domingo, 11 de junho de 2023

Artigos antigos sobre o marco temporal

 

Artigos sobre o marco temporal

 

O marco temporal e o futuro do Brasil ou De ore tuo te judico (1)

 

Péricles Capanema

 

Julgo-te pela tua boca. Pelo que tu livremente disseste (assim como um sem-número de propagandistas, em especial enquistados na academia e nos meios de divulgação, aderentes a orientações de igual rumo), relator ministro Edson Fachin. O relatório expressa com contundência, autoridade e clareza o pensamento de corrente demolidora, cada vez mais influente no Brasil, de que infelizmente o destacado magistrado se revelou um dos corifeus. Reitero. Houve algo que diminuísse o valor probatório das palavras enunciadas? Não, o ato foi livre, refletido, público, prestigiado. Lembro aforisma corrente no processo penal, das provas a rainha é a confissão. Vem do Direito Romano, repercute no conhecido adágio espanhol: “a confesión de parte, relevo de prueba”.

 

A compaixão cristã postula a defesa do marco temporal, hoje estaca da segurança jurídica. Tratarei em alguns artigos, este é o primeiro, do Recurso Extraordinário 1.017.365, que traz à baila a grave questão do marco temporal nas demarcações de terras indígenas. O futuro do agronegócio no Brasil depende da solução que a ela der o Supremo, lembrou com fundamento o Presidente [então, Bolsonaro]. Melhorando, ecoou opiniões disseminadas na agropecuária e em setores da indústria e do comércio. Se for decidida na conformidade com o que exige a esquerda extremada (CIMI, entre outros organismos), teremos, por anos a fio, o risco macabro, e ainda hoje evitável, de queda na produção, consequente carestia de produtos agrícolas, desestímulo para investimentos, daí decorrendo inevitável generalização da pobreza. Nada poderia ser mais cruel para o povo em geral, para os indígenas em particular. A compaixão cristã reclama luta urgente em defesa da prosperidade e assim a rejeição do RE 1.017.365. De passagem, noto, tal corrente, acima mencionada, é majoritária? Certamente, não, mas leva atrás de si multidões que desejam a derrota do marco temporal no Supremo, enganosa e superficialmente, por julgarem-na postura progressista favorável aos índios, defensora do meio ambiente, coisa de gente de bom coração. Em suma, inocentes uteis de posição, na realidade, desumana com os indígenas e destruidora do futuro pátrio.

 

O voto do relator ministro Edson Fachin. Mais especificamente, vou tratar do voto do relator, ministro Edson Fachin, que guerreou a tese do marco temporal, abrindo caminho para a demolição da segurança jurídica (já tão combalida) em especial no campo brasileiro. Evidenciando no Supremo pressaga correlação de forças, constituirá disparo prenunciativo do que nos pode reservar o futuro. O longo voto do ministro Fachin, 109 páginas, está na íntegra em vários sites da rede; é de consulta rápida e fácil. Meu trabalho se limitará a respigar partes dele, acrescentar aqui e ali pequenos comentários. Qualquer um poderá conferir na rede a autenticidade da citação e, com isso, a pertinência do comentário. Dessa forma, não atravancarei a leitura com referências.

 

Frankenstein apavorante. Em resumo, o que temos ali? Dói-me dizê-lo e faço as vênias devidas ao douto ministro da Suprema Corte, mas no caso (o voto) padecemos texto demagógico, distante a léguas da isenção que se deve esperar de um magistrado, eivado de incoerências e contradições, a mais de escasso valor jurídico. De forma congruente, em seus efeitos, favorecedor do totalitarismo, do retrocesso, da intolerância e da exclusão. O curso incoercível da lógica leva ainda a afirmar, os indígenas são cruelmente tratados como cobaias de experimentações, cujo efeito prático, se triunfar o utopismo, será petrificar suas comunidades no atraso e na miséria.

 

Recusa da noção de pessoa humana. O ministro Fachin ao hostilizar o marco temporal assume e divulga (nenhuma reserva expressa no texto) a doutrina exposta por Ailton Krenak: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos humanidade. Enquanto isso, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza”. Existe então uma historinha para embalar (outra palavra para enganar, iludir crianças na hora de dormir): somos humanidade. Adultos, saberemos a verdade. Não somos, de fato, humanidade, pois não somos pessoa humana ▬ convicção demolidora central em suas posições. Tudo é natureza; somos, à vera, mera parte de um organismo, a natureza. O único real é o organismo natureza. Aqui está na doutrina o maior fundamento para a posse indígena, os indígenas se considerariam parte de um organismo. Precisam da terra para manter essa simbiose, suas concepções e modo de vida. São terra, enfim. Comenta o ministro Fachin: “A terra para os indígenas (...) relação de identidade, espiritualidade e de existência”. Indígenas e terra, idênticos.

 

Demolição de séculos de civilização ascensional. Em sentido contrário, toda a civilização ocidental se desenvolveu tendo como base o conceito de pessoa humana, a seguir enunciado “individua substantia rationalis naturae”, na clássica definição de Boécio. A pessoa é substância individual de natureza racional. Substância individual racional, daí ter direitos individuais, entre os quais os direitos da personalidade. Toda a ação humana busca a felicidade; de outro modo, o aperfeiçoamento da pessoa ▬ tem direito a desenvolver rumo à plenitude a própria personalidade. Família, grupos intermediários e até o próprio Estado existem, fundamentalmente, para o aperfeiçoamento da pessoa humana. Negada a nota de indivíduo da pessoa, desmorona todo o edifício jurídico ▬ e filosófico ▬ sobre o qual se construiu a civilização ocidental. Se não existir o homem, ser racional individual (precipitado à condição de mera parte do todo, a natureza) fica absurdo falar em direitos individuais, direitos de comunidades. Congruentemente se torna absurda a frase bíblica: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e presida aos peixes do mar, e às aves do céu, e aos animais selváticos, e a toda a terra” (Gen., 1, 26). Triunfa a obstrução a todo avanço civilizatório.

 

Outro fundamento do direito indígena: o imaginário. O texto abaixo, reproduzido pelo relator, já consta do processo anterior, a Pet nº 3.388, água que o ministro Fachin trouxe para seu moinho, pois, entende, fá-lo-á moer mais rápido e com maior força o marco temporal: “Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia”. Imaginário é fantasia. Está escrito aqui, na fantasia indígena a terra é um ser (só falta dizer vivo) que junta em si ancestralidade, coetaneidade e futuro. Estamos próximos da definição de um deus; concepção panteísta da Terra, sem dúvida. O indígena faria parte desse ser que tudo abarca. Desaparece, de novo, a noção sobre a qual se construiu o direito e da qual nasceu a civilização ocidental e cristã: “individua substantia rationalis naturae”.

 

Plenitude para os povos originários. O indígena, nosso irmão, tem direitos individuais, como qualquer ser humano; mais especificamente, tem o direito ao desenvolvimento inteiro de suas potencialidades. A ele precisam ser proporcionadas condições para tal. Voltarei ao tema. [Postado originariamente em 14 de setembro de 2021 ▬ modificado]

 

 

O marco temporal e o futuro do Brasil ou De ore tuo te judico (2)

 

Péricles Capanema

 

Continuo na exposição e análise do voto do ministro Edson Fachin no RE 1.017.365. Resumindo o que afirmei no primeiro artigo, apenas respigo trechos do voto ajuntando pequenos comentários.

 

Servos da gleba. Os indígenas brasileiros, por determinação constitucional, foram reduzidos à condição de servos da gleba. Condição petrificada, não lhes é aberta a possibilidade do domínio. O servo da gleba medieval não tinha a propriedade da terra (domínio). Trabalhava nela e em troca recebia alimentos, proteção, segurança, estabilidade. Em repetidas ocasiões em todo o voto, ecoando opinião comum, afirma-se, é reconhecida aos indígenas a posse permanente da terra. O ato administrativo estatal tem caráter declaratório, jamais constitutivo. O ministro Fachin transcreve voto antigo do ministro Celso de Mello que trata da questão, externando, aliás, opinião pacificada na Corte: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União Federal. As áreas por elas abrangidas são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva. A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União, criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades indígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Continua o relator: “Portanto, muito embora a homologação do procedimento tenha como finalidade a exteriorização da posse indígena, com o consequente registro da área na Secretaria de Patrimônio da União, repita-se que o procedimento demarcatório não constitui terra indígena em nenhuma de suas fases, mas apenas reconhece a existência da posse tradicional preexistente”. De outro modo, preto no branco, é uma grande balela afirmar que existe terra indígena. O que existe, no caso, é posse garantida por legislação federal.

