terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Estranhezas

 

Estranhezas

 

Cristiano Martins da Costa

 

Pastoreio com aboio uníssono e clareza de rumos. Anunciei série de três artigos (dois já divulgados) sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus que ganhou atualidade renovada com as celebrações do 350º aniversário das Grandes Aparições (1673 a 1675) em Paray-le-Monial a santa Margarida Maria Alacoque, bem como pela publicação da encíclica “Dilexi nos” do Papa Francisco em 24 de outubro último sobre referida devoção. Informava, no terceiro artigo discorreria, ainda que brevemente, sobre posições que “deram azo a manifestações de surpresa (para não dizer estranhezas)”. É o momento do último artigo da série. O espaço não é longo, exige síntese, escolhi então examinar no documento papal em especial o pastoreio (no caso, supremo). Tive um choque. Já avançando algum tanto no objeto do artigo, mas arrastado pela força incoercível da lógica, o exame desembocou na penosa constatação de não raramente, como se verá abaixo, a encíclica se apresenta pejada de confusões desnorteadoras, bem como de nebulosidade doutrinária e pastoral. Mais ainda, por vezes constam posições que ▬ de joelhos atesto-o ▬ apresentam pontos discrepantes, quase diria rupturas, com o magistério pontifício anterior. Fatos que, reitero, causam estranheza. É o que veremos agora.

 

Timbre inconfundível de voz na continuidade do aboio. Pequena digressão. A descrição do zagal clássico pode rescender à Palestina da Antiguidade, emanar aromas do pastoreio bíblico, já deixados de lado pelas técnicas modernas de ovinocultura que teriam características distintas. Nada disto está em foco e de fato não importa. O pegureiro e o pastoreio, nos casos em espécie, são metáforas, têm fonte nas Escrituras, veem sendo utilizadas por milênios. Em acepção muito geral, indica direção de grupos humanos. São perenes então as imagens poéticas e elucidativas do passado. Avante. O pastor, diante de seu rebanho, precisa ter aboio uníssono, igual timbre de voz, odor conhecido; quem sabe, vestir o mesmo manto. E levar a rotas e pastagens de parecida configuração geral, que não causem estranheza ao pegulhal. Em outras palavras, o pastor precisa ser inconfundível, mostrar continuidade, provocando serenidade no rebanho; não pode aparecer como fautor de rupturas, dando origem a desorientação, estranheza e até recusa.

 

Continuidade no apascentar. A continuidade, no caso, tem o grande esteio nas Escrituras. “Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá a sua vida por suas ovelhas. Mas o mercenário, e o que não é pastor´[...] vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge; e o lobo as arrebata e dispersa as ovelhas. [...]  Eu sou o bom Pastor, e conheço as minhas ovelhas, e minhas ovelhas me conhecem. Assim como o Pai me conhece a mim, também eu conheço o Pai, e dou a minha vida pelas ovelhas. Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco; também me convém agregar estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só Pastor” Sobre a clareza na direção, doutrinária e pastoral, lembro, entre outras, a passagem conhecida: “Seja o seu 'sim', 'sim', e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno”.

 

Confusão desorientadora. Pio XII, na “Haurietis Aquas”, escreve, aludindo ao Sagrado Coração “mais do que qualquer outro membro do seu corpo, o seu coração é o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o gênero humano”. E continua o ensinamento pontifício, esteando-se agora na autoridade do antecessor Leão XIII: “Como observava o nosso predecessor Leão XIII, de imortal memória, ‘é ínsita no sagrado coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade de Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor’”. Magistério simples, claro, incontroverso. Todo o documento de Pio XII, densamente doutrinário e pastoral, é do mesmo teor. Cita, em 51 notas, pontífices, padres da Igreja, as Escrituras, santo Tomás de Aquino, devocionários, para embasar seu ensino que sempre flui seguro, singelo e inconcusso. É natural, a gravidade do documento magisterial, encíclica, levou Pio XII a buscar esteios nos grandes nomes da história doutrinária da Igreja.

 

