Corredeiras e remanso
Péricles Capanema
Iria examinar outro assunto, a documentação não chegou,
fica para próxima. Hoje relembrarei riqueza espiritual nossa, dela queria me
ocupar faz tempo.
Antes, preciso registrar fato recente. Foram
realizados em 27 de outubro os leilões do pré-sal, promovidos pelo governo, melhorando,
pela ANP, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Objetivos
sempre reafirmados por ocasião de tais eventos, menos presença do Estado na
economia, eficiência, competitividade, maior geração de riquezas. Eu poderia
acrescentar, mais sociedade, menos Estado e, com isso, mais independência dos
cidadãos e do País. Será?
O bloco Sul de Gato do Mato foi arrematado pelo
consórcio formado pela Shell (80%) e Total (20%). O bloco Entorno de Sapinhoá
foi arrematado pelo consórcio Petrobrás (45%), Shell Brasil (30%) e Repsol
Sinopec (25%). A Sinopec é estatal chinesa, dirigida pelo governo e Partido
Comunista chineses. Norte de Carcará, o terceiro bloco, foi arrematado pela
Statoil Brasil (40%), Petrogal Brasil (20%) e Exxon Mobil Brasil (40%). A
Statoil é estatal norueguesa. Peroba, o quarto, foi arrematado pela Petrobrás
(40%), CNODC Brasil (20%) e BP Energy (40%). A CNODC é estatal chinesa, repito,
dirigida pelo governo e Partido Comunista chineses. Alto de Cabo Frio Oeste, o quinto
bloco, foi arrematado pela Shell Brasil (35%), CNOOC Petroleum (20%) e QPI
Brasil (25%). A CNOOC é estatal chinesa, repito de novo, dirigida pelo governo
e pelo Partido Comunista chineses. A QPI é estatal do Catar. Alto de Cabo Frio
Central, o último bloco, foi arrematado pela Petrobrás (50%) e BP Energy (50%).
Programa de privatização deveria significar entregar à iniciativa privada, a
particulares, atividades econômicas antes levadas adiante pelo Estado. Mas aqui
vou deixar de lado esse aspecto. Só sublinho agora um ponto: a China comunista,
potência imperialista, continua a comprar planejada e avidamente fatias da
economia brasileira, sob a indiferença cega ou a cumplicidade criminosa de decisivos
setores da vida pública nacional. A geração atual está pondo em risco,
insciente ou criminosamente, a independência e a soberania do Brasil de amanhã.
Passo agora à riqueza espiritual de que queria tratar
buscando testemunhos em passado ainda recente. Mesmo nos rios mais revoltos ▬ e
o Brasil infelizmente rola correnteza abaixo ▬, aqui e ali aparecem remansos. A
gente neles se detém, retempera forças, e logo depois volta a navegar.
Vamos entrar em um deles. Stefan Zweig (1881-1942) foi
escritor dos mais vendidos mundialmente. Intelectual reconhecido, como literato
brilhou em quase tudo: poeta, romancista, dramaturgo, jornalista, biógrafo. Sem
prática religiosa (“Minha mãe e meu pai eram judeus apenas por acidente de
nascimento”), comodamente instalado na alta burguesia judaica, o pai industrial
e a mãe filha de banqueiro, Stefan Zweig nasceu, viveu e formou mentalidade na
Viena culta de Francisco José, continuador em boa medida da antiga política dos
Habsburgos de harmonizar diferenças e estimular situações em que cada pessoa,
cada família, cada região, sem lesar o bem comum, podia desenvolver suas
qualidades. A convulsão da política europeia o expulsou de lá. Fugindo da
guerra e do antissemitismo, o escritor morou na Inglaterra e nos Estados Unidos;
terminou por fixar residência em Petrópolis, onde, deprimido, matou-se em 1942.
Em 1941 publicou livro de boa repercussão “Brasil,
país do futuro”, edições simultâneas em vários idiomas; eram impressões sobre o
País que o havia acolhido. Em certo momento, retrata o clima social generalizado
do Brasil daquela época. Espero pôr em destaque uma forma de relações humanas, a
riqueza de que falava, reproduzindo fiapos do livro. Por possui-la, Stefan
Zweig acreditava, o Brasil merecia a admiração do mundo.
