domingo, 27 de novembro de 2016

O canalha translúcido

O canalha translúcido

Péricles Capanema

Fartei-me com a cobertura indecente, desproporcionada e gritantemente sintomática da morte de Fidel Castro. Ditirambos disparatados, análises tendenciosas, críticas suaves. Foram exceção palavras como a de Anna Cecília Malmström, Comissária Europeia do Comércio: “Fidel Castro foi um ditador que oprimiu seu povo por 50 anos. Muito estranho todos os elogios nas notícias de hoje”.

Estranho, mas não novo. Provém de mentalidade antiga, embebida de complacência com toda forma de esquerdismo, mesmo o mais extremista. Lembrei-me de crônica de Nelson Rodrigues sobre o embasbacamento subserviente de magotes da intelligentsia brasileira e da sociedade carioca em torno de Jean-Paul Sartre, o velho comunista, que visitou o Rio de Janeiro. O texto atualíssimo, profilático, é de 22 de abril de 1968: “De onde vem meu horror a Sartre? Foi numa conferência do mestre. Lembro-me de tudo. Conferência, ali, na ABI [...] Eu estava na sala superlotada. [...] Por mais estranho que pareça, eu não prestava a menor atenção ao conferencista. Mais que a palavra de Sartre, fascinou-me a cara dos seus admiradores. A cara! [...] A cara dos admiradores de Sartre merecia, sim, a folha de parreira. Homens e mulheres lambiam com a vista o filósofo. Por certo, há admirações nobilíssimas e outras que são abjetas. Naquela tarde, e naquela sala, eu só via admirações abjetas. [...] O meu horror a Sartre começou nos seus admiradores e, mais precisamente, começou na cara dos seus admiradores. Só posteriormente é que tratei de fazer uma revisão da obra sartriana. [...] Sua obra é todo um gigantesco julgamento dos valores de vida. Vamos também julgá-lo. Sartre recusou o Prêmio Nobel. Convém esvaziar tal renúncia de todo o falso patético, de todo pseudossublime. O filósofo não perdeu um tostão. Pelo contrário: — foi um gesto promocional de gênio e que serviu apenas para aumentar a sua bilheteria. [...] Argumenta o filósofo que o Prêmio Nobel foi concedido a Boris Pasternak. Mas quem é Pasternak? Diz ele: — “Um escritor que não é lido em sua própria terra”. Vejam: — “Um escritor que não é lido em sua própria terra”. Aí está o canalha, o límpido, o translúcido canalha Jean-Paul Sartre. Se disse isso, é um canalha (e o disse num claro e deslavado documento para o mundo). E repito: — de uma simples frase emerge todo o canalha. Vejam bem. Um crime contra a inteligência impediu que Pasternak fosse lido em sua própria língua. E Sartre está a favor do “crime” e contra a vítima. Pasternak é um poeta, um romancista, um pensador que o totalitarismo soviético havia de exterminar, até fisicamente. E Sartre não pinga uma palavra de compaixão sobre o assassinato de um artista. (Preciso falar também de um prodigioso documento. É um manifesto de Oitocentos intelectuais russos. E lá se faz também a excomunhão do autor em desgraça. Oitocentos intelectuais russos, Oitocentos canalhas.) Mas a miséria não para aí. Perguntem aos nossos intelectuais de esquerda: — “Vocês leram o que Sartre disse sobre o Pasternak?”. Ninguém leu, ninguém viu, ninguém sabe. O monstruoso documento saiu em todos os idiomas. E nós, que o lemos e o relemos, fingimos um pequeno, irrelevante, cínico lapso de memória. Agora mesmo vejo um telegrama de Moscou, que todos os jornais publicaram: — nove intelectuais russos foram julgados e condenados sumariamente. Imagino se esses também assinaram o manifesto contra Pasternak. Leiam os nossos próximos suplementos dominicais. Os nossos intelectuais de esquerda não vão exalar um mísero e tênue suspiro. É um crime contra a inteligência. Mas Jean-Paul Sartre disse, aqui, que a Rússia era “a Revolução”. E, como tal, tem todo o direito de enfiar na cadeia a canalha intelectual. [...] Nunca a inteligência se degradou tanto”.


No meio da geral louvaminha a Sartre no Brasil, Nelson Rodrigues teve a coragem singela de, com base em um fato, exprimir o óbvio ululante: o homem era um canalha translúcido. Até agora, de ninguém escutei o óbvio ululante: Fidel Castro foi um canalha translúcido. E entre a montanha de fatos para embasar o juízo lembro esses: foi tirano implacável, torturador de seu povo, lambe-botas de Kruschev e Brejnev; destruiu os sonhos de gerações de cubanos. No Brasil, esse amigo próximo do PT, do frei Betto e de gente assemelhada treinou e estimulou guerrilheiros que, na tentativa aloucada de impor ao povo brasileiro renitente a ditadura do proletariado, ceifaram a vida de militares e policiais heroicos, bem como de civis inocentes, hoje em geral dolorosamente esquecidos, tantas vezes com a memória injustamente escarnecida. Eu me associo enfaticamente à alegria dos cubanos exilados na Flórida, esperançosos com a perspectiva de Cuba regressar à trilha da liberdade, da prosperidade e harmonia social, da qual foi arrancada brutalmente há mais de 50 anos.

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