Trilha desorientadora. Escolheu caminho distinto o Papa Francisco. Para esclarecer a noção de coração, o Papa Francisco, em documento de 227 notas, cita, entre outros, Homero, o grego clássico, Platão, a própria avó, Zygmunt Bauman (não o cita explicitamente, mas utiliza acriticamente conceitos deste filósofo polonês, por muitos considerados como ateu e marxista ▬ “mundo líquido”, “sociedade líquida” com inequívoca origem em “sociedades líquidas” e “instituições líquidas”), Dostoievski, Romano Guardini, Heidegger, Karl Rahner, Han Byung-Chul, Michel de Certeau. Esta embrulhada de autores aportaria concepções enriquecedoras sobre o significado do coração. Não é possível num simples artigo analisar com rigor cada um de seus conceitos inseridos no diploma papal. Um fato, porém, é claro: a citação em documento pontifício de altíssima autoridade, tantas vezes acompanhada de simpatia, favorece a nomeada de tais autores, entre os quais há teólogos de reputação controvertida, pensadores que difundem doutrinas claramente opostas ao Catolicismo, propugnadores no terreno de pensamento de teses opostas ao que sempre ensinou a Igreja. Para não me alongar, recorro a um testemunho de Dostoievski: “Tenho de proclamar a minha incredulidade. Para mim não há nada de mais elevado que a ideia da inexistência de Deus.” Reproduzo a seguir o trecho que deu origem à citação de Dostoievski (um personagem seu, chamado Stavroguine, segundo Romano Guardini, encarnação do mal por não possuir coração). E Romano Guardini, notoriamente teólogo controvertido escreve o seguinte, posto elogiosamente na encíclica: “Estar em intimidade com o íntimo, no espírito, não é do domínio humano. Mas quando o coração não vive, o homem encontra-se ao lado de si mesmo”. Primeira pergunta: “É realmente inteligível o que aí está? Terá havido no texto português algum erro de tradução? O que poderá significar: ‘estar em intimidade com o íntimo no espírito não é do domínio humano’”? Segunda pergunta: “Favorece a ortodoxia? Favorece a pastoral? Onde está a clareza, a singeleza, o incontroverso do bom magistério”? O timbre não é o anterior; o aboio não é o anterior. É inevitável que brote do fundo da alma a sensação de ruptura com o pastoreio de sempre. Terceira pergunta: “Buscar fundamentos em autores controvertidos, adversários do magistério eclesiástico (a mais, seja-me permitido constatar e salientar, bastante confusos nos textos selecionados) favorece a devoção ao Sagrado Coração? O caminho escolhido não foi apenas distinto; revelou-se discrepante. Estranheza, outra vez.

 

Zelo missionário estranho. Farei a seguir apenas três comentários. O Papa Francisco liga a devoção ao Sagrado Coração com o zelo missionário. E ensina sobre o dever do missionário zeloso, “custa-lhes perder tempo [...] a impor verdades e regras. [...] [...] Não há proselitismo nessa dinâmica do amor”. Constato com tristeza a forma algum tanto depreciativa para o missionário, pois o missionário zeloso não impõe verdades. Prega-as, procura convencer. Não é perder tempo procurar convencer alguém das verdades evangélicas. E não há proselitismo em tal missão? Inexiste esforço de fazer prosélitos; catequese, apostolado? Que amor de Cristo será este? “Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado”. Na encíclica “Evangelii Praecones”, dedicada às missões, Pio XII, trilhando as pegadas de seus antecessores, apresenta como exemplos insignes de zelo missionário o apostolado (proselitismo) de leigos que se esforçavam em trazer à Igreja populações pagãs ou afundadas na heresia: “Sucedendo-se na Idade Média as invasões bárbaras, vemos homens e senhoras nobres e até humildes operários e incansáveis mulheres do povo esforçarem-se sem descanso por ganhar profundamente os seus compatriotas para a religião de Jesus Cristo. [...] Teodolinda, rainha dos lombardos, levou seu povo a abraçar a religião cristã. Na Espanha, o rei Recaredo esforçou-se por reconduzir os súditos da heresia ariana à verdadeira fé. Na França, não só aparecem bispos [...]mas também rainhas que ensinaram aos ignorantes a verdade cristã, que deram de comer, aliviaram ou reanimaram doentes, famintos e toda a espécie de necessitados”. [...] Todos conhecem a atividade da rainha santa Isabel na Hungria, do rei são Fernando em Castela e de são Luís IX em França; com santidade de vida e ação perseverante, comunicaram força renovadora às várias classes da sociedade, fundando instituições benéficas, fazendo chegar a verdadeira religião a toda parte”. Como impedir que surja irrefreável a sensação de descontinuidade entre um ensinamento e outro? O timbre é outro. Estranheza.

 

Censura à liturgia faustosa. Afirma a “Dilexi nos”: “A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos”. Está dito acima, a proposta cristã não é atrativa, quando vivida e manifestada em cultos faustosos. As pompas litúrgicas, louvadas por séculos por Pontífices e bispos, utilizadas por milênios como instrumento precioso de apostolado, retiram da Igreja Católica sua atratividade? A censura pouco velada não vai além Mas permanece a impressão de recusa à liturgia faustosa. Como evitar aa estranheza?

 

Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, expressão, lema e tema injustamtne acobertados. Muito especialmente no século 19 a devoção ao Sagrado Coração esteve ligada à aspiração do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo; em outras palavras, à restauração da ordem temporal cristã. Em outras palavras, reino nas almas e reino nas sociedades. No século 20, foram numerosos a respeito os ensinamentos da Hierarquia eclesiástica.

