Raios douradas no
crepúsculo fuliginoso
Péricles Capanema
Tenho sido severo ▬ suponho, com justiça ▬ com
aspectos da vida nacional. Severidade pode ser sinônimo de objetividade para quem
procura observar com realismo. Recebo estímulos; aqui e ali, censuras. Não importa,
é quinhão inevitável. Qualquer um que, mesmo que modesta e de forma efêmera,
pise o âmbito público, está sujeito a boas críticas e a injustiças. Moral da
história, tocar a vida sem se preocupar com elas.
Neste texto vou virar a quilha de meu navio e navegar
em rumo diverso. A palavra ufanismo com conotação de orgulho exagerado por
determinada coisa tem sido associada ao conde Afonso Celso (1860-1939). Pouca
gente hoje sabe, Afonso Celso, conde pontifício, foi filho do visconde de Ouro
Preto, último presidente do Conselho de Ministros da monarquia brasileira.
Professor, historiador, escritor, deputado geral no Império, é dos fundadores
da Academia Brasileira de Letras, por ele presidida por duas vezes.
Entre suas obras figura o opúsculo “Por que me ufano
de meu País”, publicado em 1900, redigido, singelo o confessa, para que seus
filhos amassem o Brasil. É trabalho ingênuo, prova pouco e mal o que deseja
demonstrar. Mas tem frescor, a bem dizer inexistente no convulsionado Brasil de
nossos dias. Todos sabemos, o frescor é das mais belas manifestações da vida, em
especial das coisas que nascem. O país conservava traços da infância; apresenta
hoje, sob tantos pontos de vista ▬ sejamos objetivos ▬ catadura de maturidade
depravada.
Vejam o que ele diz dos homens públicos do Brasil de
então (era ainda a geração do Império), um dos motivos enumerados pelo escritor
para esperar na grandeza da Pátria: “Honradez no
desempenho de funções públicas ou particulares. A estatística dos crimes depõe
muito em favor dos nossos costumes. Viaja-se pelo sertão, sem armas, com plena
segurança, topando sempre gente simples, honesta, serviçal. Os homens de Estado
costumam deixar o poder mais pobres do que nele entram. Magistrados
subalternos, insuficientemente remunerados, sustentam terríveis lutas obscuras,
em prol da justiça, contra potentados locais. Casos de venalidade enumeram-se
raríssimos, geralmente profligados. A República apoderou-se de surpresa dos arquivos
do Império: nada encontrou, que o pudesse desabonar. Por ocasião dessa
revolução, senadores ficaram tão pobres que o novo regime lhes ofereceu
pensões. Ao Imperador que governara 50 anos, assegurou a Constituição
Republicana meios de subsistência de que ele precisava, mas que não aceitou.
Quase todos os homens políticos brasileiros legam a miséria às suas famílias.
Qual o que já se locupletasse à custa do benefício público?”
Parece que Afonso Celso fala
de outro país e outro povo. A honestidade (Afonso Celso diz honradez) era característica
comum, presente em nossas elites políticas de então, reflexo de realidade
social generalizada. Temos agora sob os olhos a república dos ratos magros,
esfomeados, lembrando imagem de Roberto Jefferson. Também outra é a realidade
na sociedade.
O viço presente no livro
embebe a descrição do quotidiano de são José de Anchieta, inserido ali para nos
fazer sentir o sabor do Brasil nascente. Leva-nos a crer que, pelos rogos do padroeiro,
Deus se apiedará do Brasil e o recolocará na trilha almejada pelo grande
missionário e fundador de nação: “Vem depois José de Anchieta, o taumaturgo, o
santo do Brasil. Anchieta vai para Piratininga como mestre-escola. Passa aí
misérias sem nome, fome, frio, falta de roupa, morando numa pequena barraca,
onde funcionavam as aulas, e que era, a um tempo, enfermaria, dormitório,
refeitório, cozinha, despensa. Ensinava latim e aprendia tupi, de que compôs o
vocabulário e a primeira gramática. Trabalhava dia e noite, escrevendo as
lições para cada aluno, pois não havia livro. Escrevia hinos, baladas,
interrogatórios para confissões, resumos dialogados da fé cristã e autos
teatrais que os índios representavam ou viam representar, em palcos por ele
improvisados. Exercia funções de médico, barbeiro, fazedor de alpercatas, cujos
cordões serviam também de disciplinas. Poeta, elaborou um poema sobre a vida da
Virgem Maria, na esperança de manter a própria pureza, fixo o pensamento na
mais pura das mulheres. Sem papel, pena e tinta, metrificava os versos,
passeando. Traçava-os em seguida na areia e os confiava à memória.”
Por que destaco a
cena? Na árvore as raízes sãs valem mais que tronco, galhos, flores e frutos. Delas
tudo depende. Aí acima estão as mais lídimas raízes do Brasil, mais enterradas que
as analisadas com talento e lentes deformantes por Sérgio Buarque de Holanda. No
meio da tormenta, justificam esperanças sobrenaturais de que um dia se tornará
realidade o que, com ufania, ainda que em esboço esmaecido, foi confusamente
antevisto pelo simpático conde pontifício.
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