Carnificina, trauma
público e amadorismo
Péricles Capanema
Acompanhamos horrorizados as carnificinas de detentos
em Manaus e Boa Vista, ameaçam se estender pelos presídios de todo o País.
Divulgadas por whatsapps se generalizaram cenas de selvageria incomuns até nos
mais animalescos ambientes. Cabeças cortadas, mutilações de braços, pernas e
órgãos genitais, corações arrancados do peito, deixando à vista um buraco de
ossos quebrados, carne apodrecida e sangue coagulado. As vítimas, criminosos,
grande parte traficantes, estupradores alguns, homicidas, ladrões. Não importa.
Têm direito a tratamento digno, são brasileiros, enfim, irmãos nossos mesmo na
maior degradação, é o ensinamento evangélico. “Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não
me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes (Mt 25, 43). É
preciso um basta imediato.
Lembrando, em Manaus, no Complexo Penitenciário Anísio
Jobim, em 1º de janeiro, 56 detentos foram assassinados. Em Boa Vista, capital
de Roraima, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em 6 de janeiro, foram
mortos 33 detentos. Os 56 trucidados em Manaus pertenciam ao PCC (Primeiro
Comando da Capital); foram mortos por ordem do FDN (Família do Norte). Em
vingança, o PCC matou 33 presos em Boa Vista, ligados à FDN.
As origens dos fatos estavam longe dali. Em 14 de
junho de 2016, em Pedro Juan Caballero foi assassinado pelo PCC o
megatraficante Jorge Rafaat. Com sua morte, esta facção assumiu o controle do
tráfico na região, rompendo antigo acordo com o CV (Comando Vermelho), facção
criminosas com raízes no Rio de Janeiro. Rafaat, ligado ao CV, era o principal
exportador de drogas e armas para referida facção e aliados. “Não existe mais
entreposto entre o Brasil e o Paraguai. Agora, o Paraguai é brasileiro.
Qualquer facção criminosa não precisa mais ir até lá. É só falar com o PCC,
eles fornecem o que quiserem e onde quiserem”, comentou José Mariano Beltrame,
antigo secretário de Segurança do Rio de Janeiro. Em represália, o CV se aliou
à FDN para impedir a entrada do PCC em regiões do Norte.
Por que recordo tudo isso? A disputa principal é sobre
rotas e mercados da droga, secundária a guerra pelo controle das prisões. Como
há concentração de membros das facções nos presídios, ali há chacinas. Mas no
Brasil inteiro membros delas agora estão se matando, fora e dentro das cadeias.
Acima constatei: é preciso um basta imediato. Refaço: é possível um basta
imediato?
Os choques entre as gangues do narcotráfico ▬ 27
facções conhecidas da Polícia ▬ ameaça não apenas o sistema prisional
brasileiro, mas o próprio futuro do Brasil. Na América Central já há países
virtualmente dominados pelos chefões do tráfico. Regiões do México sofrem do
mesmo mal. No Brasil, existem áreas dominadas pelas facções, funcionários
públicos subornados, autoridades intimidadas, candidatos financiados. Ninguém
considera absurda a hipótese de narcoestados na América Latina e dela não
podemos excluir o Brasil.
Três fatores políticos favorecem o narcotráfico. As
FARC, organização guerrilheira narcomarxista, controlava aproximadamente 40% da
produção colombiana. Têm bases na Amazônia, enviam drogas até para o Paraguai,
de onde entram no Brasil. Como ficará esse tráfico após a pacificação em curso?
Como agirão os grupos dissidentes das FARC, que continuam trocando cocaína por
dinheiro e armas? Outro ponto, Evo Morales, antigo líder sindical cocalero
(produtor da folha da coca, matéria-prima para a cocaína), contra cujo governo
pesam denúncias sérias de militares bolivianos, hoje exilados. E tais denúncias
envolvem o governo bolivariano de Caracas, também favorecedor do narcotráfico.
Um afilhado e um sobrinho do presidente Nicolás Maduro podem ser condenados à
prisão perpétua nos Estados Unidos, por terem sido detidos por narcotráfico.
São problemas de política internacional, intoxicados pelo PT, amigo das FARC,
de Evo Morales e de Nicolás Maduro, cuja permanência dificulta em extremo a
solução interna.