 

Régio poder de Cristo. Ocasião ápice de tal impulso virtuoso foi a publicação da encíclica “Quas Primas” de Pio XI em 11 de dezembro de 1925, reiterando o ensinamento comum dos Pontífices e reafirmando os direitos de Nosso Senhor Jesus Cristo não apenas sobre o interior das consciências, mas também sobre as sociedades. Dali retiro pequenos extratos: “Não há meio mais eficaz de restabelecer e fortalecer a paz que procurar a restauração do reinado de Jesus Cristo. [...] Se os homens, pública e privadamente, reconhecerem o régio poder de Cristo, necessariamente virão para toda sociedade civil benefícios sem-número como justa liberdade, tranquilidade, paz e concórdia”. Acima, a doutrina e a linguagem usual no ensinamento pontifício (o timbre da voz do pastor, se quisermos ainda o seu aboio). Na “Dilexis nos”, lemos sobre o  mesmo tema: “através dos cristãos, ‘o amor difundir-se-á no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo que é a Igreja e se edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade’ [223]. Na nota 223 se tem a origem da frase assumida com evidente aprovação pelo Papa Francisco; está em carta de dom Louis-Marie, arcebispo de Lyon. O que importa ressaltar no momento é o distanciamento entre as duas linguagens. A segunda, enunciando como meta a “sociedade de justiça, paz e fraternidade” tem timbre contemporâneo, nada especial, poderia ser respigada sem dificuldades entre documentos que, por exemplo, órgãos da ONU publicam. Ou de declarações de qualquer outra organização internacional e até mesmo de tomadas de posição de algum Partido Comunista. Nada mais comum, impreciso e enevoado. A primeira, “restauração do reinado de Jesus Cristo, se os homens, pública e privadamente, reconhecerem o régio poder de Cristo” tem força, origem inequívoca, é límpida, denota continuidade, ecoam aboio e timbre ouvidos séculos afora. De novo, examinando a segunda linguagem, aparecem rumo embaçado, doutrina nebulosa, sensação de ruptura.

 

Palavra final. Nada do que acima registrei abala minha submissão filial ao Romano Pontífice. A realidade, contudo, impõe-se; padecemos época de enorme confusão e crise religiosa. Pela prudência, cabe-nos acurar a lucidez. Pela fé, aprimorar a confiança. Temos de nosso lado a promessa divina: “Eis que estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos”. É hora de se aproximar com maior afeto do Coração de Jesus.

 

Nota: escrevi três artigos sobre o Sagrado Coração, já divulgados em outras publicações com o pseudônimo que uso às vezes: Cristiano Martins da Costa. Vou postá-los hoje no meu blog.

Práticas de piedade atuais

 

Práticas de piedade atuais

 

Cristiano Martins da Costa

 

Atualidade encoberta. No primeiro artigo da presente série de três, de forma sucinta embora, foram realçadas duas características centrais ▬ reparação e desagravo ▬ da devoção ao Sagrado Coração de Jesus que se propagou universalmente a partir das revelações de Paray-le-Monial (1673 ▬ 1675). Jamais deverão ser esquecidas ou subestimadas no espírito dos fiéis; estão na origem (ou foram estímulo) de um conjunto de práticas de piedade que têm marcado a vida da Igreja por séculos e sobre algumas das quais falaremos a seguir. Trata-se agora de jogar luz intensa sobre tais formas de culto, mostrar sua atualidade, aproveitando o quadro de fundo das comemorações do 350º aniversário de tais aparições e a ampla divulgação da encíclica “Dilexit vos” do Papa Francisco. Trazendo para o centro algumas das principais, embora certos círculos as possam preferir encobertas por julgá-las arcaicas e obsoletas, apenas as colocamos onde sempre deveriam estar, fulgurando virtude para todos.

 

Foco na Comunhão nas Nove Primeiras Sextas-feiras do mês. Também intitulada Comunhão Reparadora. É hábito piedoso que o fiel faça sua confissão poucos dias antes de comungar. E igual, se possível, comungue durante a assistência à Missa. Deve receber a comunhão nas nove primeiras sextas-feiras durante nove meses consecutivos. Esta prática é denominada com razão de “a grande promessa”. Emergindo das aparições de Paray-le-Monial, contém a promessa da perseverança final: “Eu te prometo, na excessiva misericórdia de meu coração, que meu amor onipotente concederá a todos os que comunguem nas primeiras sextas-feiras de mês, durante nove meses consecutivos, a graça da penitência final, e que não morram em minha desgraça, nem sem receber os Santos Sacramentos, assegurando-lhes minha assistência na hora final. para aqueles que a realizarem com intenção reta”. Contudo, a 1ª Sexta Feira do mês é ocasião para outras prátic as de piedade além da Nove Comunhões Reparadora. Com efeito, na primeira sexta-feira do mês convém ao fiel se lembrar de que ela é dedicada ao Sagrado Coração de Jesus e é dia de atenção especial ao perdão dos pecados. Para fortalecer os bons propósitos neste dia pode-se outrossim rezar a Ladainha, a Consagração, o Ato de Reparação ao Sacratíssimo Coração de Jesus e a Oração ao Coração de Jesus na Eucaristia ▬ estão na rede. Pio XI ensina, a oração deve ser “humilde, confiante e perseverante”. Continua o Pontífice: “A nenhuma outra obra piedosa foram feitas pelo Senhor Onipotente promessas tão abundantes, tão universais e tão solenes”. Bastaria a fidelidade às práticas das 1ªs Sextas-Feiras para mudar para muito melhor o clima no interior da Igreja, oxigenando-o, e abrir enormes perspectivas missionárias. Teríamos práticas mais atuais e eficazes? E, ao mesmo tempo, são singelas, simples, ao alcance da mão.

