Trincas na estrutura
de confiança
Péricles Capanema
Em prédio alto, vários andares, colunas e vigas de
concreto, trincas de alvenaria enfeiam, porém não ameaçam a estabilidade.
Trincas na estrutura, em especial a corrosão nas armaduras, não reparadas, podem
causar o desmoronamento do edifício.
Desde os anos 40 do século passado as potências
contrárias ao totalitarismo (comunismo, em outra palavra) constituíram
estrutura de poder, baseada em acordos internacionais, que impediu parte do
mundo de afundar na escravidão (alguns países imergiram). Tal estrutura teve
como esteio os Estados Unidos. Ao lado, em posição preeminente, Inglaterra,
Japão, Alemanha, França, outros ainda. Sua coligação mais forte foi a OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte). O Japão, por óbvio, dela não
participa, mas exerce função análoga no oriente.
Para vários desses países, havia a questão premente da
reconstrução. E o acordo tácito de cavalheiros ▬ no miolo da confiança mútua ▬,
foi, reconstruímos o país, os Estados Unidos cuidam da defesa para nós. Em
troca, agiremos como aliados muito próximos. O episódio mais simbólico desse
longo período foi a visita de John Kennedy a Berlim, junho de 1963, no meio de
gravíssima crise entre União Soviética e Estados Unidos, quando o mandatário
norte-americano proclamou em discurso: “Ich
bin ein Berliner” (sou um berlinense). Podem ficar tranquilos, os Estados
Unidos cumprem compromissos. Pacta sunt
servanda.
Após o fim da União Soviética, apareceram outros
adversários da aliança ocidental, como as políticas expansionistas (quase um
eufemismo, melhor seria, imperialistas) da Rússia e da China. A aliança
comandada pelos Estados Unidos continua a garantia maior contra a queda na
tirania e barbárie. Em que pé está a aliança ocidental? Ou, mais ao ponto, como
está a confiança mútua?
Estará viva na medida em que vigorarem os tratados que
a constituem. Vigorarem, tiverem vigor. Atrás da letra dos acordos, relevância
maior tem a comunhão de aspirações, os interesses comuns, a sensação fundada de
que nada mudou. A letra mata, o espírito vivifica.
Como em um casamento, sob tantos aspectos um contrato,
vale mais a confiança mútua que a tinta dos papeis assinados. As primeiras
trincas na confiança entre os esposos podem anteceder por anos o dia em que
rasgarão contenciosamente o contrato nupcial. No caso de países, por décadas. Infelizmente
estão visíveis as trincas nas relações entre a Comunidade Europeia e os Estados
Unidos. Fica a pergunta: serão na alvenaria? estarão na estrutura?
Em café da manhã na capital belga, em meio a dignitários
dos Estados Unidos e da Europa, presente imprensa, Donald Trump afirmou: “O que
tenho a dizer é muito triste. A Alemanha faz um gigantesco contrato de petróleo
e gás com a Rússia e nós devemos proteger a Alemanha contra a Rússia. A
Alemanha paga bilhões de dólares por ano à Rússia. Assim, os Estados Unidos
protegem a Alemanha, protegem a França, protegem todos esses países. E muitos
desses países celebram contratos de óleo e gás com a Rússia em que pagam bilhões
de dólares à Rússia. Assim, devemos protegê-los contra a Rússia, mas eles estão
pagando bilhões de dólares à Rússia. Penso que não é correto. No fim, a
Alemanha terá quase 70% do país controlado pela Rússia por meio do fornecimento
de gás. A Alemanha está totalmente controlada pela Rússia. Eles obterão entre
60% e 70% de sua energia da Rússia. Devemos proteger a Alemanha da Rússia. Por
que ela está pagando bilhões de dólares à Rússia? A Alemanha está cativa da
Rússia. Vocês estão enriquecendo a Rússia”.
Trump deseja que a Alemanha ponha mais dinheiro na
defesa própria. Que façam o mesmo outros países europeus. Aliás, muitos deles
já firmaram compromisso a respeito. O Presidente alega, estão ricos, podem
gastar mais com sua proteção. O argumento soa convincente, é assunto a ser
discutido. Contudo, dessa forma, em público? Parecendo um pito na quarta maior
economia do planeta, um país de enorme importância, qualificado por aliado, com
poucos véus, de protetorado de potência adversária? Poucos dias antes Donald
Trump, de forma inesperada, havia afirmado, os “piores inimigos” dos Estados
Unidos muitas vezes são os ditos “melhores amigos”.
Obviamente, as palavras do café da manhã foram
rebatidas em público pela chanceler Angela Merkel. Houve problemas parecidos, embora
de menor gravidade, com Therese May. Trincas.
O que está oculto nos entreveros? Claro, há um assunto
econômico a ser resolvido e existem obrigações financeiras diferentes, nascidas
de circunstâncias novas. Acima delas, em geral oculta, paira a questão da liderança
natural, nascida dos fatos, que coloca os Estados Unidos com deveres especiais inegáveis.
Que, diga-se de passagem, via de regra não quiseram eludir no passado, evitando
quase sempre o isolacionismo suicida. Bem compreendidos, tais deveres podem ser
considerados decorrência direta de um “manifest
destiny” ▬ tantas vezes entendido de maneira torta ▬ dos Estados Unidos no
século passado e no presente. Noblesse
oblige.
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