quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Carnificina, trauma público e amadorismo

Carnificina, trauma público e amadorismo

Péricles Capanema

Acompanhamos horrorizados as carnificinas de detentos em Manaus e Boa Vista, ameaçam se estender pelos presídios de todo o País. Divulgadas por whatsapps se generalizaram cenas de selvageria incomuns até nos mais animalescos ambientes. Cabeças cortadas, mutilações de braços, pernas e órgãos genitais, corações arrancados do peito, deixando à vista um buraco de ossos quebrados, carne apodrecida e sangue coagulado. As vítimas, criminosos, grande parte traficantes, estupradores alguns, homicidas, ladrões. Não importa. Têm direito a tratamento digno, são brasileiros, enfim, irmãos nossos mesmo na maior degradação, é o ensinamento evangélico. “Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes (Mt 25, 43). É preciso um basta imediato.

Lembrando, em Manaus, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em 1º de janeiro, 56 detentos foram assassinados. Em Boa Vista, capital de Roraima, na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em 6 de janeiro, foram mortos 33 detentos. Os 56 trucidados em Manaus pertenciam ao PCC (Primeiro Comando da Capital); foram mortos por ordem do FDN (Família do Norte). Em vingança, o PCC matou 33 presos em Boa Vista, ligados à FDN.

As origens dos fatos estavam longe dali. Em 14 de junho de 2016, em Pedro Juan Caballero foi assassinado pelo PCC o megatraficante Jorge Rafaat. Com sua morte, esta facção assumiu o controle do tráfico na região, rompendo antigo acordo com o CV (Comando Vermelho), facção criminosas com raízes no Rio de Janeiro. Rafaat, ligado ao CV, era o principal exportador de drogas e armas para referida facção e aliados. “Não existe mais entreposto entre o Brasil e o Paraguai. Agora, o Paraguai é brasileiro. Qualquer facção criminosa não precisa mais ir até lá. É só falar com o PCC, eles fornecem o que quiserem e onde quiserem”, comentou José Mariano Beltrame, antigo secretário de Segurança do Rio de Janeiro. Em represália, o CV se aliou à FDN para impedir a entrada do PCC em regiões do Norte.

Por que recordo tudo isso? A disputa principal é sobre rotas e mercados da droga, secundária a guerra pelo controle das prisões. Como há concentração de membros das facções nos presídios, ali há chacinas. Mas no Brasil inteiro membros delas agora estão se matando, fora e dentro das cadeias. Acima constatei: é preciso um basta imediato. Refaço: é possível um basta imediato?

Os choques entre as gangues do narcotráfico ▬ 27 facções conhecidas da Polícia ▬ ameaça não apenas o sistema prisional brasileiro, mas o próprio futuro do Brasil. Na América Central já há países virtualmente dominados pelos chefões do tráfico. Regiões do México sofrem do mesmo mal. No Brasil, existem áreas dominadas pelas facções, funcionários públicos subornados, autoridades intimidadas, candidatos financiados. Ninguém considera absurda a hipótese de narcoestados na América Latina e dela não podemos excluir o Brasil.

Três fatores políticos favorecem o narcotráfico. As FARC, organização guerrilheira narcomarxista, controlava aproximadamente 40% da produção colombiana. Têm bases na Amazônia, enviam drogas até para o Paraguai, de onde entram no Brasil. Como ficará esse tráfico após a pacificação em curso? Como agirão os grupos dissidentes das FARC, que continuam trocando cocaína por dinheiro e armas? Outro ponto, Evo Morales, antigo líder sindical cocalero (produtor da folha da coca, matéria-prima para a cocaína), contra cujo governo pesam denúncias sérias de militares bolivianos, hoje exilados. E tais denúncias envolvem o governo bolivariano de Caracas, também favorecedor do narcotráfico. Um afilhado e um sobrinho do presidente Nicolás Maduro podem ser condenados à prisão perpétua nos Estados Unidos, por terem sido detidos por narcotráfico. São problemas de política internacional, intoxicados pelo PT, amigo das FARC, de Evo Morales e de Nicolás Maduro, cuja permanência dificulta em extremo a solução interna.