 

O retorno das consagrações. De outro modo, faz falta o regresso de prática que jamais deveria ter sido virtualmente abandonada, pelo menos em círculos influentes. A consagração ao Sagrado Coração é decorrência lógica do propósito de reparar. Pela consagração, percorrendo o austero caminho da dedicação, é desagravado o Sagrado Coração, esbofeteado em seus direitos. Enquanto é particular a prática das 1ªs Sextas-Feiras do mês, a consagração tanto pode ser particular como envolver sociedades. De um lado, uma pessoa pode se consagrar privadamente e até no silêncio de sua alma. Como ilustração, deixo a seguir uma das fórmulas: “Eu [nome], para Vos testemunhar o meu reconhecimento e reparar as minhas infidelidades, Vos dou o meu coração e me consagro inteiramente a Vós, ó meu amável Jesus, e com o vosso socorro proponho não pecar mais”. De outro, também as sociedades, ou seja, famílias, escolas, empresas, e até mesmo Estados, podem se consagrar validamente ao Sagrado Coração de Jesus, atraindo para si sua proteção e suas bênçãos. Foi prática comum em décadas passadas, em especial no século 19, produziu grandes frutos, balizou por décadas a direção geral da piedade católica. Ápice desse movimento foi a consagração do gênero humano feita por Leão XIII (1878-1903) em 11 de junho de 1899, em união com bispos, sacerdotes e fiéis; consagração anunciada, justificada doutrinária e pastoralmente pouco antes, em 25 de maio de 1899 na encíclica “Annum Sacrum”. Seu sucessor, são Pio X (1903-1914), quando ainda cardeal-patriarca de Veneza, definiu bem, com a singeleza dos santos, o objetivo da prática piedosa das consagrações, da qual era grande adepto: “Restabelecer os direitos que Nosso Senhor possui de ser amado e servido enquanto Rei, como Ele o era nas épocas de fé”. Na presente quadra histórica, com as circunstâncias imperantes, uma maneira factível de retomada e reconquista é a ênfase na consagração das famílias católicas, ato privado que depende apenas dos pais e, de certa maneira, dos filhos. Não nos esqueçamos, a família é a primeira e mais natural das sociedades; e, sob vários aspectos, a mais importante delas. Tudo o que acontece no interior das famílias reverbera para a sociedade inteira, por vezes de forma decisiva. Sua consagração pode ser largamente praticada e atrairá as bênçãos do Sagrado Coração para as que a ele aderirem com retidão e fé. E terá enorme repercussão social; serão ondas benfazejas, levando bênçãos, espalhando-se meio indefinidamente pelos oceanos das populações sofredoras, tantas vezes ávidas de sobrenatural.

 

Entronização do Sagrado Coração nos lares. É prática naturalmente complementar da consagração das famílias, que o colocam (entronizam), mediante, por exemplo, sua imagem sobre uma peanha em lugar destacado da casa. Ali fazem orações, particulares ou em conjunto, sua presença cria ambiente de elevação, pureza e respeito. O fim próximo é da entronização fazer com que o Sagrado Coração reine naquela família, ou naquele ambiente. O fim remoto é que este reino se estenda a toda a sociedade. Não estou falando aqui especificamente da Obra da Entronização, fundada pelo padre Mateus Crawley-Boevey (1875-1961), digna de todos os elogios, mas apenas da prática privada.

 

O bentinho do Sagrado Coração de Jesus. O bentinho, proteção contra tentações e calamidades, é um objeto de devoção que traz inscrito “Alto! O Coração de Jesus está comigo, Venha a nós o vosso Reino”. É muito conveniente sua mais ampla difusão; depois de bento por um sacerdote, pode ser guardado, por exemplo, na bolsa ou na carteira.

 

Incentivo a todas as formas de devoção. A devoção ao Sagrado Coração deve ser considerada estímulo às outras formas de devoção. Pio XII, na “Haurietis Aquas”, pontuou: “Ninguém pense que esta devoção prejudique no que quer que seja outras formas de piedade”. Contudo, pelas suas características, tem maior relação com a devoção ao Verbo Encarnado, Eucaristia, Paixão, Cinco Chagas, Nossa Senhora.

 

As doze promessas do Sagrado Coração de Jesus. Para fechar o presente artigo deixo abaixo as chamadas 12 promessas do Sagrado Coração, compilação piedosa feita a partir das Grandes Revelações de 1673 a 1675, cujo conhecimento (ou recordação) estimula as mais diversas formas de adoração ao Sagrado Coração.

 

1ª) Eu darei aos devotos do meu Coração todas as graças necessárias a seu estado.

2ª) Estabelecerei e conservarei a paz em suas famílias.

3ª) Eu os consolarei em todas as suas aflições.

4ª) Serei seu refúgio seguro na vida e principalmente na hora da morte.

5ª) Lançarei bênçãos abundantes sobre todos os seus trabalhos e empreendimentos.

6ª) Os pecadores encontrarão em meu Coração fonte inesgotável de misericórdias.

7ª) As almas tíbias tornar-se-ão fervorosas pela prática dessa devoção.

8ª) As almas fervorosas subirão, em pouco tempo, a uma alta perfeição.

9ª) A minha bênção permanecerá sobre as casas em que se achar exposta e venerada a imagem de Meu Sagrado Coração.

10ª) Darei aos sacerdotes que praticarem especialmente essa devoção o poder de tocar os corações mais endurecidos.

