Flertando com a
podridão
Péricles Capanema
O horror da podridão. A podridão horroriza os seres saudáveis. Via
de regra, flertam com a podridão os seres, em particular os morais, que se
precipitam para a morte.
A obrigação moral de apoiar a Ucrânia. Mergulhemos no grave e urgente. Será
necessário lembrar sucintamente textos anteriores. Em meu último artigo “A
guerra em muitas frentes”, postado em 20 de fevereiro (está na rede), coloquei
como parágrafo final: “O Brasil tem o dever de fugir do cansaço. É
claro, o Brasil sofrerá na carne os efeitos da guerra na Europa. Em defesa do
interesse nacional ▬ e por dever de consciência ▬ precisaríamos manter viva a
recusa da agressão injusta à nação martirizada pelo agressor imperialista. Não
podemos cair na tentação do cansaço de pugnar pela Ucrânia. E, é congruente,
merece ainda apoio ardente a posição das potências ocidentais e da NATO em
defesa dela.” Em síntese, apontava eu o dever moral ▬ no caso, também o mais
evidente interesse ▬ de pessoas e nações apoiarem incansável e ardorosamente a
Ucrânia. Em suma, quem presta, apoia a Ucrânia, a banda podre apoia a Rússia. A
indiferença e uma suposta equidistância (chamada por vezes de neutralidade) na
busca de equilíbrio hipócrita são formas de favorecer a banda podre. Vou um
passo além. É dever do Brasil fugir do cansaço. É dever de todos, claro, mas
meu foco especial hoje é a América Latina, toda ela precisa evitar o cansaço de
defender a Ucrânia.
A exigência ética de estar a favor do Ocidente. Volto a lembrar textos anteriores. Em 30 de
janeiro, publiquei longo, até muito longo, artigo, quase um ensaio, intitulado
“Tesouros em vasos de barro” (está na rede). Nele procuro mostrar a obrigação moral
de defender o Ocidente que, de momento, de forma a bem dizer unânime e ativa,
coloca-se contra a infame agressão de Vladimir Putin. E cuja causa é harmônica
à da Ucrânia. Meu presente texto ecoa os dois trabalhos acima mencionados. E ainda
inúmeros outros, igualmente divulgados ao longo de anos por mim na rede, no
mesmo rumo. Entre eles ressalto “O dia da vergonha”, de 17 de fevereiro. Todos
eles retratam colocações que venho sustentando em sucessão contínua. O primeiro
deles postado sob o título “Luzes do passado”, 21 de setembro de 2010;
reproduzia artigo meu (com título diferente) “Um aspecto da pietas austriaca
pouco considerado”, publicado na revista romana “Radici Cristiane” nº 35, junho
de 2008. Continuidade. Enfim, são quase 14 anos de reafirmação da mesma atitude,
ora de um modo, ora de outro. E assim, um dos motivos da rememoração, nada aqui
é posição precipitada, redigida de afogadilho, nada há de pessoal.
Um dia a Ucrânia inteira poderá ter a mesma sorte
que hoje já tem parte dela, a Crimeia. Antes de continuar na mesma via, faço parada rápida para recordar perigo
enorme, o da acomodação, que se tornará realidade, se nos cansarmos da defesa
da Ucrânia e do Ocidente ▬ cansaço da banda que presta, claro; a outra (a
putrefata) já favorece a Rússia e antipatiza com o Ocidente. Em 30 de junho de 2018 (outro registro, já se vão
quase quatro anos), postei artigo intitulado “Copa do Mundo em Helsinque”, que
tratava do encontro entre Vladimir Putin e Donald Trump. A Crimeia era tema da agenda:
“O caso da Crimeia está na pauta. Pelo jeito, os Estados Unidos caminharão para
acomodação, deixando a Europa isolada. Com o tempo, a Europa tenderá também à
acomodação, é a esperança de Moscou. De outro lado, a situação da Ucrânia
apresenta pontos semelhantes. Daí, como ficarão as nações que fazem fronteira
com a Rússia? Que valor têm as atuais garantias norte-americanas relativas à
efetiva independência delas? O grande tema do encontro começa a aparecer claro:
zonas de influência. Os Estados Unidos deixarão que imerja uma ainda não
oficial zona de influência russa? Existiu na prática durante toda a Guerra
Fria. Voltará?” Avisava sobre o óbvio: as zonas de influência voltavam, a
situação da Ucrânia apresentava pontos semelhantes à da Crimeia. Era congruente,
a Rússia partiria para cima dela. Outras nações seriam ameaçadas a seguir. A
Finlândia e a Suécia já estão ameaçadas.
