Estranhezas
Cristiano Martins da Costa
Pastoreio com aboio uníssono e clareza de rumos.
Anunciei série de três artigos (dois já divulgados)
sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus que ganhou atualidade renovada com as
celebrações do 350º aniversário das Grandes Aparições (1673 a 1675) em Paray-le-Monial
a santa Margarida Maria Alacoque, bem como pela publicação da encíclica “Dilexi
nos” do Papa Francisco em 24 de outubro último sobre referida devoção. Informava,
no terceiro artigo discorreria, ainda que brevemente, sobre posições que “deram
azo a manifestações de surpresa (para não dizer estranhezas)”. É o momento do último
artigo da série. O espaço não é longo, exige síntese, escolhi então examinar no
documento papal em especial o pastoreio (no caso, supremo). Tive um choque. Já avançando
algum tanto no objeto do artigo, mas arrastado pela força incoercível da lógica,
o exame desembocou na penosa constatação de não raramente, como se verá abaixo,
a encíclica se apresenta pejada de confusões desnorteadoras, bem como de nebulosidade
doutrinária e pastoral. Mais ainda, por vezes constam posições que ▬ de joelhos
atesto-o ▬ apresentam pontos discrepantes, quase diria rupturas, com o
magistério pontifício anterior. Fatos que, reitero, causam estranheza. É o que
veremos agora.
Timbre inconfundível de voz na continuidade do
aboio. Pequena digressão. A descrição do zagal clássico
pode rescender à Palestina da Antiguidade, emanar aromas do pastoreio bíblico, já
deixados de lado pelas técnicas modernas de ovinocultura que teriam características
distintas. Nada disto está em foco e de fato não importa. O pegureiro e o pastoreio,
nos casos em espécie, são metáforas, têm fonte nas Escrituras, veem sendo utilizadas
por milênios. Em acepção muito geral, indica direção de grupos humanos. São perenes
então as imagens poéticas e elucidativas do passado. Avante. O pastor, diante de
seu rebanho, precisa ter aboio uníssono, igual timbre de voz, odor conhecido; quem
sabe, vestir o mesmo manto. E levar a rotas e pastagens de parecida configuração
geral, que não causem estranheza ao pegulhal. Em outras palavras, o pastor
precisa ser inconfundível, mostrar continuidade, provocando serenidade no
rebanho; não pode aparecer como fautor de rupturas, dando origem a desorientação,
estranheza e até recusa.
Continuidade no apascentar. A continuidade, no caso, tem o grande esteio nas Escrituras.
“Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida por suas ovelhas. Mas o mercenário,
e o que não é pastor´[...] vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge; e o lobo as
arrebata e dispersa as ovelhas. [...] Eu sou o bom Pastor, e conheço as minhas
ovelhas, e minhas ovelhas me conhecem. Assim como o Pai me conhece a mim, também
eu conheço o Pai, e dou a minha vida pelas ovelhas. Ainda tenho outras ovelhas que
não são deste aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz,
e haverá um só rebanho e um só Pastor” Sobre a clareza na direção, doutrinária e
pastoral, lembro, entre outras, a passagem conhecida: “Seja o seu 'sim', 'sim',
e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno”.
Confusão desorientadora. Pio XII, na “Haurietis Aquas”, escreve, aludindo ao Sagrado
Coração “mais do que qualquer outro membro do seu corpo, o seu coração é o índice
natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o gênero humano”. E continua
o ensinamento pontifício, esteando-se agora na autoridade do antecessor Leão XIII:
“Como observava o nosso predecessor Leão XIII, de imortal memória, ‘é ínsita no
sagrado coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade
de Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor’”. Magistério simples,
claro, incontroverso. Todo o documento de Pio XII, densamente doutrinário e
pastoral, é do mesmo teor. Cita, em 51 notas, pontífices, padres da Igreja, as Escrituras,
santo Tomás de Aquino, devocionários, para embasar seu ensino que sempre flui seguro,
singelo e inconcusso. É natural, a gravidade do documento magisterial, encíclica,
levou Pio XII a buscar esteios nos grandes nomes da história doutrinária da Igreja.