11ª) As pessoas que propagarem esta devoção terão o seu nome inscrito para sempre no Meu Coração.

12ª) A todos os que comungarem nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, darei a graça da perseverança final e da salvação eterna.

 

Nota: escrevi três artigos sobre o Sagrado Coração, já divulgados em outras publicações com o pseudônimo que uso às vezes: Cristiano Martins da Costa. Vou postá-los hoje no meu blog.

De novo no foco, reparação e desagravo

 

De novo no foco, reparação e desagravo

 

Cristiano Martins da Costa

 

Devoção perene, caminho real. O Papa Francisco em 24 de outubro último divulgou a encíclica “Dilexit nos”, a quarta de seu pontificado; trata da devoção ao Sagrado Coração de Jesus. O título latino, claro, significa “Ele nos amou” e tem como inspiração passagem de são João em que Nosso Senhor diz: “Eu vos amei”. O documento coincide com as celebrações do 350º aniversário das grandes manifestações do Sagrado Coração de Jesus (1673-1675) a santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), religiosa visitandina do mosteiro de Paray-le-Monial, canonizada em 1920. De um lado, o diploma e toda a enorme e natural repercussão que gerou despertaram lembranças e hábitos antigos que sempre oxigenaram o ambiente da piedade católica. Sobre eles falaremos em um segundo artigo. De outro, “Dilexit nos” deu azo a manifestações de surpresa (para não dizer estranheza) sobre as quais também nos deteremos, em um terceiro artigo.

 

O perigo da desnaturação. Inicialmente, desejo chamar a atenção sobre ponto central que desafortunadamente não vi ser realçado, diria quase, foi ocultado, abordado embora várias vezes e até com digressões na “Dilexit nos”, e que está no centro da devoção moderna ao Sagrado Coração de Jesus, difundida especialmente a partir de Paray-le-Monial: reparação e desagravo. A devoção ao Sagrado Coração como foi propalada por décadas sem fim nos ambientes católicos desde o século 17 tem um núcleo central, dele não é possível se afastar sem grave risco de desnaturação ▬ de outro modo, transformar-se em outra espécie de devoção. Referido miolo está bem realçado por santa Margarida Maria Alacoque. Recordemos. O devoto ou devota do Sagrado Coração tem à mão sua vida, espírito e mensagens, não precisa e não deve se desviar da rota ali apontada pela Providência. Sua espiritualidade foi divulgada nos ambientes católicos, por séculos, com apoio maciço da Hierarquia eclesiástica, como modelo desta forma de piedade. E, inafastável memorar, santa Margarida chama imediata e continuamente a atenção para duas práticas: reparação e desagravo. O fiel necessita reparar o mal causado pelo pecado (seu, dos outros, de organizações, dos Estados) e desagravar suficientemente o ofendido, no caso, Nosso Senhor Jesus Cristo. Desagravo é a palavra portuguesa usual, está correta. Santa Margarida utilizava a expressão “amende honorable” ou “faire amende honorable”, respigada do mundo jurídico francês, que significa desagravo, mas contém a necessidade de pena infamante para o ofensor. A retratação infamante repararia o dano moral e era na França considerada honrosa para o ofendido. Para o fiel, e é o que nos interessa aqui, torna imperativa a postura inicial humilde, contrita e humilhada. Postura sempre inconformada com o mal feito por ele ou percebido em outros, e que busca reparo e satisfação.

 

Eis o Coração que tanto amou os homens. Tal conduta é lógica e flui naturalmente das palavras de Cristo que estão no centro das chamadas Grandes Revelações de Paray-le-Monial: “Eis o Coração que tanto amou os homens, que nada poupou até se esgotar e se consumir para lhes testemunhar seu amor.

 

Desconsideração total. Continuam as palavras de Cristo: “Como reconhecimento, não recebo da maior parte deles senão ingratidões, pelas suas irreverências e sacrilégios, e pela frieza e desprezo que têm para comigo”. Para uma alma reta, com vontade autêntica de reparar o dano que causou, tornam-se cogentes os sentimentos ativos de gratidão e veneração, trazer de volta o ofendido ao devido lugar outrora ocupado, promover o culto, manter o fervor. Nesta piedade particular, é o fundamento sobre o qual caminha o fiel rumo à restauração de sua situação anterior virtuosa, e até a alturas ainda inatingidas. Não apenas o fiel, igual se aplica às sociedades humanas, a primeira das quais é a família.

 

Destaque devido e significativo. Pio XII (1939-1958) em sua encíclica “Haurietis Aquas”, ainda hoje considerado o grande ensinamento sobre tal devoção, enumera com grato louvor santos que promoveram a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Mas, entre eles, distingue uma santa de forma inequívoca: “Mas entre todos os promotores desta excelsa devoção, merece lugar especial santa Margarida Maria Alacoque, que, com a ajuda do seu diretor espiritual, o beato Cláudio de la Colombière [...] conseguiu [...] que este culto adquirisse um grande desenvolvimento e, revestido das características do amor e da reparação, se distinguisse das demais formas da piedade cristã”. De outro modo, sob a luz do exemplo de santa Margarida, constitui forma especialmente elevada da piedade cristã. Reitero por conveniente, é indispensável o olhar se fixar no que a vida dela pregou do começo ao fim: reparar o Salvador pelos pecados cometidos, desagravá-lo em especial por vida calcada nos passos dele. Está outrossim ensinado por Pio XII, o grande desenvolvimento de tal forma de piedade só pode se dar sem a desnaturação de suas principais características, acima referidas, fulgurantes na vida da obscura freira visitandina.