 

Possibilitar a reprodução cultural, segundo usos, costumes e tradições. A outorga dominial (de fato, esbulho, como se verá) que a União fez, reservando-se a propriedade, e concedendo a posse, tem como base os direitos originários ▬ sobre eles, discorro abaixo. Direitos originários, repita-se, em termos. A União reservou o domínio para si. Para justificar o fato brutal, já muitas vezes repetido, alegam-se proteção do bem-estar, garantia da reprodução cultural segundo os usos. Prevê a lei, tal situação nunca será modificada; os indígenas permanecerão sempre na condição de servos da gleba. Foi sempre assim? Não.

 

Direitos originários. O reconhecimento e a declaração da posse indígena se dão com base nos direitos originários dos índios sobre a terra, manifestado via de regra pela ocupação tradicional. O direito originário, anterior à Lei Magna e, de fato, anterior à constituição do próprio Estado é claro direito natural. Sem o confessar, o que se afirma é a legitimidade e validade deste direito natural. Dirão alguns, não é direito natural, é direito histórico. Bobagem, tem raiz no direito natural. A posse no caso é o exercício de uma das faculdades próprias ao domínio. Enfatizo o fato óbvio, se o direito é originário, antecede à lei, é direito natural e inclui o domínio. E estamos diante de esbulho estatal, que nega aos indígenas o domínio. Foi sempre assim, dirá alguém. Não foi. O ministro Fachin traz documentos que provam que antes não era assim, estamos diante de realidade relativamente nova, os reis reconheciam, sem nenhum entrave, aos indígenas o domínio e a posse da terra. De outro modo, julgavam justamente, reconheciam o fato anterior inconcusso, não lhes negavam o domínio. E, com ele, a posse. Contudo, é óbvio, num quadro jurídico que levasse em conta os institutos do Direito Civil.

 

Proponho seguir o bom exemplo dos reis, avançar sensatamente na direção correta, eliminando o retrocesso já multissecular. Seria política de amplo e longo alcance, admito, mas representaria reconquista e avanço extraordinários, conferiria aos indígenas condições para desenvolver em melhores condições os direitos individuais, os direitos da personalidade, retirando deles assim uma tutela asfixiante. Com sensatez, mantendo todas as proteções, a extinção de tal entulho autoritário, acabaria com a condição de servo da gleba. Ensina a respeito o relator Fachin: “Assim, as cartas régias de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III, afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamento: ‘os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando eles livremente o quiserem fazer’”. O mesmo reconhecimento do domínio [e posse, claro] dos indígenas sobre as terras, lembra o ministro Fachin, ainda se pode constatar em alvará régio de 1680: “Nada obstante o contexto fático, o reconhecimento de posse e domínio sobre as terras que ocupam ocorre com o Alvará Régio de 1680, o qual consignava: ‘[...] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia’”. Foi a Direito contemporâneo que operou a regressão: suprimiu o domínio, esbofeteando o Direito Natural, reconhecendo como grande concessão a posse. Da condição de senhores, reconhecida pelos reis, caíram para a situação de servos da gleba. Não estaria na hora de avançar, retomando com prudência e senso da justiça a trilha real? Pelo menos de pensar proativamente a respeito? Repito, colocar a questão de modo a favorecer a segurança e felicidade dos indígenas, mas levando em conta, com peso e medida, os institutos do Direito Civil. A propósito, não li, não ouvi, não percebi em ninguém dos chamados setores progressistas algo que longinquamente poderia lembrar o brado libertador, o clamor de quem realmente deseja futuro de prosperidade para os povos originários: “É preciso em relação aos indígenas extinguir a condição de servos da gleba”. Servos da gleba, não há como negar, evoca se não o trabalho análogo ao do escravo, objeto de lei brasileira, mas condição análoga à de escravo.

 

Outra pirueta semântica. A posse é atributo da propriedade. Está no próprio relatório: “A posse civil pode ser conceituada como ‘sempre um poder de fato, que corresponde ao exercício de uma das faculdades inerentes ao domínio’ (GOMES, Orlando. Direitos reais. 19.ed. atual. por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 51), tal como definido no artigo 1.196 do Código Civil, in verbis: “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. E então, como fica a questão da posse indígena? Foi forjada mais uma teoria [em linguagem informal, uma pirueta] para evitar as trilhas conhecidas do Direito Natural, do Direito Civil e do Direito Constitucional. Evangeliza o ministro Fachin: “De início, cumpre afirmar que já restou assentado por esta Corte que a posse indígena difere frontalmente da posse civil, não sendo, portanto, regulada pela legislação privatística vigente, mas sim pelas previsões constitucionais configuradoras do direito territorial indígena. É como delineou a questão o acórdão prolatado na Pet nº 3.388: ‘[...] Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo seus usos, costumes e tradições’ [...] Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que os artigos 231 e 232 da Constituição Federal constituem um completo estatuto jurídico da causa indígena.” O ministro Fachin não fugiu do tema espinhoso; enunciou-o com simplicidade. O referido conceito de posse não tem guarida no Direito Natural [isto digo eu, consoante o enunciado do texto], não tem guarida nos institutos ortodoxos [isto é, conhecidos e admitidos] do Direito Civil, não tem guarida nas doutrinas do Direito Constitucional. É coisa nova, que ele deixa vaga, guarda-se bem de conceituar, [à vera, verdadeiro negotium perambulans in tenebris], intitulada pelo relator de “instituto heterodoxo” do Direito Constitucional. Qualquer estudante de Direito Constitucional poderia ajudar o ministro aqui qualificando a referida heterodoxia: arbítrio. É doutrina arbitrária e cerebrina, gizada para justificar um frankenstein jurídico. Em resumo, pondo de lado o blá-blá-blá, é isto: a posse, postas certas condições, no Direito Romano, no Direito brasileiro e, a bem dizer, em todos os ordenamentos do mundo, leva ao domínio; um minuto, não no direito territorial indígena vigente no Brasil ▬ neste, a posse nunca trará o domínio.

 

Reduções jesuíticas. As reservas e terras indígenas lembram instituição antiga, açoitada impiedosamente pelo obscurantismo iluminista, as reduções jesuíticas ▬ aldeamentos com pouco contato com o exterior, destinado a formar uma nova sociedade isenta dos vícios vigentes fora dela; utopias na narrativa do enciclopedismo. Dessa forma, os jesuítas. Na tentativa de criar a nova cristandade, utopias cristãs, afirmavam os racionalistas, limitavam a liberdade, educavam em certa direção. Com traços parecidos, agora nas utopias sociais contemporâneas, nas reservas indígenas se almeja instituir um novo modo de vida, uma nova civilização, se quisermos, a ser imposta a cobaias de experimentação social (na prática, a utopia apregoada pela academia, meios de divulgação e mundo oficial) na qual se exclui sempre a apropriação individual. No caso brasileiro vige a apropriação coletiva, não comunal, mas estatal. Limitam-se as liberdades para obtê-la, precipitando os indígenas tutelados para a condição substancial de servos da gleba. Atrofiam-se possibilidades de realização pessoal do índio, de sua família e de seu grupo. O ministro Fachin manifesta revelador incômodo com contato com forasteiros, ao discorrer sobre comunidades indígenas isoladas: “A compreensão de uma sociedade plural e de respeito à diversidade, como aquela que a Constituição de 1988 busca constituir, exige que se respeite o direito à autodeterminação desses povos, mantendo-os fora do contato constante com outras pessoas, em respeito a seu modo de vida”. É a novilíngua, para garantir a autodeterminação, cerceiam-se os contatos. É congruente, polui o contato com o forasteiro empapado de civilização ocidental, mercantilista e individualista. Situações assim, que se multiplicam, a lógica nos comanda a conclusão, nascem da intolerância, provocam exclusão. É o que, mutatis mutandis, teria vigência em reduções jesuíticas, segundo detratores; é o que tem vigência nas aldeias talibãs.

