domingo, 19 de novembro de 2017

Pasmaceira e festança suicidas

Pasmaceira e festança suicidas

Péricles Capanema

“Quando a China acordar, o mundo tremerá”, frase atribuída a Napoleão, dita em 1816; em números redondos, faz duzentos anos. A China acordou. E o mundo não parece tremer. Ou, temeroso e já acovardado, finge não divisar o dragão no horizonte?

Melhorando, acontece de tudo, temos gente tremendo e pessoal festejando. E a maioria mundo afora? Desatenta. Sua atitude lembra a constatação de Aristides Lobo, ministro do Interior do governo provisório do marechal Deodoro, relatando o clima do 15 de novembro de 1889: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”.

Aqui opinião desatenta equivale a público bestializado. E, por cima, padecemos enorme propaganda para que a maioria, hoje insciente do despertar chinês, não comece a tremer. Mais, que a tremedeira não se metamorfoseie em reação salvadora.

Em catadupa isso me veio à mente ao ler detidamente o discurso de Xi Jinping, secretário-geral do Partido Comunista e presidente da China em 18 de outubro, pronunciado no 19º congresso do PCC (Partido Comunista Chinês). Prestação de contas, diretrizes, planos. O líder comunista, qualificado há pouco pelo Economist de “o homem mais poderoso do mundo” apontou em geral com clareza, às vezes de forma disfarçada, o que vem por aí.

O PC chinês mescla ditadura política, dirigismo econômico e forte nota nacionalista. Criou um Estado e está moldando uma sociedade apresentados como modelos, em especial para os países subdesenvolvidos. Para o Brasil, também, óbvio. Proclamou o chefe do comunismo chinês: “A nação chinesa conseguiu enorme transformação, levantou-se, tornou-se rica, está ficando forte. Está tornando realidade a perspectiva brilhante do rejuvenescimento. Mostra que o socialismo científico está cheio de vitalidade no século 21 chinês. O estandarte do socialismo com características chinesas drapeja alto e ufano diante de todos. Significa que o caminho, a teoria, o sistema e a cultura do socialismo com características chinesas continuaram se aperfeiçoando, abrindo estrada para que outros países em desenvolvimento também alcancem a modernização. Oferecemos uma opção nova para outros países e nações que pretendam acelerar seu desenvolvimento [...] Oferecemos a sabedoria e a abordagem chinesas na resolução dos problemas enfrentados pela humanidade”.

Na resolução dos problemas religiosos, aqui vai a fórmula dos déspotas ateus de Pequim: “Implementaremos inteiramente a política fundamental do Partido Comunista Chinês em matéria religiosa, manter o princípio de que as religiões na China devem ser chinesas em sua orientação e indicaremos o rumo às religiões de modo a que possam se adaptar à sociedade socialista”. Sem disfarces, as igrejas serão nacionais, harmônicas com o rumo do comunismo, apenas longa manus das políticas do governo e do Partido. Orientações da Santa Sé e do Vaticano, por exemplo, no máximo, só as permitidas e previamente filtradas.

Em matéria política, abaixo, nas palavras de Xi Jinping o modelo proposto ao Brasil, de fato ao mundo: “A China é um país socialista de ditadura democrática popular sob a liderança da classe trabalhadora”. Sua política de abertura será sujeita aos “Quatro Princípios Principais”: “Permanecer no socialismo, mantendo a ditadura democrática popular, a liderança do Partido Comunista da China o pensamento marxista-leninista e ainda o maoísta”. Inexiste dúvida quanto ao papel do Partido Comunista: “O que define o socialismo com características chinesas é a liderança do Partido Comunista da China. O Partido é a mais alta força da liderança política. [...] O Partido exerce liderança sobre todos os âmbitos da ação humana [...] É preciso trabalhar com afinco para manter a autoridade e a liderança centralizada e unificada do Comitê Central, e seguir minuciosamente o Comitê Central no pensamento, orientação política e ações”.

Na análise do quadro, algumas amostras. Quem sustenta o regime da Coreia do Norte é a China. A ajuda chinesa à ditadura comunista não é divulgada, mas todos sabem que é enorme. E a China boicota as sanções aplicadas à Coreia do Norte. Observadores têm qualificado Pyongyang de, na prática, mera extensão do governo de Pequim. Um outro sintoma. O AidData pesquisou ajuda oficial da China a 140 países de 2000 a 2014. No item Assistência Oficial ao Desenvolvimento o país que mais recebeu ajuda foi a ditadura comunista mais escancarada nas Américas, Cuba, 6,7 bilhões de dólares. E, hoje, a China é dos grandes apoios à Venezuela. De outro modo, nas palavras e nos atos, a China tem lado e não o esconde.