 

Atualidade sadia. Convém salientar, tais características não deslizaram para o esquecimento, tornaram-se repentinamente anacrônicas. Pelo contrário, pertencem ao núcleo desta forma de piedade. São tradicionais, é certo, tradição viva, sadia, atual, caldo de cultura de vida virtuosa, digamos, de modernidade saudável, à vera, conduta mais necessária agora que no já longínquo século 17. Mas estão de novo no foco das repercussões da “Dilexit nos”? Dói dizê-lo, olhando por cima, infelizmente, não. E na profundidade? Sim. Ficarão, se quisermos e agirmos para tal. É atual voltar luz forte para elas. Desconsiderá-las, diminuir-lhes a importância, traz o risco da desnaturação; de outro modo, nossas práticas devocionais relativas ao Sagrado Coração não corresponderiam por inteiro ao que o Divino Salvador tinha em vista quando, a partir de Paray-le-Monial, inaugurou torrente de graças reparadoras e restauradoras que atravessou decênios e até séculos, marcando a Igreja para sempre. A continuidade virtuosa, nunca deve ser abandonada. Trouxe acima Pio XII. Agora, seu antecessor. O Papa Pio XI (1922-1939) nos mostra a mesma via em oração composta por ele em 1928. Pisamos nas pegadas de dois grandes Pontífices, postura sadia e atual. Sua recitação nos trará graças. Vai abaixo.

 

Ato de Reparação ao Sacratíssimo Coração de Jesus (Pio XI)

 

“Dulcíssimo Jesus, cuja infinita caridade para com os homens é por eles tão ingratamente correspondida com esquecimentos, friezas e desprezos, eis-nos aqui prostrados na Vossa presença, para Vos desagravarmos, com especiais homenagens, da insensibilidade tão insensata e das nefandas injúrias com que é de toda parte alvejado o Vosso amorosíssimo coração.

 

Reconhecendo, porém, com a mais profunda dor, que também nós mais de uma vez cometemos as mesmas indignidades, para nós, em primeiro lugar, imploramos a Vossa misericórdia, prontos a expiar não só as próprias culpas, senão também as daqueles que, errando longe do caminho da salvação, ou se obstinam na sua infidelidade, não Vos querendo como pastor e guia, ou, conculcando as promessas do batismo, sacudiram o suavíssimo jugo da Vossa santa lei.

 

De todos estes tão deploráveis crimes, Senhor, queremos nós hoje desagravar-Vos, mais particularmente da licença dos costumes e imodéstia do vestido, de tantos laços de corrupção armados à inocência, da violação dos dias santificados, das execrandas blasfêmias contra Vós e Vossos Santos, dos insultos ao Vosso Vigário e a todo o Vosso clero, do desprezo e das horrendas e sacrílegas profanações do Sacramento do divino amor e, enfim, dos atentados e rebeldias das nações contra os direitos e o Magistério da Vossa Igreja.

 

Oh! Se pudéssemos lavar com o próprio sangue tantas iniquidades! Entretanto, para reparar a honra divina ultrajada, Vos oferecemos, juntamente com os merecimentos da Virgem Mãe, de todos os santos e almas piedosas, aquela infinita satisfação, que Vós oferecestes ao eterno Pai sobre a cruz, e que não cessais de renovar todos os dias sobre nossos altares.

 

Ajudai-nos Senhor, com o auxílio da Vossa graça, para que possamos, como é nosso firme propósito, com a vivência da fé, com a pureza dos costumes, com a fiel observância da lei e caridade evangélicas, reparar todos os pecados cometidos por nós e por nosso próximo, impedir, por todos os meios, novas injúrias de Vossa divina Majestade e atrair ao Vosso serviço o maior número de almas possível.

 

Recebei, ó benigníssimo Jesus, pelas mãos de Maria santíssima reparadora, a espontânea homenagem deste nosso desagravo, e concedei-nos a grande graça de perseverarmos constantes, até à morte, no fiel cumprimento de nossos deveres e no Vosso santo serviço, para que possamos chegar todos à pátria bem-aventurada, onde Vós com o Pai e o Espírito Santo viveis e reinais por todos os séculos dos séculos.  Amém.”

 

Hoje, a vida é muito corrida. Às vezes, pode ser difícil rezar todos os dias a oração completa composta por aquele recordado Papa. Não importa. Mesmo partes dela nos lembram o que sempre foi a orientação católica para a devoção ao Sagrado Coração, que tanto robusteceu a ação evangelizadora da Igreja a partir de Paray-le-Monial. Continuidade, fidelidade, êxito, é o que nos é pedido (e nos espera) em tal rumo. Nos próximos artigos, exporei sucintamente falarei como foi oxigenada a piedade em decorrência dessa referida via. E depois, no terceiro da série, de algumas estranhezas suscitadas. O trio, espero, exporá (em boa parte relembrará) de forma resumida e autêntica visão de conjunto da devoção ao Sagrado Coração. Uma palavra final: o mais importante todos sabemos, é, com pureza de intenção, adorar, reparando-o e desagravando-o, o amor infinito de Nosso Senhor aos homens, manifestado de forma tocante pelo seu coração rodeado de espinhos e encimado de chamas.

