Um discriminado
esquecido
Péricles Capanema
O Brasil, seguindo tendência mundial, tem ativamente
promovido políticas públicas chamadas via de regra de discriminação positiva; as
ações afirmativas (outro nome) visam diminuir desvantagens relativas. Há leis favorecendo
idosos, crianças, mulheres, negros, pobres, estudantes, portadores de
deficiências físicas, entre eles os cegos, surdos e cadeirantes. Quando
sensatas as normas e razoável sua aplicação, nada a objetar, têm efeitos
benéficos.
No dia a dia, quem não gosta de ser atendido em sua inferioridade?
Qualquer um de nós apresenta desvantagens, depende até da hora. E, normal, todos
acham bom os outros levarem em conta tal situação. Entre eles, o Poder Público.
Mas não falo apenas de leis e programas sociais, tenho muito em vista bons
hábitos sociais. Em curto, a aplicação da caridade entre os homens.
Simplificando, até com nota irônica, apenas o branco
jovem, rico, atlético, estudos superiores, vivendo em lar bem constituído, desnecessitaria
de discriminação positiva. Falso; à vera, quando observado de perto, também é carente,
precisa de cuidados especiais. Terá problemas psicológicos, será míope, pouco
inteligente, sei lá mais o quê. Enfim, a discriminação positiva (se escoimada
da inveja e da mentalidade achatadora revela em seu núcleo uma virtude cristã,
a compaixão) vale para todos, vem para minorar os doloridos efeitos das incapacidades
relativas por nós padecidas. Já se vê, impossível pôr tudo a cargo da norma
legal. Sem depreciar o recurso a elas, a solução mais eficaz, barata e
duradoura, começando no interior das famílias, é a constituição de hábitos
sociais virtuosos, inspirados no Evangelho “amai-vos uns aos outros, como eu
vos tenho amado”.
Temos em maior
evidência as cotas para negros em empregos públicos e universidades. Não vou tratar
a fundo das distorções, entre elas, por exemplo, a todo momento se fala de abusos
na declaração de que é negro para cair no espaço favorecido das cotas. A Folha de São Paulo de hoje (14.4.2016)
traz editorial a respeito. Informa que grupos de negros universitários estão se
mobilizando contra o que chamam falsos cotistas. Apesar das mobilizações, no presente
quadro o jornal não vislumbra saída razoável para o caso: “Trata-se de questão
insolúvel: a autodeclaração constitui o único critério legal para definir se
alguém é negro (ou de qualquer outro grupo social). Em tese, o sujeito de pele
alvíssima que na inscrição do vestibular disser que se considera negro ou pardo
deverá ser tratado como negro ou pardo. Substituir a autodefinição por
critérios raciais objetivos é impraticável. A ciência não tem como ajudar, pois
nem existe definição de raça universalmente aceita. Embora os comitês raciais
exerçam certa pressão moral para evitar casos gritantes, pouco podem fazer do
ponto de vista jurídico”. Conclui com uma proposta, cotas segundo a condição
econômica: “Há várias vantagens nas cotas exclusivamente sociais. Um branco
pobre que necessite de ajuda não será prejudicado apenas pelo fato de ser
branco”.
Ia falar de um tipo de discriminado. Súbito outro pulou à minha frente,
o obeso, continuamente discriminado, também candidato natural a tratamento
diferenciado. Agora sou eu que o empurro de lado, e trato do discriminado razão
do título do artigo: o superdotado, entre nós, esquecido e injustiçado, com
grave lesão ao bem comum.
É muito censurável deixar de privilegiar e atender, com prudência, a
idosos, cadeirantes e outros em desvantagem grave. Mas o dano ao bem comum na
maioria desses casos é relativamente pequeno.
Deixar de atender a superdotados traz gravíssima injúria ao bem comum.
Nos Estados Unidos, o superdotado é caçado como tesouro escondido. O povo tem
noção clara que é loucura deslavada deixar ir para o ralo tal riqueza potencial.
Logo que encontrado, é mandado para universidades de ponta e não param aí os
estímulos. O mesmo acontece em numerosos países asiáticos. É claro, esta ajuda à
carreira dos superdotados os favorece e a suas famílias. Compreensível e justificado.
Acentuo outro ponto: tem enormes reflexos benéficos no bem comum. O país recebe
em troca descobertas sem número, novas e mais produtivas técnicas de gestão, melhorias
na qualidade do ensino, start-ups
criativas; enfim, vias inovadoras de crescimento social. Estudo feito em 80
países por economistas da Universidade de Chicago mostrou, as políticas de
aproveitamento de talentos levadas a cabo pelas nações mais ricas em numerosos
casos foram o principal fator de sua prosperidade econômica.
No Brasil temos milhões de
superdotados. Estimativa da OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta entre nós
de 3,5% até 5% de pessoas superdotadas. É o maior recurso natural do País. Nem
precisaria lembrar, essa enorme riqueza em potencial em boa parte vai para o
lixão. Para ser bem aproveitada, seria preciso detecção precoce e rápido
aproveitamento. Parte expressiva de tal potencial está nas classes de menor
poder econômico. E mesmo muitos pais abonados não têm a atenção bem orientada
para o potencial de seus filhos. Quem se preocupa, fora alguns abnegados? No
Poder Público, o que é feito?
Para concluir, duas constatações. Em
parte esse desinteresse demolidor vem do desconhecimento de que, via de regra,
o que mais favorece o bem social é o estímulo à plenitude, em qualquer campo e
o mais generalizado possível. Por óbvio, dentro de uma moldura de proteção a
todos e desigualdades harmônicas. Segunda constatação, mais importante. Existe infelizmente
ainda muito viva a obsessão igualitária, que tenta por todos os meios impor um
nivelamento antinatural, causa de terríveis sequelas empobrecedoras. Ninguém
fala em ação afirmativa a favor dos superdotados. Milhões deles, hoje pobres e
indefesas crianças sem nenhuma proteção, com muita probabilidade cairão no lixão
da vida. Seria normal, compassivo e até muito vantajoso ajudá-las de forma
especial. Mas não merecem dó. A obsessão igualitária e a patrulha aferrolham as
bocas. Tiro no pé de todos nós.
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