Com efeito, as fronteiras brasileiras são pouco
policiadas, o Brasil é o segundo mercado consumidor de cocaína no mundo e
provavelmente o maior consumidor de drogas, cuja base é a cocaína, o crack
entre elas. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz, no Brasil existem quase 400 mil
viciados em crack (especialistas julgam baixa a estimativa). E segundo
documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos o governo brasileiro
“não tem a capacidade necessária para conter o fluxo de narcóticos através de
suas fronteiras”.
Adiante no mesmo estradão. Relatório recente do
serviço de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas estima
que só pela fronteira com o Peru o tráfico está gerando lucro anual de 4,5
bilhões de dólares. Nessa região, calcula a PF, existem 10 mil hectares
plantados de coca. O relatório afirma “o Amazonas se configura como o principal
corredor para o ingresso da cocaína no Brasil, provenientes dos cultivos da
coca nas fronteiras Brasil-Peru e Brasil-Colômbia”. Coordenador desse
relatório, Sérgio Fontes, delgado federal de carreira e secretário de Segurança
Pública do Amazonas, afirma que a prioridade é a proteção das fronteiras: “Tem
que haver acompanhamento perene. Fiscalização periódica não funciona. Se não
houver uma guinada, estaremos no caminho do México”.
Ainda não tratei do amadorismo, está no título. Basta
ler os jornais, ouvir notícias, assistir noticiários e nos agride por todos os
lados, a irreflexão, a superficialidade, o desconhecimento dos temas em pauta.
Autoridades, supostos especialistas, jornalistas, gente de toda laia estão
opinando com pouca ou nenhuma ciência, com escassa ou nula experiência. Que
falem os entendidos dos livros e da labuta, o assunto é sério demais para ser
assim ventilado.
Serão necessárias mudanças na legislação, harmonização
de competências, talvez até mesmo constitucional, remanejamento de verbas.
Tratei desses aspectos de caso pensado. Li manifestação cheia de propósito da
Frente Parlamentar da Segurança Pública, presidida pelo deputado Alberto Fraga,
antigo coronel da PM. São mais de 300 deputados, boa parte dos quais com longos
anos como delegados, oficiais do Exército ou das Polícias Estaduais,
secretários de Segurança, promotores, juízes. Enfim, gente do ramo, unem
ciência e tarimba. E o que diz a Frente? “Não é normal o Governo Federal
ignorar os profissionais de segurança pública [...] Seria descabido alguns
desses profissionais serem chamados”? Destacam amadorismo penoso: “Recentemente concluímos a CPI do Sistema
Carcerário e apresentamos vinte propostas para melhorar o sistema prisional, no
entanto, em nenhum momento os ministros se referiram à essa Comissão de
Inquérito e suas propostas. Durante a CPI alertamos o Governo sobre as facções
que estavam dominando os presídios, mas a questão não foi tratada com a devida
atenção e o resultado foi a tragédia que aconteceu na última semana”. Que na
frente do palco apareça quem é do ramo. É impossível o basta imediato, ainda
que sim indispensáveis medidas emergenciais, mas é perfeitamente possível
caminhar com seriedade no rumo certo até resolver o problema.
Um comentário:
Sou mais a seguinte oração de um juiz que, "sentindo que morria, dizia assim serenamente, de seu leito: - Senhor, queria ao morrer ter a certeza de que todos os homens que condenei morreram antes de mim, pois não posso pensar que fiquem nas prisões deste mundo, a sofrer penas humanas, os que lá foram metidos por ordem minha. Queria, Senhor, que quando me apresentasse ao Teu juízo, os encontrasse à Tua porta, para que me dissessem que os julguei com justiça, segundo aquilo que os homens chama Justiça, e se para algum e sem dar por isso fui injusto, esse, mais do que outro,desejaria encontrar ao meu lado, para lhe pedir perdão e para lhe dizer que nem uma só vez, ao julgar, esqueci ser uma pobre criatura humana, escrava do erro; que nem uma só vez, ao condenar, consegui reprimir a perturbação da consciência, tremendo perante um ofício, que, em última instância, apenas pode ser Teu, Senhor!" (Piero Calamandrei - "Eles, os Juízes, vistos por nós, os Advogados"- Livraria Clássica Editora, Lisboa - 4ª Edição, pgs. 173-4)
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