segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Esperança e preocupação

Esperança e preocupação

Péricles Capanema

Antes de cavar mais fundo, quero destacar alguns dados relativos às últimas eleições norte-americanas. Parte deles não é definitiva, mas está próxima dos resultados finais. Em 2012, a participação do eleitorado foi de 58,6%; em 2016, 55,6%, a menor desde 2004. País de mais de 325 milhões, cerca de 219 milhões estão aptos a votar, dos quais 146 milhões se registraram; o resto não se interessou. Em 2014, forem eleitos 247 deputados republicanos. Em 2016, maioria ainda mantida, 239 em 435, total de parlamentares na Câmara de Representantes. Naquele mesmo ano, a maioria republicana no Senado era de 54 a 44. Agora será de 51 a 47 (100 senadores no total). Nos plebiscitos, em 8 de novembro também, sobre o consumo da maconha para fins recreativos ou terapêuticos, realizados em nove Estados, só Arizona votou contra liberá-la para emprego recreativo (52,1%). A favor, Califórnia (55%), Nevada (53%), Massachusetts (53%) e Maine (50,2%). A favor da utilização terapêutica, Flórida (71%), Montana (59%), Dakota do Norte (54%), Arkansas (53%). No Colégio Eleitoral, vitória sólida de Donald Trump (290 a 232, faltam ainda 16 votos). Na votação popular, Hillary Clinton teve (até agora) 61.035.460, Donald Trump 60.367.401 (a democrata vence por 668.059, 47,8% a 47,3%). Mit Romney em 2012 teve 60.933.504.

Vistos os números acima, não se percebem acontecimentos novos de grande impacto eleitoral. O que leva a supor, por algum motivo, fenômenos já enraizados podem ter sido decisivos na vitória de Donald Trump. E que haja superficialidade quando se restringem as causas ao chamado populismo de direita, com seus ataques às elites (forte nota anti-Establishment), aos imigrantes, à globalização. E logo relacionar fortemente o fenômeno com o Brexit, com situações de traços próximos na França, Turquia, Hungria, também em boa parte analisadas com estereótipos deformantes. De passagem, a indicação de Reince Priebus, presidente do Comitê Nacional do Partido Republicano, para chefe da Casa Civil, salienta quanto de artificial havia na nota anti-Establishment da campanha.

Coloco o holofote em fatos empurrados para a sombra. Em 17 de agosto Donald Trump demitiu Paul Manafort, chefe de campanha, cuja linha de propaganda pode ser resumida numa de suas declarações: “Como meu pai, Trump compreende os americanos trabalhadores. A mágica de sua campanha foi se conectar com as frustações que existem hoje nos Estados Unidos”. Era a ênfase na raiva do homem branco, de pouca instrução, penando no desemprego ou ameaçado por ele. O dirigente foi substituído por Kellyanne Conway, conhecida líder do movimento Pro-Life. Ela mudou o rumo, salientou valores tradicionais da família americana, em especial a recusa ao aborto. Nunca antes o candidato republicano se havia destacado na defesa de tais valores. No último debate, Trump afirmou: “Sou pro-life e indicarei juízes pro-life para a Suprema Corte. Talvez três”. O candidato falou do horror do aborto até mesmo em gestantes com nove meses de gravidez. A respeito desta última possibilidade, defendida por partidários de Hillary Clinton, a candidata  evitou se posicionar. Quanto ao restante foi clara ali no debate e em outras ocasiões, iria promover a liberalização do aborto e outras pautas da agenda libertária, como casamento homossexual.

A maioria dos analistas minimiza três pontos na derrota de Hillary Clinton: legalização do casamento homossexual, generalização do aborto, proibição do porte de armas. Realço ainda o medo que eleitores conservadores tinham de que para a Suprema Corte fossem indicados três juízes alinhados com as posições de Hillary Clinton. Dos nove membros, hoje atuam oito; faleceu o juiz Scalia, em geral conservador. Dois juízes de tendências liberais estão próximos da saída: Ruth Bader Ginsburg, 83, e Stephen Breyer, 78. Três membros novos da Suprema Corte com boa orientação geral podem frear muito da desagregação social promovida por poderosas correntes libertárias nos Estados Unidos. Foi esperança que animou muita gente. Em suma, houve um despertar conservador na última fase da campanha. A virada repercutiu fundo nos votos do Colégio Eleitoral, surpreendendo a imensa maioria da imprensa.

