sábado, 12 de novembro de 2022

Escravos do óbvio

 

Escravos do óbvio

 

Péricles Capanema

 

Verdades apunhalam. O que traz prestígio? Tanta coisa. Uma delas, saber espalhar otimismo, mesmo sem base sólida? Pode acontecer; temos o conhecido “keep smiling”. Prometer êxitos, ainda que altamente improváveis? Também. Livros de autoajuda e defender o tal pensamento positivo são formas de prometer êxitos, quase sempre fumaças da imaginação; contudo, viraram moda, prestigiam em geral quem os maneja bem. Ser leniente com ameaças crescentes? Aconteceu historicamente e às vezes rendeu popularidade. Abaixo, vou tratar de um homem público prestigiado no fim da vida, mas que passou anos anunciando as piores perspectivas, vaticinando derrotas, recriminando a leniência. Não escondeu o sacrifício provável, não ocultou traços vergonhosos de seu meio social, advertiu contra a desídia na consideração do perigo. No fim do caminho, ficou célebre, ninguém, a muitos títulos, teve maior prestígio que ele. Até hoje.

 

Enfiar a cabeça na areia. Repete-se muito, diante da ameaça, o avestruz enfia a cabeça na areia. É falso, a ave foge quando se vê em apuros; é veloz, tem pernas imensas, passadas largas. Não importa o fato da vida selvagem, a imagem expressiva se enraizou no imaginário popular, o uso a consagrou. Diante da ameaça crescente do hitlerismo, boa parte, se não a grossa maioria, da classe dirigente inglesa escolheu enfiar a cabeça na areia: foi otimista, crédula e leniente. Como muita gente agora no Brasil está enfiando a cabeça quente na areia fresquinha, evitando olhar de frente o perigo que cresce. Vou tratar em traços muito gerais de um homem público que foi banido dos círculos de prestígio e desterrado dos gabinetes de decisão por anos a fio em sua própria terra por haver escolhido manter o pescoço erguido, a cabeça alta e os olhos abertos. A verdade parecia dura, amarga, decepcionante e trágica. Depois concluirei voltando o olhar para o Brasil. Será artigo de muitas e longas citações.

 

O bom exemplo inglês. Vamos ao assunto. Foi o que, em amplíssima proporção, fez Winston Churchill (1874-1965). Padeceu degredo interno, bebeu o cálice de um “émigré à l’intérieur”, exilado entre os seus por muitos anos, em especial no seu partido e nos meios intelectuais e sociais que frequentava, até que, em situação desesperadora, a Inglaterra se voltou para o experiente homem público, colocou-lhe nas mãos as rédeas do governo e lhe confiou seu destino por cinco anos terríveis (maio de 1940 a maio de 1945). Expatriado moralmente, quando pareceu um pessimista obstinado, passou a ser visto anos depois como homem de lucidez extraordinária.

 

Respigando exemplos. Leio de momento biografia elucidativa de Winston Churchill. Quase 1.300 páginas, trabalho fruto de pesquisa séria, tem maturidade e profundidade de análise, minuciosa e densamente informativa. Por alguns críticos vem sendo considerada a melhor obra até hoje escrita sobre a vida do estadista inglês. Andrew Roberts é o autor, o título em português “Churchill, caminhando com o destino” (Churchill: walking with destiny, em inglês), primeira edição em 2018.

 

Ostracismo. O que agora pretendo destacar é que, por muitos anos, quase vinte, em especial nos seis anos que precederam a 2ª Guerra Mundial, qualificados pelo autor de “anos de desterro”, Churchill foi um pária moral; de outro modo, isolado, banido e proscrito em seu próprio país. De forma especial, entre políticos e eleitorado conservadores. O homem de Estado passou boa parte de sua vida pública relegado a cruel ostracismo por razão simples: era objetivo, não fantasiava, foi escravo do óbvio. Deixarei aqui apenas um exemplo. Hitler queria a anexação dos sudetos, região tcheca habitada majoritariamente por população de origem alemã. Winston Churchill preconizava a resistência, a aliança com a Tchecoslováquia como forma de evitar a entrega e ainda a guerra. Advertiu na Câmara dos Comuns em março de 1938: “Se não enfrentarmos os ditadores agora, estaremos apenas preparando o dia em que teremos de enfrentá-los em condições muito mais adversas. Dois anos atrás era seguro, três anos atrás era fácil, e quatro anos atrás um simples despacho poderia ter retificado a situação. Mas onde estaremos daqui a um ano? Onde estaremos em 1940?”. A incúria generalizada levou a Inglaterra à guerra mundial.

 

E o vento levou. Continuou: “Tenho visto esta famosa ilha descer sem moderação nem prudência pela escada que leva a um abismo tenebroso. No começo é uma bela escadaria larga, mas, um pouco depois, termina o tapete. Um pouco mais adiante, só há as lajes do pavimento. E ainda um pouco mais adiante, elas se quebram sob os pés de vocês”. Adverte: [Os historiadores] nunca entenderão como foi que uma nação vitoriosa, com tudo nas mãos, tolerou ser subjugada e que se jogasse fora tudo o que ganhara com imensurável sacrifício e absoluta vitória ▬ e o vento levou”.

