O canalha translúcido
Péricles Capanema
Fartei-me com a cobertura indecente, desproporcionada e
gritantemente sintomática da morte de Fidel Castro. Ditirambos disparatados, análises
tendenciosas, críticas suaves. Foram exceção palavras como a de Anna Cecília Malmström, Comissária Europeia do Comércio: “Fidel
Castro foi um ditador que oprimiu seu povo por 50 anos. Muito estranho todos os
elogios nas notícias de hoje”.
Estranho, mas não novo. Provém de mentalidade
antiga, embebida de complacência com toda forma de esquerdismo, mesmo o mais
extremista. Lembrei-me de crônica de Nelson Rodrigues sobre o embasbacamento
subserviente de magotes da intelligentsia
brasileira e da sociedade carioca em torno de Jean-Paul Sartre, o velho
comunista, que visitou o Rio de Janeiro. O texto atualíssimo, profilático, é de
22 de abril de 1968: “De onde vem meu horror a Sartre? Foi numa conferência do
mestre. Lembro-me de tudo. Conferência, ali, na ABI [...] Eu estava na sala
superlotada. [...] Por mais estranho que pareça, eu não prestava a menor
atenção ao conferencista. Mais que a palavra de Sartre, fascinou-me a cara dos
seus admiradores. A cara! [...] A cara dos admiradores de Sartre merecia, sim,
a folha de parreira. Homens e mulheres lambiam com a vista o filósofo. Por
certo, há admirações nobilíssimas e outras que são abjetas. Naquela tarde, e
naquela sala, eu só via admirações abjetas. [...] O meu horror a Sartre começou
nos seus admiradores e, mais precisamente, começou na cara dos seus
admiradores. Só posteriormente é que tratei de fazer uma revisão da obra sartriana.
[...] Sua obra é todo um gigantesco julgamento dos valores de vida. Vamos
também julgá-lo. Sartre recusou o Prêmio Nobel. Convém esvaziar tal renúncia de
todo o falso patético, de todo pseudossublime. O filósofo não perdeu um tostão.
Pelo contrário: — foi um gesto promocional de gênio e que serviu apenas para
aumentar a sua bilheteria. [...] Argumenta o filósofo que o Prêmio Nobel foi
concedido a Boris Pasternak. Mas quem é Pasternak? Diz ele: — “Um escritor que
não é lido em sua própria terra”. Vejam: — “Um escritor que não é lido em sua
própria terra”. Aí está o canalha, o límpido, o translúcido canalha Jean-Paul
Sartre. Se disse isso, é um canalha (e o disse num claro e deslavado documento
para o mundo). E repito: — de uma simples frase emerge todo o canalha. Vejam
bem. Um crime contra a inteligência impediu que Pasternak fosse lido em sua
própria língua. E Sartre está a favor do “crime” e contra a vítima. Pasternak é
um poeta, um romancista, um pensador que o totalitarismo soviético havia de
exterminar, até fisicamente. E Sartre não pinga uma palavra de compaixão sobre
o assassinato de um artista. (Preciso falar também de um prodigioso documento.
É um manifesto de Oitocentos intelectuais russos. E lá se faz também a
excomunhão do autor em desgraça. Oitocentos intelectuais russos, Oitocentos
canalhas.) Mas a miséria não para aí. Perguntem aos nossos intelectuais de
esquerda: — “Vocês leram o que Sartre disse sobre o Pasternak?”. Ninguém leu,
ninguém viu, ninguém sabe. O monstruoso documento saiu em todos os idiomas. E
nós, que o lemos e o relemos, fingimos um pequeno, irrelevante, cínico lapso de
memória. Agora mesmo vejo um telegrama de Moscou, que todos os jornais
publicaram: — nove intelectuais russos foram julgados e condenados
sumariamente. Imagino se esses também assinaram o manifesto contra Pasternak.
Leiam os nossos próximos suplementos dominicais. Os nossos intelectuais de
esquerda não vão exalar um mísero e tênue suspiro. É um crime contra a
inteligência. Mas Jean-Paul Sartre disse, aqui, que a Rússia era “a Revolução”.
E, como tal, tem todo o direito de enfiar na cadeia a canalha intelectual. [...]
Nunca a inteligência se degradou tanto”.
No meio da geral louvaminha a Sartre no Brasil, Nelson Rodrigues teve a
coragem singela de, com base em um fato, exprimir o óbvio ululante: o homem era
um canalha translúcido. Até agora, de ninguém escutei o óbvio ululante: Fidel
Castro foi um canalha translúcido. E entre a montanha de fatos para embasar o
juízo lembro esses: foi tirano implacável, torturador de seu povo, lambe-botas
de Kruschev e Brejnev; destruiu os sonhos de gerações de cubanos. No Brasil, esse
amigo próximo do PT, do frei Betto e de gente assemelhada treinou e estimulou
guerrilheiros que, na tentativa aloucada de impor ao povo brasileiro renitente
a ditadura do proletariado, ceifaram a vida de militares e policiais heroicos,
bem como de civis inocentes, hoje em geral dolorosamente esquecidos, tantas
vezes com a memória injustamente escarnecida. Eu me associo enfaticamente à
alegria dos cubanos exilados na Flórida, esperançosos com a perspectiva de Cuba
regressar à trilha da liberdade, da prosperidade e harmonia social, da qual foi
arrancada brutalmente há mais de 50 anos.
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