda, prestigiam em geral quem
os maneja bem. Ser leniente com ameaças crescentes? Aconteceu historicamente e
às vezes rendeu popularidade. Abaixo, vou tratar de um homem público
prestigiado no fim da vida, mas que passou anos anunciando as piores
perspectivas, vaticinando derrotas, recriminando a leniência. Não escondeu o
sacrifício provável, não ocultou traços vergonhosos de seu meio social,
advertiu contra a desídia na consideração do perigo. No fim do caminho, ficou
célebre, ninguém, a muitos títulos, teve maior prestígio que ele. Até hoje.
Enfiar a cabeça na areia. Repete-se muito, diante da ameaça, o avestruz enfia a
cabeça na areia. É falso, a ave foge quando se vê em apuros; é veloz, tem
pernas imensas, passadas largas. Não importa o fato da vida selvagem, a imagem expressiva
se enraizou no imaginário popular, o uso a consagrou. Diante da ameaça crescente
do hitlerismo, boa parte, se não a grossa maioria, da classe dirigente inglesa
escolheu enfiar a cabeça na areia: foi otimista, crédula e leniente. Como muita
gente agora no Brasil está enfiando a cabeça quente na areia fresquinha,
evitando olhar de frente o perigo que cresce. Vou tratar em traços muito gerais
de um homem público que foi banido dos círculos de prestígio e desterrado dos
gabinetes de decisão por anos a fio em sua própria terra por haver escolhido manter
o pescoço erguido, a cabeça alta e os olhos abertos. A verdade parecia dura,
amarga, decepcionante e trágica. Depois concluirei voltando o olhar para o
Brasil. Será artigo de muitas e longas citações.
O bom exemplo inglês. Vamos ao assunto. Foi o que, em amplíssima proporção, fez
Winston Churchill (1874-1965). Padeceu degredo interno, bebeu o cálice de um “émigré
à l’intérieur”, exilado entre os seus por muitos anos, em especial no seu
partido e nos meios intelectuais e sociais que frequentava, até que, em
situação desesperadora, a Inglaterra se voltou para o experiente homem público,
colocou-lhe nas mãos as rédeas do governo e lhe confiou seu destino por cinco
anos terríveis (maio de 1940 a maio de 1945). Expatriado moralmente, quando pareceu
um pessimista obstinado, passou a ser visto anos depois como homem de lucidez
extraordinária.
Respigando exemplos. Leio de momento biografia elucidativa de Winston
Churchill. Quase 1.300 páginas, trabalho fruto de pesquisa séria, tem maturidade
e profundidade de análise, minuciosa e densamente informativa. Por alguns
críticos vem sendo considerada a melhor obra até hoje escrita sobre a vida do
estadista inglês. Andrew Roberts é o autor, o título em português “Churchill,
caminhando com o destino” (Churchill: walking with destiny, em inglês), primeira
edição em 2018.
Ostracismo. O
que agora pretendo destacar é que, por muitos anos, quase vinte, em especial nos
seis anos que precederam a 2ª Guerra Mundial, qualificados pelo autor de “anos
de desterro”, Churchill foi um pária moral; de outro modo, isolado, banido e
proscrito em seu próprio país. De forma especial, entre políticos e eleitorado
conservadores. O homem de Estado passou boa parte de sua vida pública relegado
a cruel ostracismo por razão simples: era objetivo, não fantasiava, foi escravo
do óbvio. Deixarei aqui apenas um exemplo. Hitler queria a anexação dos sudetos,
região tcheca habitada majoritariamente por população de origem alemã. Winston
Churchill preconizava a resistência, a aliança com a Tchecoslováquia como forma
de evitar a entrega e ainda a guerra. Advertiu na Câmara dos Comuns em março de
1938: “Se não enfrentarmos os ditadores agora, estaremos apenas preparando o
dia em que teremos de enfrentá-los em condições muito mais adversas. Dois anos
atrás era seguro, três anos atrás era fácil, e quatro anos atrás um simples
despacho poderia ter retificado a situação. Mas onde estaremos daqui a um ano?
Onde estaremos em 1940?”. A incúria generalizada levou a Inglaterra à guerra
mundial.
E o vento levou. Continuou: “Tenho visto esta famosa ilha descer sem
moderação nem prudência pela escada que leva a um abismo tenebroso. No começo é
uma bela escadaria larga, mas, um pouco depois, termina o tapete. Um pouco mais
adiante, só há as lajes do pavimento. E ainda um pouco mais adiante, elas se
quebram sob os pés de vocês”. Adverte: [Os historiadores] nunca entenderão como
foi que uma nação vitoriosa, com tudo nas mãos, tolerou ser subjugada e que se
jogasse fora tudo o que ganhara com imensurável sacrifício e absoluta vitória ▬
e o vento levou”.
Total e absoluta derrota. Pouco depois, setembro de 1938, o primeiro-ministro Neville
Chamberlain foi a Berlim e de lá retornou com um tratado de paz que
supostamente garantiria a paz na Europa por uma geração. Foi aclamado no país
inteiro, popularidade lá em cima. Comentou com suas irmãs, Hitler “era um homem
em quem se podia confiar, quando dava sua palavra; sou o homem mais popular na
Alemanha”. Minado pela popularidade esmagadora de Chamberlain e sufocado pela esperança
aliciante da paz duradoura, Winston Churchill, na ocasião apreço público muito
baixo, iniciou discurso na Câmara dos Comuns com a seguinte frase: “Quero,
portanto, começar dizendo a coisa mais impopular e mais indesejável. Começarei
dizendo o que todos gostariam de ignorar ou esquecer, mas que, mesmo assim, precisa
ser declarado, a saber, que sofremos uma total e absoluta derrota”. Estava
certo, era derrota acachapante. Chamberlain hoje afundou no desprezo público
por sua conduta. Naqueles dias, não, vivia nos galarins; Churchill se arrastava
nos grotões, bradando verdades que apunhalavam, ainda que pouco levadas em
conta.
