quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

É sério, no Oriente Médio estamos esquecidos do katechon

É sério, no Oriente Médio estamos esquecidos do katechon

Péricles Capanema

São Paulo fala do katechon na 2ª carta aos tessalonicenses, realidade misteriosa, obstáculo a ser removido para tornar possível a vinda do Anticristo. Os exegetas disputam sobre o que seria o obscuro katechon. Uns afirmavam, seria o Império Romano, estrutura de defesa, cuja destruição abriria as comportas ao caos e possibilitaria a chegada do Filho da Perdição.

Sem título algum para meter o bedelho, reconheço, é conceito instigante, já inspirou pensadores de valor, em especial na Europa. O katechon me veio à mente quando lia horrorizado sobre o Estado Islâmico instalado em pedaços da Síria e do Iraque, seus atentados terroristas, carnificinas boçais, os homens-bomba, e as gigantescas ondas de refugiados que desesperados buscam a Europa. O caos, as matanças, a miséria crescente e sem fim, a mentira com ares de verdade, a desorganização de toda a vida, parecem criação de cenário para a chegada de um anticristo.

Por que tudo isso aconteceu? Foi isso, atinei: desprezaram o katechon. Calma, vou me explicar. O Império Romano, o único espaço de convivência civilizada no mundo antigo, rodeado de tribos bárbaras, afundou no gozo da vida, dissolveu-se, ruiu o katechon. Vieram as invasões e o caos na Europa. Foram séculos para se recompor.

A Europa das grandes potências, em especial Inglaterra e França, em acepção analógica, era o katechon do Oriente Médio, aqui está o ponto. Com a queda do Império Otomano e a inoperância do mandato francês e do inglês, aquela região se tornou presa dos demônios da desordem, como esteve a Europa quando caiu o Império Romano. Apareceram países novos, em boa medida construções artificiais de sonhadores desatentos de enraizadas realidades históricas. Apenas um exemplo, o Iraque moderno, criação inglesa. Só em 1932 teve a independência reconhecida. Veio um período de monarquia frágil, sucedida por ditadores sem escrúpulo. Saddam Hussein que o governou de 1968, como vice-presidente, e a partir de 1979 como presidente, foi o melhor exemplo do desamparo do Oriente Médio. Na repressão aos curdos, matou 180 mil pessoas; na repressão aos xiitas, 230 mil. A guerra com o Irã custou ao Iraque cerca de 400 mil mortos. Na Síria moderna, com independência reconhecida em 1946, só a repressão da cidade de Hama, ordenadaem 1982 por Hafez Assad, teve, dizem muitos, 40 mil mortos. Situações parecidas na Líbia, Irã, nas monarquias do Golfo Pérsico.

Tal caldo de cultura pestilento tornou possível, por alguns lados a bem dizer incoercível, o surgimento do Estado Islâmico, paroxismo incubado nos horrores que há décadas padecem os países do Oriente Médio.

E por quê? Aqui, o ponto a ressaltar. Em grande medida, são os frutos cruéis do utopismo humanitário dominante no Ocidente, em especial em seus setores bem escolarizados em escolas de má orientação. Nada mais cruel para a realidade que um utopista, obstinados mitomaníacos do sonho. Os fatos agridem as alegações supostamente idealistas.

Vamos recordar. Em primeiro lugar, a tutela da região, seja lá como foi feita, grosso modo esteve por séculos a cargo do Império Otomano. Vencido na 1ª Guerra Mundial, desintegrou-se. Cortando caminho, a tutela passou, por encargo da Sociedade das Nações, para a Inglaterra e França. Depois, aqui também simplificando, já sob a égide da ONU, deu-se ali a emancipação completa de vários países e, por anos sem fim, fatos dantescos em catadupa.

Que espírito presidiu no Ocidente a todas essas mudanças? Repito, desde a década de 20, o mais desarmado utopismo humanitário. Em vez da observação objetiva das circunstâncias, da análise sem romantismos dos fatores em jogo, foi dominante a proclamação irresponsável de princípios ditos generosos, cuja aplicação retilínea era dogmaticamente vista como solução genial. Um exemplo gritante está na Resolução 1514 da Assembleia Geral de 14 de dezembro de 1960 contra o colonialismo. Vou pinçar algumas frases dela. “Consciente da necessidade de criar condições de estabilidade e bem-estar e relações pacíficas e amistosas baseadas no respeito aos princípios de igualdade de direitos e à livre determinação dos povos, e de assegurar o respeito universal dos direitos humanos e as liberdades fundamentais para todos sem fazer distinção por motivo de raça, sexo, idioma ou religião, e a efetividade de tais direitos e liberdades”. Valia como panaceia universal de rápida aplicação. No Oriente Médio aconteceu exatamente o contrário: acabou a estabilidade, sumiu o bem-estar, desapareceram as relações pacíficas, não restou nada de amistoso na região, o fundamentalismo mais enlouquecido tomou o poder em boa parte dela.

“Convencida que a continuação do colonialismo impede o desenvolvimento da cooperação econômica internacional, dificulta o desenvolvimento social, cultural e econômico dos povos dependentes e age contra o ideal de paz universal das Nações Unidas”. A situação lá em geral não era especificamente colonial, mas tinha traços parecidos. E sucedeu aqui também o contrário: a independência completa trouxe o fim da cooperação econômica, dificultou o desenvolvimento social e cultural, e hoje ameaça a paz universal.


Paro por aqui. O epicurismo destruiu o Império Romano. O utopismo humanitário destruiu as salvaguardas sensatas que a sabedoria diplomática aconselharia no Oriente Médio, um processo gradual e seguro rumo à soberania plena, com respeito às peculiaridades existentes. E enfrentamos agora, lá o horror, cá a ameaça terrorista, tida pelos norte-americanos como seu mais grave problema.

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