Acomodação derrotista e suicida. A acomodação norte-americana com a anexação da
Crimeia, clara na ocasião do encontro (julho de 2018), era coerente com a
política isolacionista de Donald Trump. Poderia levar à acomodação europeia. Levou.
E com isso, a Ucrânia se tornou o próximo alvo. Sucedeu o previsível. Haverá acomodação
gradual com a hoje previsível e indesejada deglutição da Ucrânia? É de se
temer, se for insuficiente a reação e posteriormente sobrevier o cansaço, etapa
prévia da indiferença.
Quebrar a resistência, o principal. A propósito, por esses dias estão sendo
divulgadas pesquisas preocupantes sobre a força crescente do sentimento
isolacionista na opinião pública dos Estados Unidos. Batendo o cansaço, no
longo prazo, a Rússia terá vencido sem lutar. Sun Tzu advertia: “Lutar e vencer todas as batalhas não
é a glória suprema. A glória suprema consiste em quebrar a resistência do
inimigo sem lutar”.
Agressão celerada levada a cabo por governo
celerado. Volto ao estradão. Temos
nação pequena (Davi, 603.458 km2, 45 milhões de habitantes), a Ucrânia, injustamente
agredida por agressor celerado (Golias, 17.130.000 km2, 150 milhões de habitantes),
inescrupuloso, implacável e tirânico. O pequeno e fraco procura
desesperadamente se defender para manter a independência e a possibilidade de
futuro próspero para seus nacionais. Pede ajuda. Em resumo, o dever é fazer
frente comum com as potências que estão ajudando os ucranianos nessa hora em
que são massacrados e martirizados.
Motivos de alegria. Foi com renovada esperança de que o direito mais
evidente e os restos da ordem temporal cristã ainda vigentes (prenúncio de
desejada restauração) acabariam por levar a melhor que assisti à levée de boucliers
(oposição maciça, onda de protestos) diante da abjeta agressão do forte
criminoso contra o fraco injustiçado.
Pintalgados da resistência. A reação, surpresa boa, veio maciça e
enérgica, dela exporei poucos exemplos. Em primeiro lugar, os Estados Unidos, posições
claras e decisivas. Destaco aqui apenas a manifestação de Mike Pompeo,
secretário de Estado da administração anterior e homem influente no Partido
Republicano: “Torço para que a administração Biden tenha sucesso. Desejo a ela
todo o sucesso”. Claro, refere-se à crise na Ucrânia. Os Estados Unidos já
anunciaram envio de material militar para a Ucrânia.
A Europa inteira assume protagonismo. Mais enérgica que os Estados Unidos,
assumindo protagonismo, reagiu a Europa. Não poderia deixar de lado a posição
da Polônia, saiu na frente, foi o primeiro país a prometer material militar. Da
França, que também prometeu material militar para Kiev. Por seu lado, a
Alemanha também enviará material militar. Portugal, Espanha, Turquia (fechou a
passagem de navios militares da Rússia rumo ao Mar Negro). A própria Hungria condenou
com veemência a invasão russa. Vieram sanções econômicas fortes. Mesmo a Suíça,
rompendo seu tradicional neutralismo, colocou-se decididamente ao lado da
Ucrânia. E ainda um sem-número de países, Reino Unido, Itália, Canadá, Japão,
Austrália. Registro com satisfação particular que o Brasil apoiou a posição dos
Estados Unidos na resolução submetida ao Conselho de Segurança da ONU (vetada
pela Rússia), indicando que, apesar dos temores generalizados, prevaleceu ali, alvíssaras,
é o que informa a imprensa, a posição da diplomacia brasileira e de numerosos
outros setores no Brasil entre os quais oficias da ativa e da reserva_ que viam
com horror o rumo que o país estava tomando.