 

Parcialidade chocante. Em abono de suas posições, o ministro Fachin em geral busca apoio nas mais extremadas correntes revolucionárias do indigenismo e da cena política, o que não se harmonizam com a isenção e a imparcialidade que se espera dos magistrados. Cito três, CIMI (Conselho Indigenista Missionário), APIB - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e CNV - Comissão Nacional da Verdade ▬ na atuação se revelou uma comissão nacional da mistificação. Quanto às duas primeiras cita como dado objetivo e inconteste: “Como informam a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, admitidos no feito na qualidade de amici curiae, o Brasil possui hoje, de um total de 1.298 terras indígenas, 829 demarcações não finalizadas, ou sequer iniciadas”. Se o RE 1.017. 365 obtiver maioria, por aqui já se percebe, teremos o efeito de suas decisões, de saída, em cerca de mil situações conflitivas Brasil afora. Da Comissão Nacional da Verdade, o relator cita trecho de demagogismo delirante, apresentado como portador de dados objetivos: “Como resultados dessas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas”. 8.350 indígenas assassinados. Número real: exponencialmente maior. Fora os casos em que o número é tão alto que desencoraja estimativas. É isso, extrato de relatório apresentado à Suprema Corte.

 

Tutores infiéis. Paro por aqui, continuo depois. Infelizmente, doloroso constatá-lo, temos texto mambembe, inçado de inverdades, fantasias, arbitrariedades, que poderá servir de base para decisão que lesará gravemente o agronegócio, petrificará o atraso, gerará pobreza. O relator, douto homem de ciência e jurista conhecido, de certa maneira foi empurrado para a apresentação de texto decepcionante (para ficar por aqui) por falta de alternativa. É indefensável logicamente a causa demolidora que teve a infelicidade de esposar. Os indígenas precisam de amigos que gostem de vê-los em situações de grande realização pessoal, desejam-nos crescendo na vida, em ascensão moral e material; que Deus os livre da multidão de tutores infiéis. [Postado em 14 de setembro de 2021]

 

 

O marco temporal e o futuro do Brasil ou De ore tuo te judico (3)

 

Péricles Capanema

 

Adiante; aqui vou em mais uma rápida análise do laborioso voto (109 páginas) do relator ministro Edson Fachin no Recurso Extraordinário 1.107.365. conhecido usualmente como ação do marco temporal. O artigo será o último da série, não mais atormentarei o leitor com o tema.

 

Cláusula pétrea abusiva. No voto um ponto desperta especial atenção. As cláusulas pétreas estão no artigo 60 § 4º do texto constitucional: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (I) a forma federativa de Estado; (II) o voto direto, secreto, universal e periódico; (III) - a separação dos Poderes; (IV) - os direitos e garantias individuais”. Direitos e garantias individuais, texto claro, são cláusula pétrea. A dicção constitucional não inclui direitos coletivos. O douto relator do Recurso Extraordinário tenta esticar o alcance do inciso, vai que cola: “De início, cumpre afirmar que os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais [...] Essa qualificação dos direitos territoriais indígenas como direitos fundamentais acarreta quatro consequências relevantes para o julgamento do presente feito. Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea [...] resta impedido (o legislador) de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos [...] coletivos”. Se colar, ele colará o Brasil na agitação rural. As terras indígenas já constituem 12,2% do território nacional. Admitida a interpretação aqui proposta pelo voto do relator ▬ compunge afirmá-lo, em relatório que pouco relata e muito desorienta ▬, haverá novo e fortíssimo instrumento legal para legalizar invasões, laudos antropológicos fajutas, e outros recursos dos movimentos revolucionários para coletivizar o campo. Em consequência, o Brasil padecerá inchaço na insegurança jurídica, tensão social e debandada de investimentos, com a inevitável baixa na produtividade, agravamento da pobreza e queda do emprego e renda.

 

Mandinga tóxica de amplo espectro. Farmacêuticos antigos advertiam contra os remédios de amplo espectro. Perigavam não curar nada. Perigavam ter efeitos deletérios. Aqui temos um típico recurso dialético de amplo espectro ▬ um duplo twist carpado; pirueta ladina, em linguagem informal. O digno relator afirma, o direito coletivo é cláusula pétrea. Não está nos itens constitucionais da cláusula pétrea. Mas ele escapa desabalado pela tangente: é direito fundamental. Logo é cláusula pétrea. Devagar, não fora ele membro da Alta Corte, logo se diria recurso capcioso de sofista. Quando se compulsa o título II da Constituição de 1988 - Direitos e garantias fundamentais - [e garantia, discute-me muito, sei, mas é um direito], encontra-se uma nominata amazônica de direitos fundamentais. No artigo 5, além de 5 no caput, temos 78 nos incisos. No artigo 6º, são 13 no caput. No artigo 7º, 28. No artigo 8º, 1 no caput e 8 nos incisos. No artigo 9º, 10º e 11º, um em cada caput. Claro, há muita repetição, mas pela minha conta são 136 direitos fundamentais. Todos constituem cláusula pétrea? Não faz sentido. Muitos comentaristas resumem os direitos fundamentais a cinco, classificação sensata: vida, liberdade, propriedade, liberdade de expressão, participação política e religiosa. Em suma, o argumento do ministro Fachin, dada a devido vênia, não tem valor. A justificativa, à vera, Vi no sentido contrário, tende a amputar do indígnena brasileiro um direito fundamental: o direito à propriedade privada, condição para que ele cresça, desenvolva-se e se torne cidadão pleno. É retrocesso claro, gerador de asfixia de possibilidades, crueldade insensível com os sofrimentos que daí adviriam, dificultando-lhe o acesso aos bens da civilização. Essa revivescência caricata das reduções jesuíticas dificultaria educação, saúde, trabalho, previdência social, assistência aos desamparados.

 

Impedir aventuras destruidoras. O recurso extraordinário RE 1.107.365 foi interposto pela FUNAI em face de acórdão prolatado pelo TRF-4, que havia confirmado sentença de 1ª instância. Havia assim duas decisões garantindo a reintegração de posse à Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente. ▬ FATMA. O RE sustenta, as terras em disputa eram tradicionalmente ocupadas pelos índios Xokleng. Foi dada repercussão geral ao recurso e sua decisão, se favorável, trará consequências importantes para a propriedade rural no Brasil. Teremos, é o previsível, em cascata, laudos antropológicos sem fundamento real, invasões, campanhas na imprensa, pressão de movimentos revolucionários, tudo empurrando para uma só direção: transformar fazendas, boa parte altamente produtiva, em terras indígenas. Serão centenas, se não, milhares, os casos ao longo dos próximos anos. Do voto dos ministros do Supremo, como espada de Dâmocles, pende o destino do campo ▬ se próspero, se atrasado e conflituoso. Simples acima, derrubar o marco temporal é trágico para o agronegócio brasileiro, funesto para os povos originários. O saudável seria uma aliança para a prosperidade unido povos originários e produtores rurais. Constituiria verdadeira e autêntica liga popular e nacional pelo Brasil. Falta, ponto indispensável para o crescimento pátrio e melhora generalizada da qualidade de vida: o produtor rural e o indígena precisam ser conscientizados e se conscientizar de que são aliados naturais.

 

A vida como ela é. Na concepção cerebrina e arbitrária, compartilhada pelos movimentos indigenistas revolucionários, enquistada em redações, sacristia e academia, e agora ecoando em votos decisivos no STF, os indígenas vivem em união quase idílica com a natureza, da qual decorre modo de vida e cultura favorecedores das comunidades a que pertencem. Preservam a natureza, preservam a vida, fruem e mantêm a felicidade. Na prática, infelizmente, as terras indígenas são foco de doenças, algumas endêmicas, alcoolismo, consumo de drogas, suicídios altos, aluguel de áreas para mineração ilegal. Não são redutos de felicidade. Ficaria muito surpreso se inquérito objetivo, feito com lideranças e indígenas responsáveis Brasil afora, residentes em tais terras, não revelasse como preocupações primordiais das populações indígenas, entre outros itens, a instalação de um posto da saúde na aldeia, a construção de uma escola, o oferecimento de formação que assegurasse o futuro dos filhos, o combate ao alcoolismo, drogas e roubos. A mais de concessão sensata de liberdade econômica progressiva ▬ o que, aliás, favoreceria em muito o bem comum no Brasil. Constaria também, item de relevo, a construção de estradas que ligariam tais populações aos maiores centros de consumo e educação do Brasil. Em resumo, preocupações em larga medida iguais às dos setores mais vulneráveis no Brasil. Querem melhorar de vida, desenvolver dons, ainda largamente potenciais, que sentem palpitar em si. São reivindicações compreensíveis, justas, devem ser atendidas com urgência em toda a medida do possível.