 

Total e absoluta derrota. Pouco depois, setembro de 1938, o primeiro-ministro Neville Chamberlain foi a Berlim e de lá retornou com um tratado de paz que supostamente garantiria a paz na Europa por uma geração. Foi aclamado no país inteiro, popularidade lá em cima. Comentou com suas irmãs, Hitler “era um homem em quem se podia confiar, quando dava sua palavra; sou o homem mais popular na Alemanha”. Minado pela popularidade esmagadora de Chamberlain e sufocado pela esperança aliciante da paz duradoura, Winston Churchill, na ocasião apreço público muito baixo, iniciou discurso na Câmara dos Comuns com a seguinte frase: “Quero, portanto, começar dizendo a coisa mais impopular e mais indesejável. Começarei dizendo o que todos gostariam de ignorar ou esquecer, mas que, mesmo assim, precisa ser declarado, a saber, que sofremos uma total e absoluta derrota”. Estava certo, era derrota acachapante. Chamberlain hoje afundou no desprezo público por sua conduta. Naqueles dias, não, vivia nos galarins; Churchill se arrastava nos grotões, bradando verdades que apunhalavam, ainda que pouco levadas em conta.

 

O óbvio ululante. Dou um cavalo de pau na narrativa. Aparentemente. O fio será mantido. Saio da Inglaterra de 1938, vou para o Rio de Janeiro. Ali viveu e morreu Nelson Rodrigues (1912 – 1980). O célebre jornalista criou e popularizou a expressão “óbvio ululante”, que até hoje frequenta os meios de divulgação. Certa vez, lá pelos anos 70, na crônica “Vai falar o óbvio ululante” escreveu ele que nada tinha feito de relevante em sua vida até que, imaginando uma pergunta de Deus, veio-lhe iluminação súbita: “Eu promovi e consagrei o óbvio. aí está o grande feito de toda a minha vida. O óbvio vivia relegado a uma posição secundária ou nula. Fui eu que, com minha pertinácia, arranquei-o da obscuridade, da insignificância. Hoje, o óbvio tem trânsito em todas as áreas. O óbvio já adquiriu personalidade internacional. Todavia, ao apresentar o óbvio, eu fiz a seguinte e fundamental ressalva ▬ ninguém o enxerga. Milhões de sujeitos são cegos para ele. E acrescentei: ‘Gênio, santo ou profeta é aquele que enxerga o óbvio’”.

 

Remate. Tudo o que ficou para trás foi para permitir maior facilidade na constatação óbvia. Repito: óbvia. Cresce o desconcerto da opinião letrada do Brasil (a que acompanha noticiário) com os sintomas cada vez mais preocupantes do rumo a ser tomado pelo próximo governo petista, que só venceu apertadas eleições pela dose maciça de credibilidade e respeitabilidade gratuitamente a ele oferecida, sem nenhuma contrapartida (cheques em branco em profusão) por Geraldo Alckmin, Meirelles, Malan, FHC, Armínio Fraga e dezenas de outras figuras de influência e orientação parecida. Os cheques entregues em br nco começam a ser preenchidos e compensados. Provocam estranhezas, recusas, até reações contundentes. A situação vai piorar, é so esperar. Em artigo postado em 7 de outubro passado, intitulado “Embuste” constatei o óbvio (se preferirem expus o óbvio): “Outra razão alegada pelos adesistas (kerenskys de 2022), a expectativa de condução responsável da economia, mesmo com atropelos na prática democrática. Haverá tal condução? Análise madura, enraizada na longa e repetida experiência anterior, padecida pelo povo em especial pelos mais desassistidos, bem como na capivara amazônica de partidos com inspiração semelhante, apontam para destruição dos fundamentos saudáveis da economia, três dos quais, já se vê, inexistirão certamente: âncora fiscal, segurança jurídica, atração de investimentos. Daí, menos emprego, menos renda, salários mais baixos. O que se ouviu até agora da parte de economistas e figuras do setor financeiro foi decepcionante, para dizer o mínimo, era, no bruto, a entrega incauta de um cheque em branco. Na prática, a coligação lulista recebe os apoios, mas continua nadando no pântano das ambiguidades. Nenhuma clareza, nenhum compromisso formal”.

 

Favorecimento do retrocesso, do atraso e do obscurantismo. Afirmei então a seguir, era favorecimento do retrocesso, atraso e obscurantismo, características da possível nova administração: “A ausência de limpidez, a fuga célere dos esclarecimentos, a obscuridade empregada como arma política, a persistente e difusa ambiguidade, a manutenção obstinada incerteza quanto aos rumos, a confusão em que potenciais aliados são mantidos, a opacidade cultivada (não transparência) geram profunda suspeição quanto à conduta futura, degradam a vida pública e adensam o ambiente obscurantista, já pesadamente tóxico. São retrocessos na dura caminhada nacional rumo a uma vida pública decente. Esta ambiguidade, contudo, no caso esconde clareza solar, facilmente perceptível para observadores atentos. As razões últimas do procedimento petista são diáfanas: já existem os compromissos e as intenções e eles não serão abandonados”.

 

Clareza solar. Clareza solar iluminava a manobra, para olhares experimentados estavaa diáfano o ar, as conclusões brotavam do óbvio ululante: existiam compromissos, existiam intenções, mas eles estavam ocultos para os novos e simplórios (qualificação minimalista) aliados. Só não seriam enunciados (nem a pau) por inviabilizar possibilidades eleitorais de vitória da coligação petista. Começam agora a ser implantados com a caça já capturada, ainda que com enunciado discreto e paulatino. Desvelados pela aplicação clara, ainda que incipiente, passam a ser percebidos por magotes que antes se encantou em encenar o apoio otimista, dava prestígio e popularidade, papel semelhante ao desempenhado por Neville Chamberlain. Ainda há tempo para reagir, mas os custos serão maiores. Aumentarão a cada dia que passa. Sejamos escravos do óbvio, mesmo quando impopular.

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