A lei do mais fraco
Péricles Capanema
O mundo continua terrificado com o ataque do caminhão
assassino matando gente satisfeita e inocente que numa avenida de Nice observava
despreocupada o fim da feeria de fogos celebrando o 14 de julho comemorativo da
Revolução Francesa.
Até agora, pelo que leio, 84 pessoas mortas e 202
feridas. Com certeza, subirá o número de mortos. O Estado Islâmico reivindicou
o ato terrorista e qualificou de “soldado” Mohamed Lahouaiej Bouhlel: “O autor da operação é um soldado
do Estado Islâmico. Executou a operação em resposta aos chamados para atacar
cidadãos dos países da coalizão internacional que lutam contra o EI no Iraque e
na Síria”. Provavelmente haverá outros atentados suicidas nas semanas e
meses pela frente. Foi essa, por sinal, a advertência de Manuel Valls,
primeiro-ministro francês: “A partir de agora a ameaça terrorista é uma questão
central, durável, outras vidas serão ceifadas. Devo a verdade aos franceses, o
terrorismo fará parte de nossa vida por muito tempo. O risco zero não existe, afirmar
o contrário seria mentir aos franceses”.
Pelas circunstâncias, aqui tem peso enorme o argumento
de autoridade. Razões de natureza diferente vão na mesma direção. O Estado
Islâmico está perdendo territórios, em especial depois que ataques demolidores da
Força Aérea norte-americana estão desobstruindo os caminhos para a reconquista
terrestre por tropas iraquianas. Já caiu Fallujah; não demora, Mossul será
reconquistada. O califado, tudo o indica, tem seus dias contados. Mas não o
movimento jihadista que o fundou e ele precisa mostrar poder, energia, vida. É
razoável supor que, para se manter no panorama, recorrerá cada vez mais a
atentados suicidas.
Nesse particular, a França é escolha óbvia. Tem enorme
população francesa muçulmana, segunda e terceira geração, dispersa em
periferias empobrecidas e de alta criminalidade, alvo fácil do proselitismo
jihadista. Não são refugiados nem imigrantes, são cidadãos franceses, falam
francês, despertam menos suspeitas. Houve ali sete atentados nos últimos meses.
Outras escolhas óbvias: enxameiam em todo o Ocidente os soft targets: praças e ruas lotadas de gente, com pouca
possibilidade efetiva de policiamento.
O Estado Islâmico quis matar os 84? Quis suas propriedades?
Não lhe importa a vida e a propriedade das vítimas. Contudo, não é cega a
violência, tem objetivo psicológico e moral: amolecer resistências aos fins
visados por seus dirigentes. Modo diferente, criar insegurança, disseminar mentalidades
derrotistas. Desorientada, abatida e dispersa, a maioria acomodatícia aceitará acordos
calamitosos diante de forças fortemente minoritárias, organizadas e inescrupulosas,
em geral com pouca capacidade de expansão.
É tática nova? Antiga, recorrente e atual. Está sendo
aplicada, de momento com êxito, na Colômbia. Foi aplicada com razoável sucesso
pelos líderes da Revolução Francesa, tornando viável a vitória da Gironda (a
corrente de programa moderado), aceita ou tolerada por grandes setores da
opinião aterrorizados com a aplicação do programa da Montanha (os setores
radicalizados). Curioso, não vi ninguém chamar a atenção para o paradoxal da
cena de Nice. Os comentários contrastavam “liberdade, igualdade, fraternidade” com
o morticínio, mas silenciaram sobre os métodos que asseguraram a vitória do
lema. Vou aproveitar e pôr pingos em cima de alguns is. Nenhum historiador
sério esconde, a Revolução Francesa utilizou o terror maciço e de certa forma
por meio dele se consolidou. Digamos, de 1789 até 1794, para firmar a
Revolução, os revolucionários fuzilaram cerca de 30 mil, guilhotinaram perto de
20 mil, dizimaram centenas de milhares de franceses opositores. Só na Vendeia,
mais de 200 mil. A carta do general Westermann à Convenção (o poder em Paris) celebrando
a vitória contra oposicionistas ficou na História como macabra e elucidativa
expressão da tática: “A Vandeia já não existe mais. Morreu debaixo de nossa
espada livre, com suas mulheres e suas crianças. Acabou a Vendeia, cidadãos
republicanos, acabei de enterrá-la nos pântanos e nos bosques de Savenay,
seguindo as ordens que recebi de vós. Esmaguei as crianças debaixo das patas
dos cavalos, massacrei as mulheres para que não mais deem à luz bandidos. Não
tenho um prisioneiro a me pesar na consciência, matei todos”.
O terror continuou como meio de intimidação e
conquista. O governo de Napoleão, no período de estabilização da Revolução
Francesa, o Consulado, de forma ilegal e inescrupulosa, raptou na Alemanha e
depois de julgamento sumário fez fuzilar em março de 1804 na fortaleza de
Vincennes o duque de Enghien, então com 31 anos, primo do rei exilado Luís
XVIII. Para quê? Inibir reações. Parte da oposição, intimidada, passaria a
aceitar acordos que ainda salvassem alguma coisa da ordem antiga.
Foi o que fez Lênin, de igual modo assim agiu Stalin,
E também Hitler. Agora, cientes da utilização do terror em episódios históricos,
temos diante de nós o terror sistemático do islamismo radicalizado. O efeito,
com o tempo, diante do medo, desorientação e caos, poderá ser a disseminação muito
ampla de mentalidade derrotista. Homens de mentalidade derrotista cedem fácil
para supostamente evitar o pior. É o ceder muito para não perder tudo. Aconteceu
com efeitos desastrosos no passado. A fórmula correta aponta rumo oposto: o
terror é arma chantagista dos mais fracos. Evitando concessões suicidas, a
reação lúcida e enérgica é o único caminho de salvação.
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