 

Clamor pela plenitude. Concluo reafirmando, as políticas indigenistas idôneas que em verdade ajudariam os indígenas e favoreceriam o Brasil deveriam estimular o aperfeiçoamento de tais populações ▬ não são, nunca deveriam ser, cobaias de experimentações sociais utópicas. Alguns pontos a considerar: crescer na educação, crescer na saúde, aumentar o contato de forma inteligente e mutuamente vantajosa com o resto do Brasil; ainda, caminhar com segurança e paulatinamente na estrada da autonomia crescente rumo à completa independência pessoal. No fundo do horizonte, o desenvolvimento inteiro de suas potencialidades, a procura da plenitude, o único caminho que pode levar à felicidade, sob o olhar de Deus.  Por óbvio, a plenitude extinguiria a situação de minoridade perpétua. Deixaria de existir o engodo aninhado na expressão “terra indígena”, hoje mero recurso propagandístico, de momento tóxico manipulador de paixões populares. “Terra indígena” passaria a ser realidade ▬ posse e domínio. Com os poderes inerentes ao domínio. Com sensatez, com o olhar sempre colocado com discernimento no bem indígena e no bem comum nacional, é preciso caminhar cauta e resolutamente rumo à plena cidadania dos indígenas, retirando-os da condição humilhante de tutela e minoridade perpétua, posição obscurantista, retrocesso histórico, fator de atraso e sofrimento dos povos originários. O olhar precisa se voltar, com energia para plenitude, cidadania plena, arejamento, crescimento, ainda que, é natural e cristão, dentro de um quadro efetivo de proteção ampla e privilégios legais. Há uma dívida histórico, um resgate urgente, devolver aos indígenas, num quadro de política de longo alcance e discernimento lúcido, o que lhes foi tirado: o domínio. [Postado originariamente em 14 de setembro de 2021 - modificado].

 

 

Ainda é possível salvar os índios

 

Péricles Capanema

 

Os fatos reclamam uma aliança. Vou tratar do marco temporal ▬ fincado em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Carta Magna. E, lá no fim, tratar da aliança à qual me referi no início e que, julgo, precisa surgir. Ao artigo. Potencialmente, temos, à vista, crescentes conflagrações no campo. Dependerá de como terminará a presente ação do referido marco temporal no STF e ainda de como o Congresso agirá no caso. Se ganharem as forças da vanguarda do atraso (os agitadores), precipitar-se-ão inevitáveis queda de investimentos no agro, altas nos preços de produção, no fim, menos emprego e baixa na renda. No exterior, desconfiança de possíveis investidores em relação ao Brasil. Em curto, mais pobreza numa nação já enormemente castigada. A razão primeira é a influência da demagogia, cada vez mais destrambelhada a propósito dos problemas suscitados pela atualidade candente da questão do marco temporal. Ela borrifa incerteza a respeito de direitos, agride o agronegócio e ameaça o futuro dos índios, irmãos nossos. De passagem, esclarecimento para alguém que ainda não saiba o que é o marco temporal. Em resumo por alto, a tese do marco temporal (de fato, uma jurisprudência) afirma que as terras indígenas tradicionalmente ocupadas, passíveis de demarcação, são as que existiam até 5 de outubro de 1988. Há ainda um adendo, do qual não tratarei aqui, o intitulado esbulho renitente.

 

Ingenuidade suicida. Após o rumoroso episódio da reserva Raposa Serra do Sol em 2009, entendeu-se, ingênua (fico por aqui) e falsamente, que o campo brasileiro, depois do golpe, poderia trabalhar em paz, com base em jurisprudência pacificada. Ledo engano. A sanha esquerdista, com enfezado apoio em todos os quadrantes sociais e meios de divulgação, leva adiante agora novo golpe, já em avançado estado de execução, procurando dinamitar a jurisprudência tida por já assentada, a ser substituída por outras interpretações que disseminarão a insegurança jurídica ▬ pipocarão conflitos fundiários. Caso seja incinerada a tese do marco temporal, vitoriosa em 2009, já se divulga, 829 disputas estão em posição semelhantes à vivida em Santa Catarina, cujo desenlace será a entrega de terras à União (e aos índios posseiros), considerando a declaração de repercussão geral do caso. Virão outras, posteriormente; não sejamos simplórios. Estatização selvagem no horizonte.

 

Propriedades estatais, posse indígena (usufruto). Com efeito, estamos em caminho que leva à estatização maciça. É a lei, a terra entregue às comunidades indígenas não lhes será dada em domínio ▬ nunca serão proprietários e, curiosamente, a respeito disso ninguém reclama, nem os próprios índios metidos nas agitações. A estatização efetiva paira sobre o assunto como espécie de intocável cláusula pétrea. Tem mais: a União não vai pagar um tostão pela terra demarcada, salvo benfeitorias feitas de boa-fé, a ser comprovada.

 

Torquês dilacerante. A torquês a ser aplicada sobre a economia nacional, em especial a economia e propriedade agrícolas, apresenta duas hastes com pontas curvas de corte afiado. Provocarão sangramento, periga hemorragia, na economia; mais ainda, à vera, no corpo social.

 

Jurisprudência nova. A primeira haste é a interpretação pelo menos controversa (migração jurisprudencial; talvez caminhemos até para mutação constitucional) do artigo 231 da Constituição Cidadã. Ali se reconhece direito originário dos índios sobre as terras que “tradicionalmente ocupam”, do que derivaria, país afora, terras públicas e posse indígena. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

 

Hermenêutica em evolução. A presente hermenêutica do texto constitucional, exposta no voto do ministro Nunes Marques, poderá migrar para interpretação muito pior; está pendente do voto de oito ou talvez nove ministros no processo em curso no Supremo ▬ já se conhecem as posições do ministro Fachin, mutação radical, e do ministro Nunes Marques. pela manutenção. Reconhecida a “posse tradicional” por laudo antropológico, segundo interpretação inovadora e muito ampliada, a porteira ficará escancarada para a União tomar conta do espaço agrícola e entregá-lo aos índios. Lembra com pertinência o ministro Kassio Nunes Marques em seu voto no RE 1.017.365: “A Constituição Federal acolheu a teoria do indigenato na qual a relação estabelecida entre a terra e o indígena é congênita e, por conseguinte, originária. [...] De fato, em seu grau máximo, a teoria do indigenato teria potencial até de eliminar o fundamento da soberania nacional. Se o índio era senhor e possuidor de toda a terra que um dia fora sua, por direito congênito, como poderia o Brasil justificar o seu poder de mando sobre o território que não era senão uma aldeia em processo de devolução aos legítimos senhores?” Está certo, não haverá limites; com base em interpretações cada vez mais radicalizadas, toda a terra pertencerá aos índios (na realidade, ao Estado); na prática, se generalizarão os conflitos e o Estado irá assumindo, ▬ no passo que julgar tolerável para o público traumatizado ▬, a titularidade das terras.

 

Opção preferencial pelo entulho autoritário. Agora, a segunda haste da torquês, dilacera igualmente. A esquerda toda, CIMI, PT, PSOL, ONGs filo-comunistas internacionais e seus companheiros de viagem fazem defesa furibunda de um entulho autoritário, a saber, disposições tecnocráticas e autoritárias da lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973 (governo Médici). Para todos eles, xodó intocável em relação ao ali escrito. Com base nelas, e com adrede interpretação do artigo 231 da Constituição Cidadã, acima mencionada, esperam gradualmente borrifar o agro brasileiro de norte a sul de manchas de efetivo comunismo ▬ salpicação crescente de propriedades estatais entregues a comunidades indígenas. A experiência histórica mostra, teremos grupamentos humanos vegetando na miséria, lanhados pela desorganização interna e de órgãos governamentais, torturados pelo crime, a mais de viver do dinheiro público. É futuro que se deseje?

