Esperança e
preocupação
Péricles Capanema
Antes de cavar mais fundo, quero destacar alguns dados
relativos às últimas eleições norte-americanas. Parte deles não é definitiva, mas
está próxima dos resultados finais. Em 2012, a participação do eleitorado foi
de 58,6%; em 2016, 55,6%, a menor desde 2004. País de mais de 325 milhões, cerca
de 219 milhões estão aptos a votar, dos quais 146 milhões se registraram; o
resto não se interessou. Em 2014, forem eleitos 247 deputados republicanos. Em
2016, maioria ainda mantida, 239 em 435, total de parlamentares na Câmara de
Representantes. Naquele mesmo ano, a maioria republicana no Senado era de 54 a
44. Agora será de 51 a 47 (100 senadores no total). Nos plebiscitos, em 8 de
novembro também, sobre o consumo da maconha para fins recreativos ou terapêuticos,
realizados em nove Estados, só Arizona votou contra liberá-la para emprego recreativo
(52,1%). A favor, Califórnia (55%), Nevada (53%), Massachusetts (53%) e Maine
(50,2%). A favor da utilização terapêutica, Flórida (71%), Montana (59%), Dakota
do Norte (54%), Arkansas (53%). No Colégio Eleitoral, vitória sólida de Donald Trump
(290 a 232, faltam ainda 16 votos). Na votação popular, Hillary Clinton teve
(até agora) 61.035.460, Donald Trump 60.367.401 (a democrata vence por 668.059,
47,8% a 47,3%). Mit Romney em 2012 teve 60.933.504.
Vistos os números acima, não se percebem acontecimentos
novos de grande impacto eleitoral. O que leva a supor, por algum motivo, fenômenos
já enraizados podem ter sido decisivos na vitória de Donald Trump. E que haja
superficialidade quando se restringem as causas ao chamado populismo de
direita, com seus ataques às elites (forte nota anti-Establishment), aos
imigrantes, à globalização. E logo relacionar fortemente o fenômeno com o Brexit,
com situações de traços próximos na França, Turquia, Hungria, também em boa
parte analisadas com estereótipos deformantes. De passagem, a indicação de Reince
Priebus, presidente do Comitê Nacional do Partido Republicano, para chefe da
Casa Civil, salienta quanto de artificial havia na nota anti-Establishment da
campanha.
Coloco o holofote em fatos empurrados para a sombra. Em
17 de agosto Donald Trump demitiu Paul Manafort, chefe de campanha, cuja linha
de propaganda pode ser resumida numa de suas declarações: “Como meu pai, Trump
compreende os americanos trabalhadores. A mágica de sua campanha foi se
conectar com as frustações que existem hoje nos Estados Unidos”. Era a ênfase
na raiva do homem branco, de pouca instrução, penando no desemprego ou ameaçado
por ele. O dirigente foi substituído por Kellyanne Conway, conhecida líder do
movimento Pro-Life. Ela mudou o rumo, salientou valores tradicionais da família
americana, em especial a recusa ao aborto. Nunca antes o candidato republicano
se havia destacado na defesa de tais valores. No último debate, Trump afirmou:
“Sou pro-life e indicarei juízes pro-life para a Suprema Corte. Talvez três”. O
candidato falou do horror do aborto até mesmo em gestantes com nove meses de
gravidez. A respeito desta última possibilidade, defendida por partidários de Hillary
Clinton, a candidata evitou se
posicionar. Quanto ao restante foi clara ali no debate e em outras ocasiões, iria
promover a liberalização do aborto e outras pautas da agenda libertária, como
casamento homossexual.
A maioria dos analistas minimiza três pontos na
derrota de Hillary Clinton: legalização do casamento homossexual, generalização
do aborto, proibição do porte de armas. Realço ainda o medo que eleitores
conservadores tinham de que para a Suprema Corte fossem indicados três juízes
alinhados com as posições de Hillary Clinton. Dos nove membros, hoje atuam
oito; faleceu o juiz Scalia, em geral conservador. Dois juízes de tendências
liberais estão próximos da saída: Ruth Bader Ginsburg, 83, e Stephen Breyer,
78. Três membros novos da Suprema Corte com boa orientação geral podem frear
muito da desagregação social promovida por poderosas correntes libertárias nos
Estados Unidos. Foi esperança que animou muita gente. Em suma, houve um
despertar conservador na última fase da campanha. A virada repercutiu fundo nos
votos do Colégio Eleitoral, surpreendendo a imensa maioria da imprensa.