“O Brasil, por sua estrutura etnológica, se tivesse
aceito o delírio europeu de nacionalidades e raças, seria o país mais desunido,
menos pacífico e mais intranquilo do mundo”. Discorre a seguir sobre a imensa
diversidade de raças e continua: “Da maneira mais simples o Brasil tornou
absurdo o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente
o presumido valor de tal problema”. De outro modo, constatou benquerença tão
generalizada, digamos, que nem percebeu o problema do racismo no Brasil.
Passa a conjeturar sobre a origem de tal situação:
“Certa brandura e uma suave melancolia”. Nos estudantes “inteligência unida a
modéstia e polidez tranquilas”. No geral “essa forma mais suave e mais serena
da vida é um benefício e uma felicidade”.
Em virtude do clima social predominante, “o indivíduo
sente a alma aliviada logo que pisa esta terra. Primeiramente, pensa que este
efeito calmante é apenas alegria dos olhos, e gozo dessa beleza sem par que,
por assim dizer, de braços abertos chama a si o indivíduo que acaba de chegar”.
Continua: “Em geral ao brasileiro é alheio tudo o que é violência, brutalidade
e sadismo”.
Tal maneira de ser se reflete na política: “O Brasil
não tem desejos de conquistar territórios, não possui tendências imperialistas.
O princípio básico de sua ideia nacional [é] o desejo de conciliação e acordo,
produto natural dum predicado do povo”.
Despreocupado com a segurança, Stefan Zweig pacificamente
visitou favelas, então mais pobres que as atuais: “Tinha um mau pressentimento.
Esperava receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa. Mas para esses
indivíduos de boa-fé um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles
morros, é um hóspede bem-vindo e quase um amigo”. Visitasse-as hoje sem a
permissão do chefe da boca de fumo, para começo de conversa seria depenado.
Facilmente sequestrado ou morto.
Não estou sobrevalorizando as impressões do vienense. Tem
seu ponto-de-vista de europeu educado na Belle Époque numa das capitais mais
civilizadas da Europa, no seu olhar pode facilmente existir influência do romantismo
do século 19. Nada disso excluo. Mas também não quero subestimá-lo. Dados os
descontos, Zweig parece contemplar outro mundo, tragado pelo tempo. À primeira
vista, sacudido pelas incompreensões, rasgado pelas divisões, com patrulhas
cultivando o ódio, pouco existiria daquele país formado com enormes
dificuldades, missionado em especial por jesuítas, carmelitas e franciscanos.
Dele, recordo lenda bretã, como uma catedral engolida por maremoto, só se
ouviria o plangor longínquo dos sinos debaixo de águas revoltas.
Na mesma época, 1935 a 1937, professor na nascente
USP, morou entre nós Fernand Braudel (1902-1985). Muitos estudiosos o
consideram o maior pensador social e historiador do século 20. Reveladoramente,
viu o Brasil com olhar parecido ao de Stefan Zweig: “Foi no Brasil que me
tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era um tal
espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social que eu compreendi
a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida passei no Brasil”. O
que significava para ele ter ficado inteligente?, foi-lhe perguntado. Deu
várias respostas. Duas delas: “Fiquei menos banal”. A outra: “Lá eu aprendi a
ser feliz”. O espetáculo de gentileza social lhe estimulou a inteligência.
Tornou-a mais abarcadora. Nas fontes da gentileza social, o interesse
desinteressado [paradoxo aparente] e o apreço pelo “outro”. O “outro” não é o
inferno, como na frase de Jean-Paul Sartre [l’enfer,
c’est les autres], o “outro”, nessa mentalidade, é a estrada para o
paraíso.
Volto à
pergunta de fundo, o que restou do aroma evolado de árvore frondosa, que encantou
Stefan Zweig e Fernand Braudel? Raízes, riqueza imensa, ainda que potencial. Distingui-las
em nosso radar interior, regá-las, tonifica as melhores fibras do espírito. Sem
seu cultivo, o Brasil nunca terá títulos para ser nação com grandeza cristã, mesmo
que consiga romper os obstáculos que hoje o impedem de crescer.
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