 

Tumor de estimação. Pretende-se no caso manter intocado o caráter tecnocrático da lei 6.001 (procedimento administrativo, basta a bem dizer um laudo feito por antropólogo escolhido pela FUNAI para a demarcação), ademais de seu viés autoritário e burocrático (homologação simples). Aqui está o avantesma intocável: “Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio [FUNAI, no caso], serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo. § 1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras”. Acabou, nada de debate, de participação de interessados, de controle público. A exclusão precisa ser protegida.

 

PL 490. O que o projeto de lei 409 de 2007 buscou (e por isso foi abominado por toda forma de esquerda) foi, no processo de demarcação, aumentar a participação popular, em particular dos interessados. Aplicar a inclusão, enfim. A respeito, observou com pertinência o deputado gaúcho Jerônimo Goergen ao defender a aprovação urgente do PL 490, as áreas reivindicadas para demarcação envolvem gigantescos e numerosos interesses públicos e privados. Entre elas, áreas de proteção ambiental, áreas ligadas proximamente à segurança nacional como as de fronteira, propriedades privadas destinadas à produção agropecuária, cidades, núcleos urbanos, casarios e núcleos habitacionais. A mais, ponderou o parlamentar, existem estradas, redes de energia elétrica, de telefonia, áreas de prospecção mineral, cursos d’água com recursos hídricos. Abrir a porteira de forma indiscriminada para demarcações, e é o que está na iminência de acontecer, garante com objetividade o ativo líder gaúcho, poderá inviabilizar estados e municípios. “Fica até difícil explicar como conseguimos gerar tanta insegurança jurídica para nós mesmos mantendo o Congresso Nacional de fora deste debate”, concluiu.

 

Alarma no agronegócio. Uma visão a “vol d’oiseau” Conforme venha a sentença (acórdão) da ação em curso no STF, teremos paz no campo, mesmo que passageira e ameaçada, ou punhaladas imediatas no agronegócio. O ministro Alexandre de Morais, que havia pedido vista nos autos, devolveu o Recurso Extraordinário 1.107.365. A colocação em pauta depende agora apenas de decisão do ministro Luiz Fux. De um lado, está o voto do relator Edson Fachin. Nega que exista o chamado marco temporal, data limite para a aplicação do conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas (5 de outubro de 1988). De outro, o ministro Nunes Marques. Afirma, existe o marco temporal, está claro na jurisprudência reiterada do Supremo. Observando com isenção os atores em movimento, a situação no palco não se apresenta tranquilizadora. Infelizmente, parece, falta rumo no Executivo e atuação enérgica de lideranças rurais no Congresso ou fora dele que, oxalá, serão óbices que evaporem logo, e possamos constatar tomadas de posição norteadoras que afastem as perspectivas trágicas.

 

Saída óbvia. De um óbvio ululante. A medida factível, rápida e simples, é clara: aprovar já o substitutivo do PL-490, fazê-lo lei. Os textos dormem no Congresso desde 2007-2008 ▬ constituem, parece, tentativa (frustrada, infelizmente), um emplastro de ocasião, para evitar o desastre que foi a decisão judicial no episódio Raposo Serra do Sol. O PL-490 é de lei ordinária, não requer quórum qualificado, nem maioria absoluta; exige apenas quórum regulamentar e maioria simples.

 

A aliança que está fazendo falta. Afirmei acima, faz falta uma aliança. Deveras, uma “santa aliança”, para lembrar o pacto entre as potências conservadoras no começo do século XIX. Urge conjunção de esforços proficientes entre produtores rurais e índios. Lideranças dos dois lados promoveriam seus interesses, além de ajudarem o bem comum, se somassem esforços, procurassem esclarecer o público e ampliar apoios. Os interesses são confluentes, a disputa é artificial e contra a natureza das coisas. O produtor rural deve ser amigo do índio. O índio deve ser amigo do produtor rural. Ambos trabalham para crescer na vida no mesmo ambiente, utilizam-se dos mesmos meios, com apoio estatal sem dúvida, mas sobretudo com forças próprias.

 

Recordações necessárias. A maior parte dos índios (imensíssima maioria), mesmo mantendo usos e costumes, quer posto de saúde, escola, estrada, maior instrução e maiores possibilidades de aperfeiçoamento para os filhos. Abomina retrocesso e paradeiras; assim como os produtores rurais, querem avançar.

 

Índio não é porquinho-da-Índia. Os indígenas não podem ser presas virtualmente passivas de organizações tomadas por delírios ideológicos, que os tratam como verdadeiros porquinhos-da-Índia de experimentações sociais que deram errado em todos os lugares em que foram impostas, causa contínua de sofrimentos, miséria e retrocessos civilizatórios. Ainda é possível evitar a derrocada do engate dos povos indígenas às organizações do atraso, cenário dantesco que se esboça, proporcionando assim aos índios os instrumentos de avanço para que assumam o próprio destino nas mãos. No fim, salvem-se a si mesmos, tendo, é claro, dos demais brasileiros toda a ajuda de que queiram ou precisem. Prosperem, busquem o aperfeiçoamento. A felicidade vem da autonomia crescente, do vento forte da liberdade, fundamentos de crescimento pessoal, nunca da condição de cobaias de experiência sociais utópicas. Melhorando o tema, ainda é possível ajudar os índios para que rumem na via que escolherem e que nós sabemos pela experiência, é a do aperfeiçoamento. Voltarei ao tema. [Postado em 28 de outubro de 2021]

 

 

A Constituição e os índios (1)

 

Péricles Capanema

 

Artigo 231. Na momentosa questão do marco temporal, recorre-se sem cessar ao artigo 231 da Constituição, que, muitos o alardeiam, abrigaria verdadeiro estatuto do índio. Reza o caput do mencionado item: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”

 

Artigo 3. Sua exegese, a do 231, por coerência constitucional, precisa ser feita de acordo com o artigo 3º que coloca os fundamentos, sobre os quais toda a carta deve ser interpretada ▬ em particular, hermenêuticas sistemática e teleológica. Comanda o mencionado artigo 3: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

 

Construção da sociedade livre. Uma sociedade só é livre se composta de pessoas que à vera são livres, a saber, que podem usar bem de sua liberdade natural. De outro modo, pessoas pelo menos com inteligência razoavelmente desenvolvida, com autonomia, meios, personalidade. Vale para todos, vale, é claro, também para os índios. Aqui se desenha objetivo constitucional fundamental: participação dos índios como cidadãos plenos e para tal estímulos para que alcancem personalidades bem desenvolvidas. Avanços civilizatórios é o que comanda o mandamento constitucional; sem chapinar em estagnações desagregadoras.

 

Obstáculos na caminhada. Vou mencionar como exemplo apenas um obstáculo a tal objetivo. Os índios têm sido vítimas de doutrinas atrofiantes que empapam a sociedade em todo o período republicano: foram reduzidos à condição de servos da gleba, posseiros de terras estatais. Não podem avançar, têm de ficar empantanados no retrocesso, acorrentados pelo obscurantismo. De momento, toda a ação das esquerdas empurra para os algemar indefinidamente na condição de servos da gleba, posseiros em terras estatais. Onde está a liberdade? Onde ficou a construção da sociedade livre? Situação claramente anticonstitucional, s. m. j. Minha proposta, não é só minha, mas certamente de todo brasileiro esclarecido, é a seguinte: com senso de medida, gradualmente, estimular para que os índios alcancem logo que possível a condição plena de cidadãos brasileiros. O contrário é obscurantismo.

 

Restauração regenerativa. É marcha para restauração do que já tiveram no passado colonial. Regenera um tecido social dilacerado. Enfim, extingue o retrocesso, já multissecular, da mera posse perene. Retorna à estrada do avanço, que tem o domínio (a propriedade) em sua chegada, cuja construção foi iniciada pelos primeiros reis do Brasil.

 

Caminho real. Reitero, o caminho real aponta no termo para a propriedade (o domínio) e a inerente posse, representa o fim da sujeição atrofiante ao Estado-patrão ▬ entre nós, é o habitual, desorganizado, inclemente, perdulário, autoritário. Dando s costas para o obscurantismo, petrificado no período republicano, é preciso obedecer realmente ao preceito constitucional, objetivo fundamental (supremo) da Carta de 1988, a construção da sociedade livre: É óbvio, situação a ser legislada com sensatez, e tendo como pano de fundo os institutos do Direito Civil a respeito.