Contragolpe violento no mesmo dia. No mesmo dia em que o Brasil apoiou a resolução
patrocinada pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU os presidentes
do Mercosul, reunidos em Assunção (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai)
divulgaram declaração condenando a invasão russa. Argentina, Uruguai, Paraguai
a condenaram, O Brasil não assinou a declaração.
Logo após, outro contragolpe. Também na mesma ocasião, a Organização dos
Estados Americanos (OEA) divulgou nota condenando a invasão russa. Todos os Estados da OEA a assinaram, menos
Argentina, Bolívia, Cuba, Nicarágua. E Brasil.
Declarações escandalosas do presidente Jair
Bolsonaro. No litoral de São
Paulo, o presidente Jair Bolsonaro deixou claro que a simpatia dele estava com
a Rússia. De fato, a posição brasileira está, com pequenos disfarces, alinhada,
entre outros participantes da Banda podre, à de Cuba, China comunista, Coreia
do Norte, Venezuela, Nicarágua.
Patranha lamentável e entristecedora. No Guarujá em folga pelo Carnaval, o
presidente Jair Bolsonaro falou à imprensa “Estive há pouco conversando com o
presidente Putin, mais de duas horas de conversa ao telefone. Tratamos de muita
coisa, a questão dos fertilizantes foi das mais importantes. Obviamente ele
falou alguma coisa sobre a Ucrânia, eu me reservo aí como segredo de não entrar
em detalhes da forma como vocês gostariam”. Sobre a ação das tropas russas, foi
restritivo: “É um exagero falar em massacre”. Em Brasília, o Itamaraty
desmentiu o telefonema entre Bolsonaro e Putin. Inexistiu. Ainda no Guarujá
declarou o presidente: “Nós não vamos tomar partido, nós vamos continuar pela neutralidade”. Logo
depois, também em Brasília, de novo o Itamaraty. Declarou o chanceler Carlos
França: “A posição do Brasil é de equilíbrio e não de neutralidade”. Ociosos
eventuais comentários.
Desautoriza posição brasileira no Conselho de
Segurança. O Brasil, no
Conselho de Segurança, apoiou a resolução patrocinada pelos Estados Unidos, que
fala em agressão russa. No Guarujá, o presidente garantiu: “Não tem nenhuma
sanção ou condenação ao presidente Putin. O voto do Brasil não está definido”.
Nenhuma necessidade de comentários.
Debique
contra os ucranianos e tom depreciativo em relação ao presidente da Ucrânia. Afirmou o primeiro mandatário da
nação: “[a nação] confiou em um comediante, o comediante que foi eleito
presidente da Ucrânia, o povo confiou em um comediante para traçar o destino da
nação”. Dispensa comentários. Inaudito.
A
verdade esbofeteada.
A Rússia está invadindo Kiev, ameaça cidades no país inteiro, entrou no país,
por três locais. Afirmou Bolsonaro: “Eu entendo que não há interesse por parte
do líder russo de praticar um massacre. Ele está se empenhando em duas regiões
do Sul da Ucrânia que, em referendo, mais de 90% da população quis se tornar
independente, se aproximando da Rússia”. Não há necessidade de comentar. Nada
aqui faz sentido.
Indiferença desdenhosa
com a sorte da Ucrânia. Anatoliy Tkach,
encarregado de Negócios da Ucrânia no Brasil levantou a possibilidade de um
telefonema de Jair Bolsonaro ao presidente Zelensky: “Eu penso que o presidente
do Brasil está mal informado. Talvez fosse interessante ele conversar com o
presidente ucraniano. Estamos em um momento delicado quando estamos decidindo o
futuro não só da Ucrânia, mas da Europa e do mundo. Não se trata apoio à
Ucrânia, mas apoio aos valores democráticos”. Resposta do presidente brasileiro:
“No momento, não
tenho o que conversar com ele”.