Trilha desorientadora. Escolheu caminho distinto o Papa Francisco. Para esclarecer
a noção de coração, o Papa Francisco, em documento de 227 notas, cita, entre outros,
Homero, o grego clássico, Platão, a própria avó, Zygmunt Bauman (não o cita explicitamente,
mas utiliza acriticamente conceitos deste filósofo polonês, por muitos considerados
como ateu e marxista ▬ “mundo líquido”, “sociedade líquida” com inequívoca origem
em “sociedades líquidas” e “instituições líquidas”), Dostoievski, Romano Guardini,
Heidegger, Karl Rahner, Han Byung-Chul, Michel de Certeau. Esta embrulhada de autores
aportaria concepções enriquecedoras sobre o significado do coração. Não é possível
num simples artigo analisar com rigor cada um de seus conceitos inseridos no
diploma papal. Um fato, porém, é claro: a citação em documento pontifício de altíssima
autoridade, tantas vezes acompanhada de simpatia, favorece a nomeada de tais autores,
entre os quais há teólogos de reputação controvertida, pensadores que difundem doutrinas
claramente opostas ao Catolicismo, propugnadores no terreno de pensamento de teses
opostas ao que sempre ensinou a Igreja. Para não me alongar, recorro a um
testemunho de Dostoievski: “Tenho de proclamar a minha incredulidade. Para mim não
há nada de mais elevado que a ideia da inexistência de Deus.” Reproduzo a
seguir o trecho que deu origem à citação de Dostoievski (um personagem seu, chamado
Stavroguine, segundo Romano Guardini, encarnação do mal por não possuir coração).
E Romano Guardini, notoriamente teólogo controvertido escreve o seguinte, posto
elogiosamente na encíclica: “Estar em intimidade com o íntimo, no espírito, não
é do domínio humano. Mas quando o coração não vive, o homem encontra-se ao lado
de si mesmo”. Primeira pergunta: “É realmente inteligível o que aí está? Terá havido
no texto português algum erro de tradução? O que poderá significar: ‘estar em intimidade
com o íntimo no espírito não é do domínio humano’”? Segunda pergunta: “Favorece
a ortodoxia? Favorece a pastoral? Onde está a clareza, a singeleza, o
incontroverso do bom magistério”? O timbre não é o anterior; o aboio não é o
anterior. É inevitável que brote do fundo da alma a sensação de ruptura com o
pastoreio de sempre. Terceira pergunta: “Buscar fundamentos em autores controvertidos,
adversários do magistério eclesiástico (a mais, seja-me permitido constatar e
salientar, bastante confusos nos textos selecionados) favorece a devoção ao Sagrado
Coração? O caminho escolhido não foi apenas distinto; revelou-se discrepante. Estranheza,
outra vez.
Zelo missionário estranho. Farei a seguir apenas três comentários. O Papa Francisco
liga a devoção ao Sagrado Coração com o zelo missionário. E ensina sobre o dever
do missionário zeloso, “custa-lhes perder tempo [...] a impor verdades e regras.
[...] [...] Não há proselitismo nessa dinâmica do amor”. Constato com tristeza
a forma algum tanto depreciativa para o missionário, pois o missionário zeloso
não impõe verdades. Prega-as, procura convencer. Não é perder tempo procurar
convencer alguém das verdades evangélicas. E não há proselitismo em tal missão?
Inexiste esforço de fazer prosélitos; catequese, apostolado? Que amor de Cristo
será este? “Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai,
e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos
tenho mandado”. Na encíclica “Evangelii Praecones”, dedicada às missões, Pio
XII, trilhando as pegadas de seus antecessores, apresenta como exemplos
insignes de zelo missionário o apostolado (proselitismo) de leigos que se
esforçavam em trazer à Igreja populações pagãs ou afundadas na heresia: “Sucedendo-se
na Idade Média as invasões bárbaras, vemos homens e senhoras nobres e até
humildes operários e incansáveis mulheres do povo esforçarem-se sem descanso
por ganhar profundamente os seus compatriotas para a religião de Jesus Cristo.