 

Desconfiança com o estatismo. Explico-me, repetindo o que escrevi em artigo anterior, citando o ministro Fachin (no caso, inteiramente insuspeito) em seu voto no RE 1.017.365 ▬ uma hora, espero, acaba entrando, à custa de muita repetição, na cabeça do pessoal que teima em manter os índios agrilhoados ao estatismo: “Assim, as cartas régias de julho de 1609 e de 10 de setembro de 1611, promulgadas por Filipe III, afirmam o pleno domínio dos índios sobre seus territórios e sobre as terras que lhes são alocadas nos aldeamento: ‘os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando eles livremente o quiserem fazer’”. O mesmo reconhecimento do domínio [e posse, claro] dos indígenas sobre as terras, lembra o ministro Fachin, ainda se pode constatar em alvará régio de 1680: “Nada obstante o contexto fático, o reconhecimento de posse e domínio sobre as terras que ocupam ocorre com o Alvará Régio de 1680, o qual consignava: ‘[...] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia’”. Foi o Direito contemporâneo que operou a regressão: suprimiu o domínio, esbofeteando o Direito Natural; reconheceu como grande concessão a posse. Da condição de senhores, reconhecida pelos reis, caíram para a situação de servos da gleba. Não estaria na hora de avançar, retomando com prudência e senso da justiça a trilha real? Facilitaria a inserção, a participação, a inclusão dos indígenas na sociedade brasileira. Seriam medidas eficazes contra a exclusão, que nos infelicita há décadas (pelo menos). Voltarei ao assunto.

 

PL 490. Minha proposta requer mudança constitucional, claro, a mais de debates amplos na sociedade. Em resumo, não é simples. Tem a vantagem inestimável, acho, de abrir as cabeças, desenhar uma solução que estimularia os índios a deixarem situações passivas, assumirem protagonismo. Seriam donos do próprio destino, participantes sociais plenos e não condenados a vegetar, para sempre, amarrados por utopias, pobres cobaias de grupos fanatizados e servos da gleba de estatismos delirantes. De momento, temos providência imediata e simples. A saída é começar pelo básico, o factível, procurar aprovar o PL 490. Para tal se requer o esforço de todos, em especial produtores rurais e lideranças indígenas realmente preocupadas com a prosperidade contínua e crescente de suas etnias. [Postado em 31 de outubro de 2021]

 

 

A Constituição e os índios (2)

 

Péricles Capanema

 

Estatização selvagem. Continuo artigo anterior, lá examinei a momentosa questão do marco temporal e do RE 1.107.365, reproduzo a seguir declarações esclarecedoras (e potencialmente aterradoras) de Marcelo Xavier, presidente da FUNAI, por ocasião de audiência pública virtual na Câmara dos Deputados em 1º de outubro próximo passado.

 

Fatos-bomba. O terror decorre da possibilidade de demolição social e econômica dos fatos-bomba ali apontados como concebíveis e até inevitáveis, dependendo da virulência da vitória das correntes chamadas indigenistas. Segundo o alto funcionário existem hoje 491 pedidos de reivindicação de terras indígenas, que envolvem 253 milhões de hectares (em números redondos, 2,53 milhões de km2, aproximadamente 30% do território brasileiro). Ainda segundo Marcelo Xavier, em estudo, existem 121 áreas. Em fase de declaração e delimitação são 10 milhões de hectares. Já as terras indígenas regularizadas ou homologadas somam outros 107 milhões de hectares (aproximadamente 13% do território brasileiro). Foi didático o presidente da FUNAI: “Hoje nós temos em áreas indígenas no Brasil o equivalente aos territórios de Portugal, Espanha, França e Suíça. Se nós formos imaginar que o marco temporal será mudado com o tema de repercussão geral, em discussão do Supremo Tribunal Federal, teremos o acréscimo de Alemanha, Itália, Hungria, Sérvia, Grécia e Reino Unido como terras indígenas”. Terras indígenas? Em termos. É eufemismo, adocica. A propaganda divulga coisas assim, “terras para índios pobres e desapossados”; à vera, são ditos que encobrem a realidade amarga. Nada aqui de fato é terra indígena. É coletivismo, são terras da União. O usufruto é indígena. Estamos diante de um amazônico programa de estatização selvagem.

 

Estatização selvagem furtiva. Curiosamente, nenhuma liderança indígena, nenhum soba de ong ambientalista, nenhum morubixaba de partido de esquerda levanta este ponto fundamental, entretanto óbvio ululante. Bico calado, pois a estatização delirante interessa a todos eles, bruxos do coletivismo, arautos de fatos-bomba, verdadeiros demolidores do Brasil. Repito, a propriedade (domínio) é pública; os índios têm a posse, são modernos servos da gleba. Na prática, porquinhos da Índia de experiências sociais mitomaníacas que só trouxeram tragédias onde começaram a ser aplicadas.

 

Matéria constitucional. Aqui está ponto de imprescindível consideração (nem vou tratar no momento de lei natural e bem comum). Foco nele. A Carta Magna está sendo esbofeteada e não apenas pelas considerações que exponho agora. Com efeito, a Constituição em seu artigo 170 funda a ordem econômica, entre outros pilares, sobre a propriedade privada. E o inciso XXII do artigo 5º considera fundamental o direito de propriedade. Uma tal ameaça à propriedade privada no Brasil, se vitorioso o voto favorecedor do coletivismo do relator Edson Fachin no RE 1.107.365 (voto que nega a tese do marco temporal) é compatível com a Constituição? Pelo menos, não fere a “mens legis”? Aplicado mesmo que gradualmente em todas suas consequências, agora latentes, segundo o entendem as correntes ambientalistas mais extremadas e mais na moda, estará extinta a propriedade privada no campo e, por ricochete, com o tempo, nas cidades.

 

Consequências estapafúrdias. Tudo isso, para alardeado (e falso) amparo a universo populacional justificadamente querido, população relativamente pequena, infelizmente ainda atendido de forma insuficiente, ligado por laços de sangue, benevolência e amizade à imensa maioria dos brasileiros, os índios. Com efeito, conforme o censo do IBGE de 2010, existiam na época no Brasil cerca de 800 mil índios. O número agora estará próximo ao de 2010. Hoje, a maior parte deles vive em áreas urbanas. Esses indígenas, se vitoriosa a hermenêutica constitucional inaugurada abusivamente pelo ministro Fachin em seu voto, virarão posseiros de terras públicas, terão potencialmente o país inteiro como “terra que tradicionalmente ocupam”, segundo interpretação elástica e abarcadora, já muito difundida (cfr. artigo 231 da Constituição). Será o fim da segurança jurídica; com sua demolição, a insegurança no agronegócio, a queda na produção do campo, a carestia e o desemprego. Aqui aparece outro princípio constitucional esbofeteado: o da razoabilidade. Implícito na Lei Maior, é princípio informador do devido processo legal, afere se os atos praticados estão em harmonia com valor supremo animador do ordenamento jurídico, a justiça.

 

Entulho autoritário xodó. Temos entulho autoritário vergastado pelos hierofantes do progressismo e entulhos autoritários que são xodós desse pessoal, objetos de carícias permanentes ▬ verdadeiros tumores de estimação, ninguém pode tocar neles. Vou apontar xodó intocável, ai de quem quiser mexer aí: a lei 6.001 de 19/12/1973 (governo Médici) que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Estabelece que as terras indígenas serão demarcadas por ato administrativo, após laudo de antropólogo nomeado pela FUNAI. O presidente da República tão somente homologa a demarcação. O PL 490/2007 mexe aqui, tira da presente legislação seu caráter autoritário e excludente, tornando-a mais inclusiva e participativa. Nada disso, deixa como está, “bom demais”, está berrando a esquerda. O mencionado monturo da ditadura abominada não pode ser mexido, o veneno aí contido pode extinguir a classe rural. “Es resquício legal buenísimo”, diria partidário do governo de Salvador Allende.