Brasil. A América do Sul não é prioridade da nova administração. Não digo América Latina, digo América do Sul. México, Cuba, situações políticas na América Central estão sempre no radar dos políticos em Washington.

O Brasil será prioridade se, no estradão certo, caminhar por longos anos para se colocar à altura de seu destino natural. Para isso, será preciso ordenar o apavorante ensino básico, médio e universitário. A respeito, nas várias pesquisas internacionais sempre ficamos na rabeira. E ainda melhorar a infraestrutura, reformar a legislação fiscal, previdenciária, trabalhista, diminuindo o “custo Brasil”, estimulando investimentos. O intervencionismo socialista trava nosso crescimento há décadas. Voltando a crescer na estabilidade o país será tomado a sério pelos Estados Unidos.

Protecionismo e isolacionismo, duas tendências, sempre recorrentes na história norte-americana, e não prejudicam apenas o Brasil. Ameaçam o futuro livre do Ocidente. Diversas declarações de Donald Trump pagam preocupante tributo a eles. O quadro toma cores mais sombrias com a anunciada aproximação a Vladimir Putin e Xi Jinping. É impossível não se lembrar de Yalta. Ali, os chefes de governo dos Estados Unidos, Rússia e Inglaterra, respectivamente Roosevelt, Stalin e Churchill, reuniram-se para decidir o fim da guerra e repartir zonas de influência. Com base no que se combinou naquele balneário e no espírito que de lá emanou, a Rússia comunista consolidou seu império de vergonha e expandiu conquistas.

O temor agora é retraimento dos Estados Unidos e, coerente, nova repartição de zonas de influência, agora entre três atores: Washington, Pequim e Moscou. Ângela Merkel certamente teve tal preocupação em mente quando enviou recado a Donald Trump: “Sabemos que o presidente foi eleito em eleições justas. [...] Os Estados Unidos têm uma enorme força militar e são responsáveis por tudo o que acontece no mundo. Os norte-americanos decidiram que nos próximos anos essa responsabilidade estará a cargo de Donald Trump. A Alemanha e os Estados Unidos compartilham valores, democracia, liberdade, respeito pelos direitos humanos, dignidade. Nessa base, ofereço cooperação ao futuro Presidente dos Estados Unidos”. Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, foi mais contundente; advertiu que o Ocidente enfrenta seu maior desafio de segurança em uma geração: “Caminhar sozinho não pode ser uma escolha, nem para os Estados Unidos, nem para a Europa”. É hora de fortalecer o que “une”, sob “forte liderança norte-americana”.

Não duvido, o premiê japonês gostaria de enviar recados parecidos. Donald Trump prometeu abandonar a TPP (sigla em inglês de Trans-Pacific Partnership, Parceria Transpacífico) nos primeiros 100 dias. Ela inclui Estados Unidos da América, Japão, Canadá, México, Peru, Chile, Cingapura, Austrália, Brunei, Malásia, Nova Zelândia, Vietnã. Já anunciaram interesse em dela participar Coreia do Sul, Taiwan, Colômbia, Indonésia, Filipinas e Tailândia. As declarações podem ter sido mero foguetório de campanha. Contudo, se suceder vácuo comercial no Pacífico decorrente do isolacionismo, um país o preencherá rapidamente: China.


Hora de vigilância. Deus queira, no fim, o caminho seguido pelos Estados Unidos esteja em harmonia com as responsabilidades universais manifestadas, uma vez mais, com a fundação da NATO em 4 de abril de 1949 o que, por contraste, naquela ocasião evidenciou o caráter destruidor do espírito de Yalta.

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