quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Cristandade

Cristandade

Péricles Capanema

Cristandade, realidade esquecida, enterrada, até vilipendiada. O progressismo a abomina, tantos católicos, mesmo de boa orientação, substituem o termo por outros, temerosos de empregar anacronismo não mais aceito, nem sequer tolerado em certos círculos. Na Grécia antiga pela pena do ostracismo o cidadão era expulso do convívio de seus pares. Cristandade parece tê-la sofrido. Fale dela em seus círculos, qualquer deles, vão torcer o nariz. Deveria ser o contrário.

Expressa realidade luminosa. No paganismo, as duas ordens, espiritual e temporal, confundiam-se. Na Cristandade, a ordem temporal e a ordem espiritual, distintas, são harmônicas. Duas passagens do evangelho de são João expressam tal realidade: “Meu reino não é desse mundo; se o meu reino fosse desse mundo, certamente que os meus ministros haviam de se esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus”. Logo a seguir: “Tu o dizes, sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade, todo o que está pela verdade, ouve a minha voz”.

Ao Velho Continente (excluo a Rússia cismática) a Cristandade ia imprimindo um rumo de autêntica civilização, de liberdade e progresso, em que pese carências, erros e até crimes em muitos de seus propugnadores. A Europa tudo deve a ela. Foi dinamitada. A Revolução Protestante, a Revolução Francesa e, finalmente, a Revolução Comunista reduziram a cacos a Cristandade. Mas ficou um imorredouro rastro de luz, saudades em toda parte da doçura de vida, respeito e elevação que, tantas vezes apenas germinativamente, começavam a reger a Europa inteira.

Vitorioso, o laicismo proclamou a ruptura entre a ordem espiritual e a ordem temporal. No começo, blasonou liberdade, isenção, Igreja livre num Estado livre. Hoje, cada vez mais, revela a face intolerante, fundamentalista e totalitária. Quer encantoar as manifestações religiosas ao interior dos lares ou às sacristias. À espera de sufocá-las por completo. Nada na vida do Estado, das empresas e das escolas poderia manifestar convicções cristãs. Nem um singelo crucifixo nas paredes.

Por que digo tudo isso? Por que me encantei com inesperados ecos de Cristandade. Pedro Pablo Kuczynski, presidente do Peru, em 21 de outubro, diante de deputados, senadores, da Presidente do Congresso, de figuras representativas da economia e da educação, consagrou o País ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria: “Eu, Pedro Pablo Kuczynski, presidente da República do Peru, com a autoridade que me foi outorgada, faço um ato de consagração da minha pessoa, minha família, aqui presente minha esposa, da República do Peru ao amor e proteção de Deus Todo Poderoso pela intercessão do Sagrado Coração de Jesu e do Imaculado Coração de Maria. Coloco em suas mãos amorosas meu governo com todos seus trabalhadores e cidadãos que estão sob minha responsabilidade. Ofereço a Deus Todo Poderoso meus pensamentos e decisões como presidente para que os utilize para o bem de nosso país e quero sempre estar consciente dos Dez Mandamentos ao governá-lo. Pela intercessão do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria peço a Deus que escute e aceite meu ato de consagração e cubra nosso país com sua proteção especial. Ao fazer esta oração, peço a Deus perdão por todas as transgressões que cometi no passado, todas que foram feitas no passado da República e por todas as decisões que foram tomadas contra seus mandamentos e Lhe peço ajuda par mudar tudo o que nos separa d’Ele. Eu, Pedro Pablo Kuczynski como presidente da República do Peru declaro este juramento solene diante de Deus e os cidadãos de nosso país hoje, 21 de outubro de 2016.

Pouco dias antes, em 2 de outubro, Pedro Pablo Kuczynski havia condecorado a uma freira carmelita de clausura, madre María Soledad de Nuestra Señora de Guadalupe com uma das distinções mais importantes do Peru, a Orden al Mérito por Servicios Distinguidos. À irmã Soledad. espanhola que vive há mais de 50 anos no Peru, o Presidente disse: “Outorgo-lhe esta ordem ao mérito no grau de comendador por seus serviços à Cristandade, ao Peru, e por tudo o que por nós fez”. A freira respondeu: “Agradeço-lhe [...] para que o reino de Cristo avance”. A alta condecoração a uma humilde freira de clausura merece estar no mesmo olhar que analisa a consagração.

Tradición y Acción, valoroso e meritório movimento peruano, em análise bem fundamentada e corajosa, pediu ao Presidente coerência com seu ato. Tem razão, a consagração, para ter inteiro valor, precisa expressar a intenção reta do coração e o propósito firme de agir segundo ela. E admito que o Presidente, pelo menos em parte, foi movido em seu ato por uma efetiva exigência de setores da opinião do País, o que no povo revela vigoroso sintoma de fidelidade à Igreja.


Mas hoje eu queria falar é de outra coisa. Atos assim, provenientes de sua mais alta autoridade, por exemplo, nunca aconteceram no Brasil, motivo de tristeza perene para nós. Décadas atrás, e em especial no século 19, ocorreram em numerosos países, mas a pressão do ambiente moderno os eliminou. Por imposição do laicismo sulfúrico com a conivência satisfeita do progressismo, hoje inexistem. Sucederam no Peru, ecoaram, lembram Cristandade. Tudo o que lembra Cristandade merece registro.

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