 

PL 490/2007, tábua de salvação. O caso não tem saída? Tem, boa, mesmo que provisória. De momento, o mais razoável, urgente e inafastável é trabalhar pela aprovação do acima mencionado PL 490/2007, transformá-lo em lei. A situação legal passará de excludente, burocrática e discricionária para inclusiva e participativa. Muitos opinarão, muitos participarão, haverá maior influência dos agentes envolvidos, vozes populares mais fortes. É certo, as correntes assim chamadas ambientalistas (esquerdas de todos os matizes) chiarão, com a aprovação do referido PL 490 não cessarão as batalhas ideológicas, políticas e jurídicas. Haverá ações no Supremo contestando sua constitucionalidade e aqui vai o núcleo da argumentação para transformar o Brasil numa arena permanente de expropriações coletivistas (sem indenizações, posse originária), já exposto pelo advogado Eloy Terena: “Essa interpretação que eles fazem [do artigo 231] é gramatical do verbo ocupar. É a interpretação mais pobre que existe. A Constituição não falou que são direitos dos índios às terras que momentaneamente ocupam. Os direitos são sobre as terras tradicionalmente ocupadas. A Constituição não trabalhou com elementos temporais. A marca da tradicionalidade é sobre o modo como o indígena se relaciona com o seu território. Não tem nada a ver com tempo." Não tem nada a ver com o tempo a interpretação do artigo 231: é atemporal, é modo de ocupação, a terra ocupada em algum momento por tribos indígenas é tradicionalmente ocupada. Não contam para nada os institutos do Direito Civil. Todo o território do Brasil, todos sabem, já foi ocupado em algum momento por tribos indígenas ou até por grupos nômades. Um antropólogo nomeado pela FUNAI vai resolver o caso. Achou instrumentos, resquícios da ocupação pretérita? O caso potencialmente estaria resolvido em favor da declaração de terra indígena.

 

Interesse nacional cimeiro. O julgamento do RE 1.037.365 não é sobretudo do interesse de proprietários rurais; abarca de forma eminente cada brasileiro, inclusive índios que em sua esmagadora maioria querem, com apoio maciço do povo, aperfeiçoar-se, crescer na vida, serem cidadãos plenos, atuantes e influentes no Brasil. Não podem ser reduzidos, quiçá indefinidamente, a porquinhos da Índia de experimentações mitomaníacas. [Postado em 28 de novembro de 2021]

 

 

Amazônia no centro

 

Péricles Capanema

 

No Exterior, ponto candente. Se você fosse um leitor comum (ou um cidadão comum) dos Estados Unidos ou de algum país europeu (Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Espanha, por exemplo), você saberia vaga e distraidamente que longe de suas antenas palpita uma imensa área política chamada América Latina, onde existem cidades grandes chamadas Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro. Saberia ainda que por lá se sucedem meio confusamente golpes de Estado, pobreza, tráfico de drogas, roubalheira política. Um ponto e só um ponto lhe chamaria vivamente a atenção: a Amazônia. Conexo com ele, desmatamento ilegal, florestas pegando fogo, devastação ambiental. Situação normal? Bastante anormal. Ajuda o Brasil? Prejudica, e muito; em especial, aos mais pobres daquela região, são dezenas de milhões, irmãos nossos, merecem ainda (dever solidário de todos) ação eficaz contra o que sofrem. Porção das flechas que perfura a carne dos mais pobres é afiada pela ação dos corifeus da propaganda hostil contra a Amazônia.

 

Dados úteis. Vamos dividir o grosso do problema em seções, ficará mais fácil entender o caso. A Amazônia não é só Brasil. Mas a grande antipatia mundial pelo suposto descaso em relação à Amazônia recai quase tão-só sobre Pindorama, o vilão da história. A Amazônia é uma floresta tropical úmida que cobre a maior parte da Bacia Amazônica. Esta bacia hidrográfica está localizada no Brasil, Bolívia, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Suriname, Peru, Venezuela, Equador. Sete milhões de quilômetros quadrados, dos quais cinco e meio cobertos pela floresta. A maioria da floresta tropical está no Brasil ▬ 60% dela. A Amazônia abriga mais da metade das floretas tropicais da Terra e tem a maior biodiversidade no mundo em uma floresta tropical. A chamada Pan-Amazônia tem área de aproximadamente 7,8 milhões de km2 e abriga por volta de 40 milhões de habitantes. Amazônia Legal, tantas vezes falada, é outra coisa. Corresponde à área de atuação da SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). Compreende floresta tropical, cerrado e ainda outras formações. É região composta de 772 municípios localizados em Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso, Maranhão. Tem superfície aproximada de 5.015.067,75 km2, 58,9% do território brasileiro. 45% do território da Amazônia Legal constitui área protegida legalmente. Ela abriga cerca de 30 milhões de brasileiros e seu PIB é por volta de 9% do PIB nacional. Agricultura, pecuária, mineração representam o futuro da região.

 

Tema envenenado. Aqui, realidade e propaganda se mesclam, acavalam-se desconhecimento de fatos e sobrevalorização de versões. É comum, grassam versões fantasiosas, fatos reais são ouvidos com apatia. Para o bem e para o mal, a Amazônia foi lançada no centro do interesse mundial. Na questão se aninha não apenas o interesse razoável e fundamentado, mas ainda crepita um desvelo artificial, novo, irritadiço, inflado. Cada vez mais incendeiam os espíritos a sustentabilidade ameaçada e o desmatamento desbragado. A fermentação induzida no Ocidente leva as populações do mundo desenvolvido a ter birra do Brasil (e não apenas do governo), supostamente desleixado com a a preservação de uma das maiores riquezas da Terra, penhor de futuro de prosperidade, patrimônio comum da humanidade.

 

Obrigação de esclarecimento. Preocupa a opinião hostil que se alastra; é ônus grave de todo brasileiro, na medida de suas possibilidades, procurar virar o jogo no cenário internacional (lá fora). No particular, tem pouco valor redarguir que os fatos apontam em direção contrária. Em geral se atribui a Gustavo Capanema observação sempre útil de lembrar quando nos debruçamos no exame dos cenários públicos: na política a versão vale mais que os fatos. As versões falsas precisam ser desinfladas, em boa parte, aí sim, pela difusão inteligente dos fatos que as desmontam. É ainda necessário somar esforços internamente para que consertemos tudo o que possa estar errado.

 

Lenha na fogueira. Não acho direito nesse momento, irrefletidamente (no mínimo), jogar lenha na fogueira, quando o importante é procurar extinguir o fogo. Pois o Brasil vai perdendo apoios importantes no Estados Unidos e na Europa, setores importantes estão sendo fermentados por propaganda inamistosa. Ao mesmo tempo, outro fato enorme assoma: a China está silenciosa e de sorriso enigmático. Duas forças de tração opostas, uma atrai, outra afasta. Para onde iremos?

 

Rumo que faz falta enfatizar. Destaco agora observações lúcidas, enraizadas na experiência e na erudição, impulsionam rumo de solução efetiva. Alysson Paolinelli é dos agrônomos de maior reputação no Brasil. Professor universitário, antigo secretário da Agricultura e ministro da Agricultura, opiniões pé no chão, sempre enfatizou a importância da ciência, pesquisa e experiência na solução dos problemas da agropecuária. Observou em entrevista recente sobre a Amazônia: “O Brasil está como vilão há muito tempo. As viúvas do Muro de Berlim não morreram. É evidente que a Amazônia está sendo desmatada. Mas 90% ainda estão preservados. Os outros 10% me preocupam. Agora, não será só proibindo o desmatamento que vamos resolver o problema. Enquanto a árvore valer mais deitada do que em pé não há polícia, não há exército que controle o desmatamento. O caminho é a biotecnologia. Temos de achar pela ciência uma forma de tirar rentabilidade sem degradar o bioma. No momento em que a ciência botar a árvore em pé valendo mais do que deitada, pode tirar a polícia da floresta. A primeira forma é o manejo sustentável da árvore. Hoje, temos técnicas de manejo sustentado com belíssimos resultados. Você corta a árvore que lhe interessa e dá dinheiro, planta duas ou três no lugar dela”.