Passo ao Brasil. Setores importantes entre nós festejam o que a seguir relato apenas como exemplificação. A Oi, em recuperação judicial, é a terceira maior operadora do setor de telecomunicações da América do Sul. De momento, a mais importante proposta para a salvar de suas agruras veio da China Telecom, estatal chinesa, que pode ser a nova dona da Oi.

Outro exemplo. Em começos de novembro a FIESP promoveu reuniões do empresariado brasileiro com bancos chineses: Industrial and Commercial Bank of China, China Construction Bank, Agricultural Bank of China, Bank of China, Bank of Communications, seguradora Sinosure. Aos representantes do setor industrial brasileiro foram apresentadas novas oportunidades de negócios, bem como possibilidades de crédito com taxas mais baixas e prazos mais longos.

O Industrial and Commercial Bank of China, em ativos e valor de mercado é o maior banco do mundo. É estatal chinesa. O China Construction Bank em 2015 era o segundo maior banco do mundo. É estatal chinesa. O Agricultural Bank of China tem 320 milhões de clients. É estatal chinesa. O Bank of China é um dos cinco maiores bancos estatais da China. O Bank of Communications, estatal também, é outra empresa mamute estatal. A Sinosure, seguradora gigante, também é estatal chinesa.

Terceiro. O governo do Pará está promovendo turnês para atrair capitais. Só a Ferrovia Paraense, 1.312 quilômetros, exigirá investimentos de 14 bilhões de reais. O total de investimentos incluirá outros projetos de infraestrutura, e ainda aplicações em áreas como agronegócio e mineração. Uma comitiva chefiada pelo governador visitou Pequim em setembro e lá tratou das possibilidades da presença chinesa na economia do Estado. À frente das tratativas aparecem Chang Yunbo e Sun Ziyu, respectivamente presidente e vice-presidente da China Communications Construction Company (CCCC). Em Pequim, o último declarou: “Esse momento é bastante importante, pois aqui há outras empresas da China [...] que, ao conhecerem melhor o Pará, também poderão investir no Estado”. A China Communications Construction Company (CCCC), 100 mil funcionários, é estatal chinesa.

Mais um exemplo. Temos pela frente a provável privatização da Eletrobrás. Podem esperar, enxames de estatais chinesas disputando e vencendo os leilões. Deus queira esteja eu errado. Em 2017, até outubro, estima-se, a China terá investido R$35 bilhões no Brasil (compra de ativos, bem entendido). Repito, sou favorável às privatizações e ao capital estrangeiro entre nós. Mas não à presença avassaladora e crescente do Partido Comunista Chinês e do governo chinês como dono oculto [é um só o dono], mas indisfarçado, de enormes fatias da economia brasileira. Todos os diretores de todas essas estatais são pessoas de confiança do Partido Comunista e do governo chinês. Em termos mais claros, boa parte, se não a virtual totalidade, da alta direção delas é de membros graduados do Partido Comunista Chinês. São agentes ▬ lembro o conselheiro Acácio ▬, agirão sempre em sintonia com os interesses do Partido Comunista Chinês e do governo da China. Convém lembrar, o PCC tem 88 milhões de membros, oligarquia fundada em privilégios perversos, que tiraniza 1,4 bilhão de chineses.

Outrora, e incluo empréstimos concedidos até no Império, existem estudos começando em 1824, quando o governo ou o mercado eram financiados por bancos privados com sede na Europa ou nos Estados Unidos havia um berreiro ensurdecedor. Vendilhões, lacaios, entreguistas, sei lá mais o quê. O País estaria sendo reduzido à condição de colônia. Era capital privado, insisto, em volumes bem inferiores ao atual capital estatal chinês despejado no Brasil.

Hoje, nada de berreiro, só silêncio e louvaminhas. O PT se cala, certamente satisfeito com o rumo sempre estimulado por ele, nacionalistas de esquerda e até de direita se calam, industriais importantes festejam possibilidades de negócios, políticos de destaque anunciam maiores investimentos internos e mais exportação (emprego e renda melhorados). Insciência? Cumplicidade? Adormecimento? Em qual proporção? Sei lá. Qual o gás do dr. Ox do conto de Jules Verne, algo narcotiza a nação e faz generalizada a pasmaceira. E temo que em outros países do mundo esteja acontecendo o mesmo fenômeno e as mesmas reações.


Brasileiros com vivo amor a nosso futuro tremem de pavor (Napoleão acertou pelo menos quanto a uma minoria). Circunvagando o olhar, observam desolados e inconformados a passagem da farândola festeira dos que celebram ufanos a perda gradual da independência nacional rumo a um estado de efetivo protetorado. “Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”.

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