 

Nota: escrevi três artigos sobre o Sagrado Coração, já divulgados em outras publicações com o pseudônimo que uso às vezes: Cristiano Martins da Costa. Vou postá-los hoje no meu blog.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Efeméride sepultada

 

Efeméride sepultada

 

Péricles Capanema

 

Manifesto ao povo brasileiro. Efeméride é data para ser festejada, merece atenção, respeito e recordação. A efeméride da qual vou falar, não está no foco; nunca esteve, parece; para infelicidade nacional. Permanece esquecida, injusta e funestamente soterrada. Talvez o presente artigo seja sua única e modesta lembrança. Não importa. Pelo valor intrínseco, deveria ser recordada. Com raiz em especial no senso de justiça, minha função hoje é uma só: tirá-la de esquecimento perverso e imerecido; mais no ponto, enormemente prejudicial ao interesse público. E vou arrancá-la de olvido descabido utilizando um recurso apenas, aliás singelo; alinhar citações que remetem à data e ao fato. Sessenta anos atrás, em 24 de dezembro de 1964, a então jovem TFP, por meio de sua direção, à frente da qual se destacava o prof. Plinio Corrêa de Oliveira, cumpria “dever sagrado”, palavras suas, “em meio a silêncio completo” e divulgava seriíssimo documento intitulado “Manifesto ao povo brasileiro sobre a Reforma Agrária” (está na rede, texto extenso, convincente, com provas incontroversas), estampado em grandes órgãos de divulgação da época. Este manifesto nunca deveria ser esquecido; é farol; precisaria estar aceso, vem sendo mantido apagado por incúria ou ardil de tantos. Dos dezenove valorosos e beneméritos brasileiros que firmaram o mencionado documento, quinze já nos deixaram, quatro ainda estão entre nós, merecedores de nossa gratidão, meritoriamente arvorando a mesma doutrina e o mesmo zelo pelo bem comum que os levou há mais de meio século a bradar pelos jornais advertência luminosa, que necessitaria, repito, sempre ecoar ampla. Seus nomes: Caio Vidigal Xavier da Silveira, Celso da Costa Carvalho Vidigal, Eduardo de Barros Brotero, Plínio Vidigal Xavier da Silveira.

 

Sintonia com as correntes janguistas. Em novembro de 2023, o ministério do Desenvolvimento Agrário, órgão lulista, e o INCRA, sob influência direta do extremismo agrário, lançaram o projeto comemorativo “60 anos do Estatuto da Terra”. Celebravam a edição do Estatuto da Terra. Afirma o texto do MDA sobre o Estatuo da Terra: “Sua elaboração não ignora os debates em torno da necessidade da distribuição de terras que remontam à década de 50, à formação das ligas camponesas, até à própria proposta do governo deposto de João Goulart, integrando as “reformas de base”. O texto indica a utilidade do Estatuto da Terra para a promoção da distribuição de terras (feita na prática em geral sob a imposição da demagogia extremista). Mostra ainda, não ignorou (acolheu, de fato) o programa das correntes que apoiavam Jango, bem como ecoava a campanha fortemente esquerdista das reformas de base. Tudo é verdade. Verdade ocultada e calada na época, mas proclamada com análise objetiva e irretorquível pelo manifesto da TFP. Daí vieram 60 anos de agitação e insegurança no campo, com sequelas de pobreza, exclusão, retrocesso e atraso. E,, com base no Estatuo da Terra, ainda poderemos esperar, para desgraça nossa, mais agitação e insegurança no campo.

 

Silêncio estranho. O manifesto notava que diante de fato gigantesco, legislação de viés fortemente intervencionista e confiscatório, que marcava o começo efetivo da reforma agrária no Brasil, o estranho e completo silêncio da opinião pública: “Antes do mais, é necessário um esclarecimento sobre o significado do silêncio estranho em que a opinião pública presenciou a aprovação da reforma agrária”.

 

Repetição do projeto do governo deposto. O texto lembra o clima até então há pouco dominante no Brasil: “Todos temos na memória com quanta vitalidade, com que ardor se dividiram, meses atrás, as correntes de pensamento, os partidos políticos, as organizações de classe, no debater os prós e os contras da reforma agrária proposta pelo então Presidente João Goulart. Chegou-se mesmo a afirmar na imprensa que os marcos divisórios entre os partidos políticos haviam desaparecido, só restando dois campos, o dos adeptos e o dos opositores da reforma agrária (já então tomada essa expressão só no mau sentido socialista). Agora, em face da emenda constitucional nº 10 e do Estatuto da Terra, que em substância repetem o projeto do governo deposto, a vida e o ardor de há pouco parecem não mais existir.” E observa: “Com o apoio das bancadas janguistas, os representantes das correntes que depuseram Jango fizeram através da aprovação da emenda constitucional e do Estatuto da Terra a "reforma" que Jango queria”. Mostra que foram o cansaço da luta  pública, a tranquilidade causada pelo novo governo, a absorção nas atividades privadas as causas principais da apatia do púbico, como veremos logo a seguir.