 

Extrativismo de sobrevivência. Paolinelli colocou então cores fortes, talvez tenha exagerado em muitos aspectos, mas mostrou por onde se pode resolver sensata e permanentemente o problema: “Nós temos na Amazônia mais de 25 milhões de pessoas famintas com o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) mais baixo do país. Estão fazendo extrativismo. Elas precisam de renda. Você tem de arrumar uma forma de garantir renda para a população para que, pelo menos, o trópico úmido não seja mexido. Ele não serve para plantar, para boi. Chove demais”. De outro modo, só pelo estímulo a novas formas de exploração econômica (na agricultura e pecuária), bem como pelo aumento da produtividade, será possível impedir que a floresta seja utilizada para subsistência pura; cessaria então o extrativismo da sobrevivência. Foi além: “A organização do produtor é outro problema. As cooperativas do sul conseguem entrar na casa do consumidor europeu, asiático, porque os produtores são organizados. E na Amazônia e no Nordeste a gente não tem isso”.

 

Impulso sensato no rumo certo. Em resumo, os problemas da Amazônia poderiam ser minorados com policiamento mais efetivo, vigilância mais estrita. São medidas necessárias e urgentes. Contudo, só serão enfrentados com sabedoria efetiva se, ao longo dos anos, houver aumento expressivo de pesquisas, procura de métodos novos, aplicação de capitais e organização da produção. A demagogia vai pelo rumo contrário: com ela, a pobreza se agravará, generalizar-se-á a miséria, teremos na raiz agravamento das principais causas da presente degradação ambiental. Caminhando pela estrada iluminada parcialmente pela lanterna de Paolinelli, lucrarão (e muito) as populações residentes na Amazônia, o Brasil e o mundo. [Postado em 1 de dezembro de 2021]

 

 

A produção permanente do caos

 

Péricles Capanema

 

Chacina da segurança jurídica. Caso o plenário do STF decida majoritariamente a favor do relatório (e voto) do ministro relator Edson Fachin no julgamento do RE 1.037.365 (a momentosa questão do marco temporal), teremos, inevitavelmente, pelos anos afora, a produção permanente do caos no campo brasileiro, graduada apenas segundo conveniências dos movimentos revolucionários e do grupo político que tenha as rédeas em Brasília. Evaporará a segurança jurídica. E com ela desaparecida, cairá o investimento na agricultura, minguará o desejo de poupar e produzir dos produtores rurais, a produtividade despencará, tombarão a geração de emprego e renda. Produção menor, alimentos mais caros nas cidades.

 

Conceito de índio. O caos começa aqui. O leitor já imaginou qual é o conceito de índio segundo o direito em vigor no Brasil? Quem pode ser chamado de índio no Brasil? Imagine por segundos uma definição, qualquer uma, e depois tome o choque da realidade. O voto do ministro Kassio Nunes Marques no referido RE 1.017.365, esclarece com nítida singeleza a noção: “Índio pode ser entendido como qualquer membro de uma comunidade indígena que seja aceita como tal”. Vive numa comunidade; é aceito por ela como membro. Pronto. É índio. E comunidades indígenas podem existir no mato, nas periferias, no arranha-céu de uma grande capital. Dessa forma, um norueguês imigrante, louro, olhos azuis, com pai e mãe vivendo na Noruega, e que resolva viver (e é aceito) numa comunidade indígena brasileira, sabe o que é, segundo o Direito brasileiro? Índio. E, se ao lado dele, estiverem 100 suecos e 200 dinamarqueses nas mesmas condições? Simples, mais 100 suecos e 200 dinamarqueses índios. Pode ser, claro, um norueguês revolucionário profissional, agitador etc. E que não saiba uma palavra de nenhum dialeto indígena. O professor José Afonso da Silva, citado por Nunes Marques, reforça a tese: “O sentimento de pertinência a uma comunidade indígena é que identifica o índio”.

 

Moradia dos índios. O caos continua aqui. Onde moram os índios? O ministro Kassio Nunes Marques cita a estatística mais recente que tinha em mãos: “Em 2010, dos 817.963 índios que habitavam o país, 315. 180 já se encontravam em cidades, como indicou o Censo Demográfico realizado pelo IBGE”. Hoje, a proporção será maior; certamente população majoritariamente urbana. Como viviam nas tabas e cidades? Cita em abono de suas considerações Edson Vitorelli Diniz Lima: “O que se quer afirmar em linguagem mais vulgar, é que o índio não deixa de ser índio por usar calça jeans, telefone celular ou computador”. Bons exemplos, agora. Txaí Suruí, a índia que representou as comunidades indígenas na COP-26 cursa Direito em Porto Velho. Nasceu lá. A mãe dela (d. Neidinha Suruí) chama-se e Ivaneide Bandeira Cardoso, é filha de seringueiros, mora em Porto Velho desde os 12 anos, não tem sangue indígena, próximo pelo menos, tem 5 filhos, dos quais dois com o cacique Almir Suruí. O seu Almir trabalha em Porto Velho como assessor de ong indigenista. D. Neidinha tem graduação em História, mestrado em Geografia e é doutoranda, também em Geografia ▬ universidade federal. À vera, família de ativistas, que vive do ativismo.

 

Posse indígena, negotium perambulans in tenebris. Mais caos derivado de ativismo extremista, que cavalga irresponsabilidades teóricas e conceitos delirantes. Estes 800 mil índios, dos quais mais de 300 mil vivem em cidades, segundo o censo do IBGE de 2010, têm em geral as preocupações do brasileiro comum (emprego, estudo, diversão). Sofre com o desemprego, assistência precária do Estado, educação ruim. E nas reservas com o garimpo ilegal, invasões, bandos criminosos. Na maioria das vezes, suas preocupações são as de um brasileiro de condições modesta: alimentos, emprego, segurança, educação, crescer na vida. Com base nos institutos do Direito Civil referentes aos vários tipos de posse e à propriedade, v. g.. usucapião, decadência, prescrição, seria possível obter situações vantajosas para os indígenas. Favoreceriam seu crescimento pessoal , prosperidade, inserção e participação na sociedade brasileira. Lembra o ministro Nunes Marques em seu voto: “A posse civil, baseada na teoria objetiva de Jhering, é o exercício de fato, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade (art. 1196 do Código Civil). Consiste na exteriorização fática da propriedade”. Simples e claro. A posse indígena tem como base a teoria do indigenato, adotada pela Constituição Cidadã. É um avantesma. O ministro Nunes Marques tentou ▬ inutilmente, é verdade, talvez por ser tarefa impossível ▬ pôr um pouco de clareza no frankenstein teórico: “A posse indígena não corresponde ao simples poder de fato sobre uma coisa para sua guarda e uso, com consequente ânimo de tê-la como própria. É instituto constitucional embasado na ancestralidade e na valorização da cultura indígena, cuja função é manter usos, costumes e tradxições”. Atenção, embasada na ancestralidade. Os índios ali estiveram, têm direitos de ali manter costumes. Inclusive a dona Neidinha, e as centenas de milhares de pessoas em situações análogas, que de indígena nada têm. Tudo é muito contraditório? É. Mas a doutrina sobre a qual descansa a legislação, disse eu, e repito, é um frankenstein. Dá margem para tudo. O próprio ministro Nunes Marques reconhece que, com base nela, todo o Brasil poderia ser transformado em terra de posse indígena: “A teoria do indigenato foi desenvolvida no começo do século XX por José Mendes Junior. Segundo ela, a posse indígena sobre as terras que tradicionalmente ocupam é tida como direito congênito, inato, anterior à criação do Estado brasileiro. [...] Em seu grau máximo, a teoria do indigenato teria potencial de eliminar até o fundamento da soberania nacional. Se o índio era senhor e possuidor de toda a terra que um dia fora sua, por direito congênito, como poderia o Brasil justificar o seu poder de mando sobre o território [...] em processo de devolução aos legítimos senhores?”

 

Produção do caos. Dorme na curva da esquina um caos agrário tecido com expropriações sem indenização e inseguranças insolúveis. Estará sempre ameaçador no horizonte se dormirem no ponto as lideranças responsáveis. É a espada que paira sobre a cabeça dos produtores rurais. Sobre a cabeça de cada brasileiro.

 

Tábua de salvação no PL 490. Como afastar a ameaça, que pode estar próxima. Há um modo factível, aprovar o PL 490, que já pode entrar em pauta na Câmara Federal. A nova lei instauraria em larguíssima medida a segurança jurídica no agro brasileiro. [Postada em 3 de novembro de 2021]

 

Nenhum comentário: