Negócios nada
republicanos
Péricles Capanema
A todo momento leio: “em tratativa nada republicana”, “em
conversas nada republicanas”. Fui ao Google e coloquei nada republicano, nada
republicanos, nada republicana, nada republicanas. Milhares de entradas. Nunca, porém, ouvi em meus círculos empregar a expressão. Sintoma de que é
muito utilizada na opinião que publica, pouco ou nunca na opinião pública.
Contudo, sempre
me pareceu expressão disparatada ▬ pelo menos no Brasil. Espanta-me que ninguém
tenha tido a iniciativa, comezinho bom senso, de invertê-la. Para corresponder
à realidade, obviamente se deveria dizer entre nós quando nos referirmos a maroteiras
: “em tratativas tipicamente republicanas”, “em conversas genuinamente
republicanas”. Um exemplo: “Em atitude tipicamente republicana, Michel Temer,
na calada da noite, sem registro na agenda, recebeu Joesley Batista no Jaburu”.
▬ Eu tô de bem
com o Eduardo.
▬ Tem que
manter isso, viu?
▬ Todo mês,
também, e tô segurando as pontas, tô indo. [...] tô meio enrolado aqui, né, no
processo assim…
▬ Você está
sendo investigado.
▬ Isso, é,
investigado. [...] Eu dei conta de um lado do juiz, dá uma segurada.
▬ Está
segurando os dois?
▬ Tô
▬ Ótimo,
ótimo.
▬ Segurando os dois. E eu consegui um procurador,
dentro da força tarefa, que está também me dando informação.
Nenhuma dúvida, diálogo autenticamente republicano. Sei,
sei, alguém vai observar, na República romana havia elevação e probidade nos
homens públicos. Seriam os modelos. A mais, possivelmente a expressão terá raízes
em varões de Plutarco, qualificativo esteado no livro “Vidas paralelas”,
biografias de gregos e romanos ilustres, com serviços relevantes ao bem comum. Sei
lá. Ou veio de “Da República” de Cícero. Quem sabe. Sempre longe de nossa
realidade.
Acho igualmente absurdo buscar inspiração na Revolução
Francesa, cujos líderes, em larga medida, foram bandidos, mentirosos, assassinos,
tiranos e ladrões. Inspiração na ação política de Robespierre, Danton, Marat?
Santo Deus.
Do mesmo modo, embora usadas a torto e a direito, não
fazem sentido ética republicana, espírito republicano, para significar
honestidade, decência, morigeração, comedimento, dignidade, interesse real pelo
bem comum. Não devemos esbofetear a realidade, as palavras precisam refletir os
fatos.
Os vitoriosos do golpe de 15 de novembro de 1889
ofereceram a dom Pedro II grande quantia em dinheiro (já começava ali a prática
do mensalão). O Imperador recusou com a resposta que hoje provocaria muxoxo
gaiato nos republicanos autênticos: “Com que
autoridade estes senhores dispõem do dinheiro público?”
A honestidade generalizada no trato
do dinheiro público sobreviveu no Brasil enquanto durou a geração de homens
públicos formados no Império. Foi o que, aliás, constatou o historiador José
Murilo de Carvalho: “O comportamento político do monarca foi marcado pelo
escrupuloso cumprimento da Constituição e das leis, pelo respeito não menos
escrupuloso ao dinheiro público, pela garantia da liberdade de expressão. […] Seu
governo deixou uma tradição de valorização das instituições que, apesar de
quebrada pelo golpe republicano, foi recuperada na Primeira República e talvez
esteja viva até hoje. [Seu governo] legou um padrão de comportamento político
que também sobreviveu nas primeiras décadas republicanas”.
O erudito historiador continua com pirueta inesperada, surpreendente
salto triplo carpado, sustentando que havia valores republicanos no Império,
desapareceram na República e a falha foi do Império por não os ter incutido
como deveria; “O que menos sobrevive hoje são os valores e atitudes
republicanos. Na raiz deste retrocesso talvez esteja uma das falhas do sistema
imperial, herdada pela Primeira República: a incapacidade de [...] promover a
expansão da cidadania política. [...] O apelo à republicanização [...] pode ter
ainda hoje, como uma de suas referências, o exemplo de Pedro II.
Republicanizando-se, o regime completará a herança imperial”.
Já que a república institucionalizou a bandalheira, para torna-la promotora
do bem comum o engenhoso historiador sugere tornar dom Pedro II referência para
o regime e manter a herança imperial.
Outra cambalhota que ajuda o regime republicano. O mesmo historiador
busca no século 17 (1633), com um jesuíta famoso, o sentido em que poderíamos
autenticamente utilizar a palavra república, mas já agora sem nada ter a ver
com regime político. O padre Simão de Vasconcelos (1597-1671) escreveu: ““Nenhum
homem nesta terra é repúblico, nem vela nem trata do bem comum, senão cada um
do seu particular”. Entenderam? Repúblico tem relação com res publica, coisa púbica, bem comum. Poderemos ter o monarquista
repúblico, o republicano repúblico, o democrata repúblico. E vai por aí afora.
Declaro-me vencido. Matizo minha
opinião. Acompanhando o jesuíta, acepção usual daquela época, podemos empregar
a expressão nada republicano. Mas, cuidado, nunca a ligar à República
brasileira, nem à Revolução Francesa, o que a tornaria contaminada por doença
grave. Lembremo-nos unicamente do padre Simão de Vasconcelos.
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