Com efeito, as fronteiras brasileiras são pouco policiadas, o Brasil é o segundo mercado consumidor de cocaína no mundo e provavelmente o maior consumidor de drogas, cuja base é a cocaína, o crack entre elas. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz, no Brasil existem quase 400 mil viciados em crack (especialistas julgam baixa a estimativa). E segundo documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos o governo brasileiro “não tem a capacidade necessária para conter o fluxo de narcóticos através de suas fronteiras”.

Adiante no mesmo estradão. Relatório recente do serviço de inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas estima que só pela fronteira com o Peru o tráfico está gerando lucro anual de 4,5 bilhões de dólares. Nessa região, calcula a PF, existem 10 mil hectares plantados de coca. O relatório afirma “o Amazonas se configura como o principal corredor para o ingresso da cocaína no Brasil, provenientes dos cultivos da coca nas fronteiras Brasil-Peru e Brasil-Colômbia”. Coordenador desse relatório, Sérgio Fontes, delgado federal de carreira e secretário de Segurança Pública do Amazonas, afirma que a prioridade é a proteção das fronteiras: “Tem que haver acompanhamento perene. Fiscalização periódica não funciona. Se não houver uma guinada, estaremos no caminho do México”.

Ainda não tratei do amadorismo, está no título. Basta ler os jornais, ouvir notícias, assistir noticiários e nos agride por todos os lados, a irreflexão, a superficialidade, o desconhecimento dos temas em pauta. Autoridades, supostos especialistas, jornalistas, gente de toda laia estão opinando com pouca ou nenhuma ciência, com escassa ou nula experiência. Que falem os entendidos dos livros e da labuta, o assunto é sério demais para ser assim ventilado.


Serão necessárias mudanças na legislação, harmonização de competências, talvez até mesmo constitucional, remanejamento de verbas. Tratei desses aspectos de caso pensado. Li manifestação cheia de propósito da Frente Parlamentar da Segurança Pública, presidida pelo deputado Alberto Fraga, antigo coronel da PM. São mais de 300 deputados, boa parte dos quais com longos anos como delegados, oficiais do Exército ou das Polícias Estaduais, secretários de Segurança, promotores, juízes. Enfim, gente do ramo, unem ciência e tarimba. E o que diz a Frente? “Não é normal o Governo Federal ignorar os profissionais de segurança pública [...] Seria descabido alguns desses profissionais serem chamados”? Destacam amadorismo penoso: “Recentemente concluímos a CPI do Sistema Carcerário e apresentamos vinte propostas para melhorar o sistema prisional, no entanto, em nenhum momento os ministros se referiram à essa Comissão de Inquérito e suas propostas. Durante a CPI alertamos o Governo sobre as facções que estavam dominando os presídios, mas a questão não foi tratada com a devida atenção e o resultado foi a tragédia que aconteceu na última semana”. Que na frente do palco apareça quem é do ramo. É impossível o basta imediato, ainda que sim indispensáveis medidas emergenciais, mas é perfeitamente possível caminhar com seriedade no rumo certo até resolver o problema.

Um comentário:

NEREU AUGUSTO TADEU DE GANTER PEPLOW disse...

Sou mais a seguinte oração de um juiz que, "sentindo que morria, dizia assim serenamente, de seu leito: - Senhor, queria ao morrer ter a certeza de que todos os homens que condenei morreram antes de mim, pois não posso pensar que fiquem nas prisões deste mundo, a sofrer penas humanas, os que lá foram metidos por ordem minha. Queria, Senhor, que quando me apresentasse ao Teu juízo, os encontrasse à Tua porta, para que me dissessem que os julguei com justiça, segundo aquilo que os homens chama Justiça, e se para algum e sem dar por isso fui injusto, esse, mais do que outro,desejaria encontrar ao meu lado, para lhe pedir perdão e para lhe dizer que nem uma só vez, ao julgar, esqueci ser uma pobre criatura humana, escrava do erro; que nem uma só vez, ao condenar, consegui reprimir a perturbação da consciência, tremendo perante um ofício, que, em última instância, apenas pode ser Teu, Senhor!" (Piero Calamandrei - "Eles, os Juízes, vistos por nós, os Advogados"- Livraria Clássica Editora, Lisboa - 4ª Edição, pgs. 173-4)