Brasil. A América do Sul não é prioridade da nova
administração. Não digo América Latina, digo América do Sul. México, Cuba,
situações políticas na América Central estão sempre no radar dos políticos em
Washington.
O Brasil será prioridade se, no estradão certo, caminhar
por longos anos para se colocar à altura de seu destino natural. Para isso, será
preciso ordenar o apavorante ensino básico, médio e universitário. A respeito,
nas várias pesquisas internacionais sempre ficamos na rabeira. E ainda melhorar
a infraestrutura, reformar a legislação fiscal, previdenciária, trabalhista,
diminuindo o “custo Brasil”, estimulando investimentos. O intervencionismo
socialista trava nosso crescimento há décadas. Voltando a crescer na
estabilidade o país será tomado a sério pelos Estados Unidos.
Protecionismo e isolacionismo, duas tendências, sempre
recorrentes na história norte-americana, e não prejudicam apenas o Brasil.
Ameaçam o futuro livre do Ocidente. Diversas declarações de Donald Trump pagam
preocupante tributo a eles. O quadro toma cores mais sombrias com a anunciada
aproximação a Vladimir Putin e Xi Jinping. É impossível não se lembrar de
Yalta. Ali, os chefes de governo dos Estados Unidos, Rússia e Inglaterra,
respectivamente Roosevelt, Stalin e Churchill, reuniram-se para decidir o fim
da guerra e repartir zonas de influência. Com base no que se combinou naquele
balneário e no espírito que de lá emanou, a Rússia comunista consolidou seu
império de vergonha e expandiu conquistas.
O temor agora é retraimento dos Estados Unidos e,
coerente, nova repartição de zonas de influência, agora entre três atores:
Washington, Pequim e Moscou. Ângela Merkel certamente teve tal preocupação em
mente quando enviou recado a Donald Trump: “Sabemos que o presidente foi eleito
em eleições justas. [...] Os Estados Unidos têm uma enorme força militar e são
responsáveis por tudo o que acontece no mundo. Os norte-americanos decidiram
que nos próximos anos essa responsabilidade estará a cargo de Donald Trump. A
Alemanha e os Estados Unidos compartilham valores, democracia, liberdade,
respeito pelos direitos humanos, dignidade. Nessa base, ofereço cooperação ao
futuro Presidente dos Estados Unidos”. Jens Stoltenberg, secretário-geral da
NATO, foi mais contundente; advertiu que o Ocidente enfrenta seu maior desafio
de segurança em uma geração: “Caminhar sozinho não pode ser uma escolha, nem
para os Estados Unidos, nem para a Europa”. É hora de fortalecer o que “une”,
sob “forte liderança norte-americana”.
Não duvido, o premiê
japonês gostaria de enviar recados parecidos. Donald Trump prometeu abandonar a
TPP (sigla em inglês de Trans-Pacific
Partnership, Parceria Transpacífico) nos primeiros 100 dias. Ela inclui Estados Unidos da América, Japão, Canadá, México, Peru, Chile, Cingapura,
Austrália, Brunei, Malásia, Nova Zelândia, Vietnã. Já anunciaram interesse em
dela participar Coreia do Sul, Taiwan, Colômbia, Indonésia, Filipinas e
Tailândia. As declarações podem ter sido mero foguetório de campanha. Contudo,
se suceder vácuo comercial no Pacífico decorrente do isolacionismo, um país o
preencherá rapidamente: China.
Hora de vigilância. Deus queira, no fim, o caminho
seguido pelos Estados Unidos esteja em harmonia com as responsabilidades universais
manifestadas, uma vez mais, com a fundação da NATO em 4 de abril de 1949 o que,
por contraste, naquela ocasião evidenciou o caráter destruidor do espírito de
Yalta.
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