O óbvio ululante. Dou um cavalo de pau na narrativa. Aparentemente. O fio
será mantido. Saio da Inglaterra de 1938, vou para o Rio de Janeiro. Ali viveu
e morreu Nelson Rodrigues (1912 – 1980). O célebre jornalista criou e
popularizou a expressão “óbvio ululante”, que até hoje frequenta os meios de
divulgação. Certa vez, lá pelos anos 70, na crônica “Vai falar o óbvio
ululante” escreveu ele que nada tinha feito de relevante em sua vida até que,
imaginando uma pergunta de Deus, veio-lhe iluminação súbita: “Eu promovi e
consagrei o óbvio. aí está o grande feito de toda a minha vida. O óbvio vivia
relegado a uma posição secundária ou nula. Fui eu que, com minha pertinácia, arranquei-o
da obscuridade, da insignificância. Hoje, o óbvio tem trânsito em todas as
áreas. O óbvio já adquiriu personalidade internacional. Todavia, ao apresentar o
óbvio, eu fiz a seguinte e fundamental ressalva ▬ ninguém o enxerga. Milhões de
sujeitos são cegos para ele. E acrescentei: ‘Gênio, santo ou profeta é aquele
que enxerga o óbvio’”.
Remate. Tudo o que ficou para trás foi para
permitir maior facilidade na constatação óbvia. Repito: óbvia. Cresce o
desconcerto da opinião letrada do Brasil (a que acompanha noticiário) com os
sintomas cada vez mais preocupantes do rumo a ser tomado pelo próximo governo
petista, que só venceu apertadas eleições pela dose maciça de credibilidade e
respeitabilidade gratuitamente a ele oferecida, sem nenhuma contrapartida
(cheques em branco em profusão) por Geraldo Alckmin, Meirelles, Malan, FHC,
Armínio Fraga e dezenas de outras figuras de influência e orientação parecida. Os
cheques entregues em br nco começam a ser preenchidos e compensados. Provocam
estranhezas, recusas, até reações contundentes. A situação vai piorar, é so
esperar. Em artigo postado em 7 de outubro passado, intitulado “Embuste”
constatei o óbvio (se preferirem expus o óbvio): “Outra razão alegada pelos
adesistas (kerenskys de 2022), a expectativa de condução responsável da
economia, mesmo com atropelos na prática democrática. Haverá tal condução?
Análise madura, enraizada na longa e repetida experiência anterior, padecida pelo
povo em especial pelos mais desassistidos, bem como na capivara amazônica de partidos
com inspiração semelhante, apontam para destruição dos fundamentos saudáveis da
economia, três dos quais, já se vê, inexistirão certamente: âncora fiscal,
segurança jurídica, atração de investimentos. Daí, menos emprego, menos renda,
salários mais baixos. O que se ouviu até agora da parte de economistas e
figuras do setor financeiro foi decepcionante, para dizer o mínimo, era, no
bruto, a entrega incauta de um cheque em branco. Na prática, a coligação
lulista recebe os apoios, mas continua nadando no pântano das ambiguidades.
Nenhuma clareza, nenhum compromisso formal”.
Favorecimento do retrocesso, do atraso
e do obscurantismo. Afirmei
então a seguir, era favorecimento do retrocesso, atraso e obscurantismo, características
da possível nova administração: “A ausência de limpidez, a fuga célere dos
esclarecimentos, a obscuridade empregada como arma política, a persistente e
difusa ambiguidade, a manutenção obstinada incerteza quanto aos rumos, a
confusão em que potenciais aliados são mantidos, a opacidade cultivada (não
transparência) geram profunda suspeição quanto à conduta futura, degradam a
vida pública e adensam o ambiente obscurantista, já pesadamente tóxico. São
retrocessos na dura caminhada nacional rumo a uma vida pública decente. Esta
ambiguidade, contudo, no caso esconde clareza solar, facilmente perceptível
para observadores atentos. As razões últimas do procedimento petista são diáfanas:
já existem os compromissos e as intenções e eles não serão abandonados”.
Clareza solar. Clareza solar iluminava a manobra, para olhares
experimentados estavaa diáfano o ar, as conclusões brotavam do óbvio ululante: existiam
compromissos, existiam intenções, mas eles estavam ocultos para os novos e simplórios
(qualificação minimalista) aliados. Só não seriam enunciados (nem a pau) por inviabilizar
possibilidades eleitorais de vitória da coligação petista. Começam agora a ser implantados
com a caça já capturada, ainda que com enunciado discreto e paulatino. Desvelados
pela aplicação clara, ainda que incipiente, passam a ser percebidos por magotes
que antes se encantou em encenar o apoio otimista, dava prestígio e
popularidade, papel semelhante ao desempenhado por Neville Chamberlain. Ainda
há tempo para reagir, mas os custos serão maiores. Aumentarão a cada dia que
passa. Sejamos escravos do óbvio, mesmo quando impopular.
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