Um
esquecido da banda podre: o PT. Esqueci-me de colocar na banda podre um partícipe que pode se tornar
daqui a pouco fator decisivo na determinação da política brasileira, externa e
interna. A bancada do PT do Senado divulgou o comunicado abaixo (depois o
apagou do site do partido):”PT no Senado. Nota oficial. O PT no Senado condena a política de longo prazo
dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às
fronteiras russas. Trata-se da política belicosa, que nunca se justificou,
dentro dos princípios que regem o Direito Internacional Público. Essa política
imperialista produziu o quadro geopolítico que explica o atual conflito na
Ucrânia. Tal conflito, frise-se, é basicamente um conflito entre os EUA e a
Rússia. Os EUA não aceitam uma Rússia forte e uma China que tende a superá-los economicamente”.
Um olhar nas
brumas do futuro. É claro que a
mudança de rumos do Brasil é o que mais desejam os anticomunistas traumatizados,
muitos dos quais foram às ruas entre 2013 e 2018 e, via de regra, sufragaram
maciçamente Jair Bolsonaro em 2018. Virá? Não sei. O mais importante do artigo
vem agora. O esclarecimento e a vigilância entre brasileiros de bem podem
impedir desastre de proporções dificilmente imagináveis. Com efeito, na
presente crise de nada adiantaram os numerosos apelos ao Brasil dos Estados
Unidos e da União Europeia, entre outros muitos. O país continuou ao lado da
Rússia, com pequenos e até infantis disfarces ▬ como aliás, está fazendo até
mesmo a China, cuja política foi classificada pelo “Financial Times” de
neutralidade pró-Rússia.
Flertando com a
podridão. Não nos enchafurdamos na podridão
ostensiva, mas durante toda a presente crise flertamos sem cessar com ela. Como
maça boa em cesto de maçãs podres, tal conduta, com o tempo, fará o Brasil
apodrecer como o país livre. Felizmente, há reações vivas, penhor de futuro de
liberdade e prosperidade, é o que informa a imprensa, entre as quais o corpo do
Itamaraty que procura evitar desatinos pró-Putin e até declarações como as do
general Hamilton Mourão, ecoando preocupações das Forças Armadas.
Traços de chavismo. Contas feitas, a atual posição brasileira, se não
houver decidida e enérgica mudança de rumos, acarretará sequelas graves ao
país, provenientes sobretudo dos países da União Europeia e dos Estados Unidos.
Demos as costas a eles, não há como fugir da constatação. E abraçamos seus
adversários. Na América Latina, por escolha, distanciados de nossa posição
histórica e da área de influência ocidental, haverá atração inevitável e incoercível
pela zona de influência onde hoje se albergam, uns mais, outros menos, México,
Cuba, Nicarágua, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, logo talvez Colômbia. É o
mundo adversário dos Estados Unidos, pronto para se submeter às influências
russa e chinesa. Caso o PT vença em outubro próximo, e é hipótese que começa a
ganhar ares de provável, dificilmente escaparíamos dali; tragédia anunciada e
virtualmente inevitável. Contudo, caso haja segundo mandato de Jair Bolsonaro, pela
força da lógica, um temor agora se levanta inevitável no horizonte: padeceríamos
governo com traços crescentemente chavistas ▬ e hoje, sentada nas maiores reservas
comprovadas de petróleo no mundo, a Venezuela é o país mais pobre da América do
Sul. Na presente quadra, não é possível afastar dos olhos de fato notório: o
chavismo nasceu nacionalista e com forte marca castrense. O que possivelmente terá
inclinado o então deputado federal Jair Bolsonaro, em 1999, a declarar à
imprensa que o presidente Hugo Chávez, eleito em 1998, constituía “esperança para América Latina” e que gostaria
que “sua filosofia chegasse ao Brasil”. Nada me faria mais feliz do que a
constatação do inteiro infundado de minhas reflexões. Mas, sou mineiro, e, em Minas
se diz “seguro morreu de velho, desconfiado ainda vive”. Quero que o Brasil viva.
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