 

O Estatuto da Terra em substância significou o triunfo do projeto janguista. O texto do manifesto é contundente: afirma sem rebuços, não há diferença substancial entre o que foi aprovado (Estatuto da Terra) e o que propunham as forças coligadas em torno do presidente João Goulart. Por que agora a reação era pífia? O manifesto continua: “Trata-se de um arrefecimento geral, que atingiu todos os setores da opinião pública sem discriminação e se manifestou de modo flagrante, não só no marasmo dos adversários do agro- reformismo, como na tibieza dos aplausos convencionais de quase todos os que, sendo agro reformistas, tinham diante de si a tarefa sempre grata e atraente de bater palmas a uma medida desejada com todo o afinco pelo alto”. No final, conclui: “A perspectiva em que as circunstâncias nos colocam constitui para o Brasil uma verdadeira encruzilhada, a mais grave de sua história”.

 

Sessenta anos depois. Foi exagerado o texto acima do qual conhecemos aqui pequenos extratos? Não. Previu com objetividade a desgraça que se armava. Que continua. Todo o processo demolidor da reforma agrária brasileira ao longo das décadas se fez com base no Estatuto da Terra. Nenhum estudo sério sobre a tragédia que foi (e continua sendo) a implantação da reforma agrária no Brasil, por honestidade intelectual, poderia deixar de lado o manifesto ao qual aludo.

 

A reforma agrária já expropriou mais que a soma das áreas de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Recordo entre a multidão das provas, alguns dados atuais (hoje são piores), postados por mim em 13.3.2022 (blogdopericlescapanema, artigo “Cachaça venenosa”): “Desde o Estatuto da Terra, 30 de novembro de 1964, do governo Castelo Branco, nunca parou, desembestada a esbórnia com o dinheiro público. Na prática, ninguém mexe nesse tumor de estimação. O INCRA, em seu site, informa a área total dos assentamentos: 87.535.596, isto é, 875.355 km2. Área de Minas Gerais: 586.528 km². Área do Rio Grande do Sul: 281.730 km2. Vamos somar as duas áreas, a de Minas e a do Rio Grande, 868.250 km2. A soma é menor que a área expropriada para fins de reforma agrária. Área utilizada pelo agronegócio no Brasil que torna o país uma das potências mundiais na agricultura: em torno de 650 mil km2. Também muito menor que a área esperdiçada ou malgasta na reforma agrária”. Para quê? Para torrar dinheiro público, alimentar burocracia, favorecer corrupção, manter baixíssimos níveis de produtividade, convém lembrar e repetir.

 

Alertas de Xico Graciano. Xico Graziano, um agredido pela realidade, engenheiro agrônomo, ex-secretário da Agricultura de São Paulo, ex-presidente do INCRA, em artigo já antigo (3 de maio de 2004) na Folha, apontava disparates em série da reforma agrária brasileira (renovou em anos recentes suas advertências): “Os latifúndios se transformaram em empresar rurais. A terra, antes ociosa, agora bate recordes de produtividade. Gente simples, porém capaz, domina a tecnologia de ponta e dá show de competência. Cadê o sem-terra? Mudou-se para a cidade. O Brasil cresceu, urbanizou-se, virou potência mundial agrícola, sem necessidade de reforma agrária. A terra está produtiva, gerando milhões de empregos. Gente boa, miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidas com promessa de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada, apoia veladamente. Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos, significa raciocinar com o absurdo. Abstraindo os picaretas da reforma agrária, que engrossam as invasões, os demais, bem-intencionados, dificilmente sobreviverão”.

 

Roubalheira, baixíssima produtividade, sorvedouro de dinheiro público. Adverti no referido artigo: “Temos ainda vários documentos do TCU advertindo sobre a execução escandalosa da reforma agrária no Brasil. Lembro-os, mas não os glosarei aqui. Em resumo, a reforma agrária sempre foi aliciante, mas venenosa cachaça, sorvida em grandes haustos por todas as condições sociais. Se nada houvesse de reforma agrária no Brasil (zero), como é o caso em dezenas e dezenas de países, a situação no campo estaria muito melhor, haveria mais renda, teríamos mais empregos e mais investimentos, maior produtividade, menos pobres; e ainda existiria dinheiro para obras de infraestrutura, saúde, educação ▬ foi torrado irresponsável e euforicamente no processo de reforma agrária. Seria normalíssimo a instauração de uma CPI para investigar a reforma agrária no Brasil. É claro que nunca será instalada”.

 

Aviso largamente desconsiderado. Sessenta nos depois, que pelo menos fique claro um ponto. Houve pessoas, brasileiros de escol, que tentaram deter a tragédia. Bradaram, esclareceram, trabalharam, sofreram incompreensões, mas o juízo da História e sobretudo o tribunal divino a eles farão justiça. A nós cabe o conhecimento do fato, sua recordação e a gratidão. Está feito o registro.