domingo, 17 de julho de 2016

A lei do mais fraco

A lei do mais fraco

Péricles Capanema

O mundo continua terrificado com o ataque do caminhão assassino matando gente satisfeita e inocente que numa avenida de Nice observava despreocupada o fim da feeria de fogos celebrando o 14 de julho comemorativo da Revolução Francesa.

Até agora, pelo que leio, 84 pessoas mortas e 202 feridas. Com certeza, subirá o número de mortos. O Estado Islâmico reivindicou o ato terrorista e qualificou de “soldado” Mohamed Lahouaiej Bouhlel: “O autor da operação é um soldado do Estado Islâmico. Executou a operação em resposta aos chamados para atacar cidadãos dos países da coalizão internacional que lutam contra o EI no Iraque e na Síria”. Provavelmente haverá outros atentados suicidas nas semanas e meses pela frente. Foi essa, por sinal, a advertência de Manuel Valls, primeiro-ministro francês: “A partir de agora a ameaça terrorista é uma questão central, durável, outras vidas serão ceifadas. Devo a verdade aos franceses, o terrorismo fará parte de nossa vida por muito tempo. O risco zero não existe, afirmar o contrário seria mentir aos franceses”.

Pelas circunstâncias, aqui tem peso enorme o argumento de autoridade. Razões de natureza diferente vão na mesma direção. O Estado Islâmico está perdendo territórios, em especial depois que ataques demolidores da Força Aérea norte-americana estão desobstruindo os caminhos para a reconquista terrestre por tropas iraquianas. Já caiu Fallujah; não demora, Mossul será reconquistada. O califado, tudo o indica, tem seus dias contados. Mas não o movimento jihadista que o fundou e ele precisa mostrar poder, energia, vida. É razoável supor que, para se manter no panorama, recorrerá cada vez mais a atentados suicidas.

Nesse particular, a França é escolha óbvia. Tem enorme população francesa muçulmana, segunda e terceira geração, dispersa em periferias empobrecidas e de alta criminalidade, alvo fácil do proselitismo jihadista. Não são refugiados nem imigrantes, são cidadãos franceses, falam francês, despertam menos suspeitas. Houve ali sete atentados nos últimos meses. Outras escolhas óbvias: enxameiam em todo o Ocidente os soft targets: praças e ruas lotadas de gente, com pouca possibilidade efetiva de policiamento.

O Estado Islâmico quis matar os 84? Quis suas propriedades? Não lhe importa a vida e a propriedade das vítimas. Contudo, não é cega a violência, tem objetivo psicológico e moral: amolecer resistências aos fins visados por seus dirigentes. Modo diferente, criar insegurança, disseminar mentalidades derrotistas. Desorientada, abatida e dispersa, a maioria acomodatícia aceitará acordos calamitosos diante de forças fortemente minoritárias, organizadas e inescrupulosas, em geral com pouca capacidade de expansão.

É tática nova? Antiga, recorrente e atual. Está sendo aplicada, de momento com êxito, na Colômbia. Foi aplicada com razoável sucesso pelos líderes da Revolução Francesa, tornando viável a vitória da Gironda (a corrente de programa moderado), aceita ou tolerada por grandes setores da opinião aterrorizados com a aplicação do programa da Montanha (os setores radicalizados). Curioso, não vi ninguém chamar a atenção para o paradoxal da cena de Nice. Os comentários contrastavam “liberdade, igualdade, fraternidade” com o morticínio, mas silenciaram sobre os métodos que asseguraram a vitória do lema. Vou aproveitar e pôr pingos em cima de alguns is. Nenhum historiador sério esconde, a Revolução Francesa utilizou o terror maciço e de certa forma por meio dele se consolidou. Digamos, de 1789 até 1794, para firmar a Revolução, os revolucionários fuzilaram cerca de 30 mil, guilhotinaram perto de 20 mil, dizimaram centenas de milhares de franceses opositores. Só na Vendeia, mais de 200 mil. A carta do general Westermann à Convenção (o poder em Paris) celebrando a vitória contra oposicionistas ficou na História como macabra e elucidativa expressão da tática: “A Vandeia já não existe mais. Morreu debaixo de nossa espada livre, com suas mulheres e suas crianças. Acabou a Vendeia, cidadãos republicanos, acabei de enterrá-la nos pântanos e nos bosques de Savenay, seguindo as ordens que recebi de vós. Esmaguei as crianças debaixo das patas dos cavalos, massacrei as mulheres para que não mais deem à luz bandidos. Não tenho um prisioneiro a me pesar na consciência, matei todos”.

O terror continuou como meio de intimidação e conquista. O governo de Napoleão, no período de estabilização da Revolução Francesa, o Consulado, de forma ilegal e inescrupulosa, raptou na Alemanha e depois de julgamento sumário fez fuzilar em março de 1804 na fortaleza de Vincennes o duque de Enghien, então com 31 anos, primo do rei exilado Luís XVIII. Para quê? Inibir reações. Parte da oposição, intimidada, passaria a aceitar acordos que ainda salvassem alguma coisa da ordem antiga.


Foi o que fez Lênin, de igual modo assim agiu Stalin, E também Hitler. Agora, cientes da utilização do terror em episódios históricos, temos diante de nós o terror sistemático do islamismo radicalizado. O efeito, com o tempo, diante do medo, desorientação e caos, poderá ser a disseminação muito ampla de mentalidade derrotista. Homens de mentalidade derrotista cedem fácil para supostamente evitar o pior. É o ceder muito para não perder tudo. Aconteceu com efeitos desastrosos no passado. A fórmula correta aponta rumo oposto: o terror é arma chantagista dos mais fracos. Evitando concessões suicidas, a reação lúcida e enérgica é o único caminho de salvação.

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