[...] Teodolinda, rainha dos lombardos, levou seu povo a abraçar a religião
cristã. Na Espanha, o rei Recaredo esforçou-se por reconduzir os súditos da
heresia ariana à verdadeira fé. Na França, não só aparecem bispos [...]mas
também rainhas que ensinaram aos ignorantes a verdade cristã, que deram de
comer, aliviaram ou reanimaram doentes, famintos e toda a espécie de
necessitados”. [...] Todos conhecem a atividade da rainha santa Isabel na
Hungria, do rei são Fernando em Castela e de são Luís IX em França; com
santidade de vida e ação perseverante, comunicaram força renovadora às várias
classes da sociedade, fundando instituições benéficas, fazendo chegar a
verdadeira religião a toda parte”. Como impedir que surja irrefreável a
sensação de descontinuidade entre um ensinamento e outro? O timbre é outro.
Estranheza.
Censura à liturgia faustosa. Afirma a “Dilexi nos”: “A proposta cristã é atrativa quando
pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio
em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos”. Está dito acima, a proposta
cristã não é atrativa, quando vivida e manifestada em cultos faustosos. As
pompas litúrgicas, louvadas por séculos por Pontífices e bispos, utilizadas por
milênios como instrumento precioso de apostolado, retiram da Igreja Católica
sua atratividade? A censura pouco velada não vai além Mas permanece a impressão
de recusa à liturgia faustosa. Como evitar aa estranheza?
Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, expressão,
lema e tema injustamtne acobertados. Muito
especialmente no século 19 a devoção ao Sagrado Coração esteve ligada à
aspiração do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo; em outras palavras, à
restauração da ordem temporal cristã. Em outras palavras, reino nas almas e reino
nas sociedades. No século 20, foram numerosos a respeito os ensinamentos da
Hierarquia eclesiástica.
Régio poder de Cristo. Ocasião ápice de tal impulso virtuoso foi a publicação
da encíclica “Quas Primas” de Pio XI em 11 de dezembro de 1925, reiterando o ensinamento
comum dos Pontífices e reafirmando os direitos de Nosso Senhor Jesus Cristo não
apenas sobre o interior das consciências, mas também sobre as sociedades. Dali
retiro pequenos extratos: “Não há meio mais eficaz de restabelecer e fortalecer
a paz que procurar a restauração do reinado de Jesus Cristo. [...] Se os
homens, pública e privadamente, reconhecerem o régio poder de Cristo,
necessariamente virão para toda sociedade civil benefícios sem-número como
justa liberdade, tranquilidade, paz e concórdia”. Acima, a doutrina e a
linguagem usual no ensinamento pontifício (o timbre da voz do pastor, se
quisermos ainda o seu aboio). Na “Dilexis nos”, lemos sobre o mesmo tema: “através dos cristãos, ‘o amor difundir-se-á
no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo que é a Igreja e se
edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade’ [223]. Na nota 223 se tem
a origem da frase assumida com evidente aprovação pelo Papa Francisco; está em carta
de dom Louis-Marie, arcebispo de Lyon. O que importa ressaltar no momento é o
distanciamento entre as duas linguagens. A segunda, enunciando como meta a
“sociedade de justiça, paz e fraternidade” tem timbre contemporâneo, nada
especial, poderia ser respigada sem dificuldades entre documentos que, por
exemplo, órgãos da ONU publicam. Ou de declarações de qualquer outra
organização internacional e até mesmo de tomadas de posição de algum Partido
Comunista. Nada mais comum, impreciso e enevoado. A primeira, “restauração do
reinado de Jesus Cristo, se os homens, pública e privadamente, reconhecerem o régio
poder de Cristo” tem força, origem inequívoca, é límpida, denota continuidade, ecoam
aboio e timbre ouvidos séculos afora. De novo, examinando a segunda linguagem,
aparecem rumo embaçado, doutrina nebulosa, sensação de ruptura.
Palavra final. Nada do que acima registrei abala minha submissão filial
ao Romano Pontífice. A realidade, contudo, impõe-se; padecemos época de enorme
confusão e crise religiosa. Pela prudência, cabe-nos acurar a lucidez. Pela fé,
aprimorar a confiança. Temos de nosso lado a promessa divina: “Eis que estarei
convosco todos os dias até o fim dos tempos”. É hora de se aproximar com maior
afeto do Coração de Jesus.
Nota: escrevi três artigos sobre o Sagrado
Coração, já divulgados em outras publicações com o pseudônimo que uso às vezes:
Cristiano Martins da Costa. Vou postá-los hoje no meu blog.